Enquanto milhares de manifestantes reuniam-se no Brooklyn na noite de segunda-feira, os rádios da polícia de Nova York captaram conversas que se destacaram mesmo em meio à atmosfera de violência policial. Depois que um despachante da polícia notou o movimento dos manifestantes perto da 77ª Delegacia, uma voz no mesmo canal disse claramente: “Atire naqueles filhos da puta”. Clara também foi a resposta imediata: “Não coloque isso no ar”.
A conversa foi captada às 18h20 via Broadcastify, um dos muitos sites de acesso público que permitem que os usuários ouçam a polícia e outros canais de rádio de emergência em todo o país. Esses sites “dispararam para o topo da App Store” após o assassinato de George Floyd pela polícia em Minneapolis, informou a revista Vice esta semana. Um porta-voz da polícia confirmou que a conversa ocorreu de fato e disse ao Intercept que ela está sob análise interna.
Depois de dias de repressão cada vez mais violenta aos protestos em todo o país, e depois que o presidente Donald Trump pediu que manifestantes saqueando lojas fossem baleados e o secretário de Defesa Mark Esper chamou as cidades dos EUA de “campo de batalha” — a mensagem ouvida pelo rádio foi mais um indicador de que a polícia vê os manifestantes como inimigos a combater em vez dos cidadãos que eles juraram proteger. Mas a conversa também foi um sinal de como a polícia se tornou encorajada a pedir violência, e quão pouco parecem temer repercussões para ataques violentos contra civis.
Em Nova York, como em todo o país, policiais responderam aos protestos motivados pela raiva contra a violência policial e pela falta de responsabilização com ainda mais violência e, principalmente, sem consequências. Nos últimos dias, policiais da polícia de Nova York espancaram manifestantes com cassetetes, arrancaram suas máscaras para jogar spray de pimenta à queima-roupa, conduziram seus veículos contra multidões e, em pelo menos uma ocasião, apontaram uma arma para um grupo de manifestantes. Esses incidentes, dizem os críticos da polícia, representam uma escalada significativa, ao mesmo tempo em que são consistentes com um longo padrão de violência e falta de responsabilização pelo maior departamento de polícia do país. O abuso foi possibilitado por leis que protegem os oficiais da responsabilização e das barreiras à fiscalização policial — bem como por líderes da cidade que há muito permitem que a polícia opere impunemente.
“Os vídeos perturbadores e os relatos dos ataques violentos da polícia de Nova York contra manifestantes e a mídia, embora traumatizantes de ver, são muito familiares para nós”, escreveu um grupo de defensores públicos de Nova York em um comunicado na terça-feira. “Eles refletem as histórias que ouvimos todos os dias da polícia agindo impunemente, mirando, atacando, batendo, mentindo, abusando e desrespeitando pessoas negras e pardas nas comunidades a que servimos nos cinco distritos”.
Em resposta à repressão policial, o comissário da polícia de Nova York, Dermot Shea, expressou seu orgulho ao parabenizar seus oficiais por suas ações — dias depois de condenar os oficiais que mataram George Floyd em Minneapolis, chamando suas ações de “profundamente perturbadoras” e “não aceitáveis em qualquer lugar”. O prefeito Bill de Blasio, por sua vez, que também condenou a morte de Floyd em Minneapolis, continuou sua longa prática de defender a má conduta policial diante de evidências indiscutíveis e tentou transferir a culpa para os manifestantes.
“Eu vi esse vídeo e obviamente ouvi falar de uma série de outros casos. É inapropriado que os manifestantes cerquem um veículo da polícia e ameacem os policiais”, disse De Blasio no início desta semana, em referência a um desses incidentes. “Se um policial está nessa situação, eles têm que sair dela”.
O CCRB, sigla para Civilian Complaint Review Board [Conselho de Revisão de Queixas Civis], agência independente de Nova York para investigar abusos policiais, recebeu 467 queixas desde sexta-feira, quando os protestos começaram, “e está comprometido em investigá-las totalmente”, disse um porta-voz do conselho ao Intercept. Mas o departamento de polícia está investigando apenas seis, segundo Shea. O porta-voz da polícia de Nova York não respondeu a perguntas sobre os vários casos de violência policial e má conduta que foram registrados em vídeo. Um porta-voz da Procuradoria-Geral disse ao Intercept que eles estão cientes da conversa captada no rádio da polícia de Nova York, mas se recusaram a comentar mais ou fornecer detalhes sobre qualquer outra investigação em andamento sobre as ações policiais.
Apesar dos vídeos, defensores e vítimas da violência policial temem que os policiais envolvidos nesses incidentes escapem da responsabilização, já que vários oficiais designados para protestos começaram a cobrir os números de identificação dos distintivos. A polícia não comentou sobre oficiais cobrindo seus distintivos.
Cobrir o número do distintivo é uma violação direta do guia de patrulha da polícia de Nova York, que permite que os oficiais usem “faixas de luto” cobrindo o brasão da cidade que aparece no distintivo após a morte de um oficial, mas determina que o número e a patente permaneçam visíveis. Em abril, Shea escreveu no Twitter que alguns oficiais estariam usando faixas de luto em homenagem aos oficiais da polícia de Nova York que morreram de covid-19.
Mas cobrir o número de um distintivo também viola a Right to Know Act [Lei pelo direito de saber] de Nova York, que determina que os policiais se identifiquem por nome, posto e número quando interagem com as pessoas. A lei, que entrou em vigor em 2018, também exige que os oficiais informem aqueles que são parados que têm o direito de recusar o consentimento para uma busca e documentar essas solicitações.
“É basicamente proteger os oficiais da polícia de Nova York de serem responsabilizados nesses protestos em massa, onde eles não estão realmente seguindo a lei em si”, disse Jennvine Wong, advogada do Cop Accountability Project [Projeto de Responsabilidade Policial] da Legal Aid Society, em referência aos crescentes relatos de policiais cobrindo seus distintivos. “Não só eles não estão seguindo a lei quando se trata da maneira como eles estão interagindo com os indivíduos, mas também não estão fornecendo as informações que deveriam fornecer quando estão interagindo com o público”.
Os oficiais ignoravam suas obrigações sob a Right to Know Act muito antes do protesto desta semana, observou Wong. Ela chamou de “padrão de longa data da polícia de Nova York”.
“É realmente problemático, porque torna muito difícil para os defensores das vítimas de brutalidade policial responsabilizarem esses policiais se não formos capazes de identificá-los”, acrescentou. “E assim não só eles estão agindo impunemente, mas eles estão ativamente tentando esconder suas identidades de pessoas que os responsabilizariam. … Eles estão atacando manifestantes, e eles estão cobrindo seus números de distintivos. E assim, mesmo se nós os filmamos, como vamos responsabilizá-los?”.
Na maioria das vezes, a lei de Nova York protege os oficiais de uma responsabilização significativa. Durante anos, antes dos protestos desta semana, defensores de vítimas pressionaram os legisladores a revogar uma lei estadual de décadas conhecida como “50-A”, que torna os registros pessoais de policiais “confidenciais e não sujeitos a inspeção ou avaliação”. Como o Intercept relatou, os funcionários do governo têm respondido à pressão por maior transparência policial com interpretações ainda mais rigorosas da 50-A, tornando tudo, desde denúncias de má conduta até descobertas de avaliações internas e imagens de câmeras corporais inacessíveis ao público. Os esforços para revogar a 50-A no tribunal falharam, mas a lei voltou aos holofotes esta semana depois que Floyd foi morto em Minneapolis. Derek Chauvin, o policial acusado de matar Floyd, tinha 18 queixas anteriores de má conduta apresentadas contra ele.
Em Nova York, que conta com uma das leis mais rigorosas do país para proteger a privacidade dos policiais, o governador Andrew Cuomo surpreendeu os defensores das vítimas esta semana quando expressou apoio à revogação da lei 50-A, apesar de ela já ter sido fortemente debatida durante os nove anos em que ele esteve no cargo. “Eu assinaria hoje mesmo um projeto de lei que modifica a 50-A”, disse Cuomo. “Eu assinaria hoje mesmo.” De Blasio, por sua vez, defendeu a 50-A, e sob sua administração a cidade parou de disponibilizar os resultados de avaliações disciplinares internas ao público.
Um porta-voz do governador Cuomo disse ao Intercept que “o governador apoia a reforma da 50-A, e disse que assinará um projeto de lei que faça isso”, acrescentando que Cuomo “pediu ao procurador-geral para rever todas as ações e procedimentos usados durante os protestos”.
Mas os defensores das vítimas estavam céticos quanto à promessa do governador — e insistiram que a lei deveria ser revogada em vez de ser simplesmente alterada. “Ele já ficou em silêncio sobre esse tema anteriormente”, disse Wong, da Legal Aid. “Este é um movimento no qual os defensores vêm trabalhando há muitos e muitos anos — eles pressionam por uma revogação da 50-A desde sempre”.
“Os nova-iorquinos exigem mudanças há anos”, ecoou o membro da assembleia Antonio Reynoso em um comunicado condenando a polícia de Nova York e a atitude em relação aos protestos por parte do prefeito. “A polícia de Nova York precisa liberar imediatamente os registros disciplinares de todos os policiais, e se os padrões de má conduta por parte de policiais em específico forem descobertos, eles devem ser demitidos imediatamente e processados quando apropriado”.
Mesmo antes da recente onda de protestos, a emergência do coronavírus havia oferecido à polícia uma nova oportunidade de escapar do escrutínio. Um funcionário da prefeitura, falando ao Intercept sob condição de anonimato, disse que o CCRB já estava em uma posição difícil antes do início dos protestos. Com Nova York como epicentro da covid-19, investigadores do CCRB, assim como outros funcionários da prefeitura, têm trabalhado remotamente há semanas. Embora as investigações sobre má conduta policial possam ser feitas remotamente, segundo o funcionário — grande parte do trabalho envolve levar adiante casos que vieram muito antes da pandemia — o novo coronavírus tem apresentado problemas próprios.
Primeiro, disse o funcionário, o CCRB frequentemente recebe queixas de populações para as quais as visitas físicas ao escritório do conselho são uma necessidade: indivíduos que não têm acesso a telefones ou internet e, em particular, a população sem moradia de Nova York. “No outro lado disso está a PBA”, disse o funcionário — a Patrolmen’s Benevolent Association [Associação Beneficente dos Patrulheiros], sindicato de extrema direita que representa os policiais de Nova York. “Não houve entrevistas com policiais desde o início da covid”, disse o funcionário, acrescentando que, sem a cooperação da PBA, os investigadores de supervisão só podem ir até um certo ponto. Tudo isso, é claro, vem após semanas de controvérsias em torno da aplicação linha-dura da polícia de Nova York das diretrizes locais de distanciamento social — e, agora, sua abordagem de mãos de ferro nos protestos de policiamento. A PBA não pôde ser contatada para comentar antes da publicação.
Embora poucos esperem que o próprio departamento de polícia conduza investigações justas sobre abuso de policiais durante os protestos, defensores das vítimas alertam que as prisões questionáveis e a força excessiva exibida nos últimos dias provavelmente levariam a dezenas de ações civis contra a cidade. No ano passado, Nova York pagou 69 milhões de dólares para resolver processos por má conduta policial, um aumento de quase 30 milhões em relação ao ano anterior. E os custos legais para a cidade nestes processos foram cerca de 230 milhões de dólares em 2018 e 335,5 milhões em 2017.
Pagamentos maciços financiados por contribuintes por má conduta policial provavelmente serão foco de análises mais detidas este ano, uma vez que o impacto econômico da crise da covid-19 está forçando a cidade a cortar seu orçamento para 2021 em US$ 6 bilhões. Mas, como o Intercept relatou, há uma agência da cidade que foi amplamente poupada dos cortes: a polícia de Nova York.
Tradução: Maíra Santos
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