O governo de Santa Catarina passou 59 dias esperando a chegada de outros 100 respiradores para tratar pacientes do novo coronavírus. Só percebeu que se tratava de mais uma compra emergencial furada quando entramos em contato questionando a negociação, que não tem prazo de entrega ou garantia de funcionamento.
Na verdade, a compra de R$ 7 milhões junto à empresa catarinense Intelbras sequer poderia ser realizada, já que a vendedora não tem autorização para importar o modelo de respirador prometido. A partir daí, a Secretaria de Saúde agiu rápido. Foram exatos 17 minutos, a partir do nosso e-mail, para fazer o primeiro contato tentando sair dessa.
Problemas com respiradores, por sinal, se tornaram habituais no governo de Carlos Moisés, do PSL. Como revelamos com exclusividade, a Secretaria de Saúde gastou R$ 33 milhões em 200 respiradores fantasmas encomendados à carioca Veigamed. Após a reportagem, a compra foi cancelada, os secretários de saúde e da casa civil foram exonerados e foram abertas uma CPI e uma investigação do Ministério Público para apurar uma suposta organização criminosa por trás dessa negociação. No sábado, cinco envolvidos no esquema foram presos preventivamente, incluindo o ex-secretário da Casa Civil do estado, Douglas Borba.
Questionamos a compra feita com a Intelbras pela primeira vez por e-mail às 14h50 do dia 22 de maio. Incluímos perguntas sobre a falta de permissões da empresa para importação dos respiradores VG 70 na Agência Nacional de Vigilância Sanitária, a Anvisa, a ausência de prazo no contrato e a falta de garantia dos equipamentos, comprados a R$ 70 mil a unidade. Nenhuma das perguntas foi respondida.
Dezessete minutos depois, documentos anexados ao sistema de gestão de processos eletrônicos do governo, o SGPE, mostram que o governo enviou um e-mail para saber o que ainda seria possível fazer dois meses após mais uma compra desastrosa. No entanto, ao invés de pedir explicações à Intelbras, o estado enviou suas dúvidas para a Exxomed, única empresa brasileira que possui licença na Anvisa para importar o VG 70 com a fabricante chinesa Aeonmed.
Até o nosso contato, não havia qualquer menção à Exxomed no processo de compra dos 100 aparelhos pela Intelbras, aberto em 24 de março. Como dona do registro de importação do VG 70 na Anvisa, a empresa precisaria ser consultada antes da compra e liberar formalmente a Intelbras para negociar em seu lugar.
Questionamos o governo sobre o contato ter sido feito com a Exxomed, ao invés da Intelbras, mas não tivemos resposta até a publicação desta reportagem.
Não é a primeira vez que o governo catarinense parece andar em “sintonia” com os nossos pedidos de resposta. A Secretaria de Saúde também só se movimentou para fazer algo sobre a compra de R$ 33 milhões em respiradores da carioca Veigamed com claros indícios de fraudes depois que a questionamos a respeito.
Em 26 de maio, quatro dias depois do nosso primeiro contato, o governo incluiu um parecer técnico no processo de compra junto a Intelbras. Assinado por dois engenheiros e três médicos da Secretaria de Saúde, o documento “não recomenda a continuidade do processo de aquisição” dos VG 70. A justificativa cita a falta de permissão da empresa para importar o produto e a ausência de garantia dos equipamentos — dois dos três pontos abordados no pedido de respostas que enviamos ao governo na semana anterior.
Dias depois, em 2 de junho, a assessoria jurídica da Secretaria de Saúde – que antes tinha aprovado o acordo – recomendou a sua “anulação”, citando “atos viciados” do contrato.
Na resposta ao governo, a própria Exxomed lembrou que a fabricante chinesa não pode fornecer garantia aos equipamentos sem processo de importação acompanhado pela empresa registrada na Anvisa. Após o nosso pedido de explicações, a Secretaria de Saúde respondeu apenas que “que existe um protocolo de intenções e que tal processo, neste momento, está em fase de avaliação técnica do equipamento e do rito administrativo a ser adotado em caso de aquisição”.
Além da falta de prazo de chegada do material e de garantia, a importação tem falhas na documentação, o que pode inviabilizar o uso dos aparelhos em solo brasileiro – como já aconteceu. Cinquenta dos 200 respiradores encomendados pelo governo na compra com a Veigamed, que sofre do mesmo problema de falta de autorização, foram retidos na Receita Federal em Florianópolis assim que chegaram, em 15 de maio. Eles só foram liberados para seguirem seu destino até as 48 unidades de saúde do estado na segunda, 1º de junho, quando a Receita deu o perdimento do material e doou os respiradores a Santa Catarina. Achar que isso irá acontecer novamente é contar com a sorte.
Doação furada
Com mais de 40 anos de história, a Intelbras, fabricante catarinense de equipamentos de telecomunicações, entrou no negócio após uma mal explicada oferta de ajuda da Federação das Indústrias de Santa Catarina ao governo catarinense, a Fiesc. Até então, a empresa não tinha relação nenhuma com a importação de equipamentos médicos. Em depoimento à polícia em 3 de maio, o ex-secretário de Saúde Helton Zeferino disse que inicialmente a Fiesc se ofereceu para doar os aparelhos, mas depois mudou de ideia. A instituição teria se comprometido então a pagar pelos aparelhos com ressarcimento posterior do governo e teria feito a ponte com a Intelbras, que tem experiência em importações.
A Intelbras foi escolhida sem licitação para importar os aparelhos. No acordo firmado com o governo do estado de Santa Catarina e assinado por Zeferino e pelo governador Moisés, ela se comprometeu a comprar os respiradores diretamente da fabricante chinesa, pagando os equipamentos do próprio bolso, além de cuidar da importação. Depois o governo faria o ressarcimento da quantia. O contrato não tem data de entrega, informa apenas que os equipamentos devem chegar no “menor prazo possível” e exime a Intelbras de qualquer tipo de garantia em caso de falha nos respiradores, deixando toda a responsabilidade com o governo. “Em caso de necessidade”, detalha o contrato, “o estado deve acionar diretamente o fabricante Aeonmed”.
Em 13 de maio, 45 dias após a assinatura do contrato, o gerente financeiro da empresa, Jorge Souza Filho, informou por e-mail ao governo que a Intelbras ainda está aguardando autorização da Anvisa para comercializar o VG 70 no Brasil: “Entendemos importante destacar que, conforme os senhores devem estar acompanhando nas mídias, há muita incerteza em relação a movimentações deste tipo de equipamento, tanto no exterior como no país, sendo que, no momento, por conta de alteração das regras de tal Agência para importações, bem como o posterior registro desse produto na Anvisa por uma empresa brasileira, estamos aguardando autorização da Anvisa para a importação.”
Souza Filho se refere a uma mudança que ocorreu na Anvisa no dia 23 de março, um dia antes da assinatura do contrato da Intelbras. Até então, apenas modelos de respiradores já avaliados pela Anvisa poderiam ser importados para o Brasil por empresas com autorização de funcionamento também concedida pela agência federal. Durante a pandemia, a Anvisa apenas liberou equipamentos sem essa avaliação prévia, mas a necessidade de ter um importador credenciado permaneceu.
Não há no sistema qualquer resposta do governo à mensagem ou demonstração de preocupação com a situação até o e-mail à Exxomed no dia 22 de maio, enviado logo após os nossos questionamentos.
Uma forma de ‘apoiar o estado’
No mesmo dia em que entramos em contato com o governo catarinense para entender o que ocorreu com compra com a Intelbras, também pedimos esclarecimentos à empresa. Em nota, o CEO da companhia, Altair Silvestri, confirmou que entrou no negócio a pedido da Fiesc a fim de “apoiar o estado” e diz que negociou diretamente com a fabricante chinesa.
Segundo ele, os R$ 7 milhões referentes aos 100 respiradores já foram, inclusive, pagos. Isso teria ocorrido, segundo Silvestri, antes da Exxomed fazer o registro dos VG70 na Anvisa, e por isso a empresa não teria sido consultada para liberar a negociação. A Intelbras, no entanto, não nos informou a data em que teria feito esse pagamento à Aeonmed, fabricante chinesa dos VG70. Também não há qualquer comprovante de pagamento no sistema do governo. E, mesmo após o parecer técnico recomendando o cancelamento – o que representaria um calote de R$ 7 milhões do estado –, não há nenhuma manifestação da empresa.
No sistema de documentos de processos do governo de Santa Catarina é possível verificar que apenas no dia 1º de abril o governo concedeu à Intelbras autorização para negociar os aparelhos no exterior. Segundo a Anvisa, a Exxomed obteve o registro do respirador modelo VG70 no dia 27 de março. Ou seja, as datas contradizem a versão de Silvestri.
Por telefone, o diretor da Exxomed, Onofre Rodrigues Neto, disse que, assim que descobriu que outra empresa tinha fechado contrato para importar aparelhos que só sua empresa estava habilitada a trazer ao Brasil, ele enviou um aviso por e-mail ao então secretário-adjunto de Saúde André Motta, que virou titular da pasta após a exoneração de Zeferino. Rodrigues Neto repassou para o Ministério Público do estado uma cópia desse documento, datado de 3 de abril.
No documento, a Exxomed informa que recebeu ligação de representante da Veigamed, que pediu a documentação de importação do respiradores Shangrila 510S que “havia vendido para a Secretaria de Saúde de Santa Catarina”. Mas, por ser a única empresa autorizada a vender o equipamento no Brasil, a Exxomed não iria reconhecer a negociação com o governo catarinense – e tampouco a fabricante o faria. Isso mostra que o governo e o atual secretário de Saúde André Motta estavam cientes dos problemas com os respiradore da Intelbras e da Veigamed desde o começo de abril, uma vez que a fabricante dos Sangrila é a mesma dos VG 70.
O documento foi exposto em sessão plenária da Assembleia Legislativa de Santa Catarina no dia 20 de maio, quando os deputados decidiram, com 26 votos a favor e três abstenções, por um requerimento ao governador Moisés para afastar o secretário André Motta.
O documento foi citado por parlamentares na Assembleia Legislativa de Santa Catarina, a Alesc, em maio. Eles pedem o afastamento de Motta que, se vier a deixar o governo, será o terceiro secretário de Moisés a cair na esteira do escândalo dos respiradores. Em depoimento à CPI dos Respiradores nesta quinta, Motta admitiu que recebeu o e-mail de Onofre Rodrigues Neto no dia 3 de abril, mas falou que não sabia o seu conteúdo, pois “não abriu o arquivo em anexo”.
O triste fim dos respiradores
Sem perspectivas para concluir as negociações envolvendo tanto a Intelbras quanto a nebulosa compra com a Veigamed, o governador Carlos Moisés já dá como perdida as chances desses 300 aparelhos servirem de fato ao combate à covid-19 no estado. Moisés afirmou em reunião com prefeitos em 22 de maio que não há “nenhuma garantia desses equipamentos que vêm da China” e que o governo já trabalha com outras alternativas.
“É como comprar algo em uma caixa fechada que você não sabe o que está chegando nem sabe se vai chegar e quando chega não sabe da adequação do mesmo”, explicou aos prefeitos. Não disse, no entanto, porque o estado gastou R$ 33 milhões e se comprometeu a pagar outros R$ 7 milhões em processos tão incertos. E tampouco informou com quais alternativas trabalha agora.
Enquanto isso, Santa Catarina vê um aumento crescente no número de casos do novo coronavírus e de pessoas mortas pela covid-19. A contaminação pelo vírus deu um salto após o governo liberar a abertura do comércio de rua e shoppings, na segunda quinzena abril. Na semana passada, em Itajaí, 100% dos leitos de UTI disponíveis para pacientes com covid-19 estavam ocupados. Isso obriga novos pacientes a serem transferidos para outras cidades. Em 26 de maio, o estado registrou recorde de mortes em 24 horas, com 12 óbitos. Santa Catarina tem 152 mortes em decorrência da doença – e o inverno, que é rigoroso no estado, está chegando. Fazem falta os respiradores que o governo não conseguiu e parece não se importar em comprar.
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