Grandes crises também são momentos de oportunidade, transformação e reinvenção das formas de luta. Além dos protestos antirracistas e pró-democracia, o recém-criado Movimento dos Entregadores Antifascistas, o MEAF, é mais um exemplo disso. O MEAF tem potencial de recriar um novo modelo de trabalho para a categoria no Brasil, mas também inspirar o mundo por meio de redes ativistas internacionais.
Foi preciso que estourasse uma pandemia, sob um governo que idolatra a morte, para que trabalhadores de aplicativos que denunciam o óbvio fossem ouvidos. Em um comovente vídeo, o entregador Paulo Lima, o Galo, listou as condições de trabalho desumanas a que sua categoria está sujeita, sem equipamento de proteção e álcool gel, rodando as cidades sem parar enquanto parte da população está em isolamento.
Não irei me aprofundar na precariedade do trabalho dos entregadores dos aplicativos, que representa o capitalismo predatório em seu estado mais bruto. Quero compartilhar de um sentimento de esperança que tomou conta de muitos atores da sociedade civil que buscam atuar junto ao movimento em uma ampla rede de ação.
Trabalhar junto aos movimentos não significa ensiná-los a fazer política, mas sobretudo distribuir recursos e trocar saberes plurais. Falamos muito em escuta na esquerda, mas me pergunto se a escuta real de fato existe neste mundo em que todo mundo quer falar, mas poucos querem ouvir. Somos nós – acadêmicos, intelectuais, jornalistas, trabalhadores, estudantes, ativistas de longa data – que temos que puxar nosso banquinho, sentar e ouvir atentamente o que pessoas como Galo têm a ensinar sobre exploração capitalista e organização nos dias de hoje.
A politização de Galo veio do rap das quebradas de São Paulo, mas também de sua própria condição de trabalhador precário. Ele é um gênio no sentido mais completo da expressão: possui uma visão política aguçada sobre precarização, alianças políticas, táticas e estratégias de luta. Com os pés no chão, ele sabe da importância do trabalho de formiguinha, mas também nutre sonhos dos grandes líderes.
Galo é uma das lideranças mais carismáticas e generosas que vi surgir nos últimos tempos. Ele tem a qualidade rara de combinar assertividade crítica e pragmatismo político com uma genuína generosidade para com os companheiros. Faz diagnósticos afiados acerca da perversidade do sistema para o qual trabalha, mas se emociona com a generosidade coletiva e mantém a fé na humanidade – a meu ver, o principal motor de luta.
Poucos minutos de conversa com ele são suficientes para sair com a sensação de que existe um novo modo de trabalho e relações humanas a ser construído. Galo é um daqueles sujeitos que acredita que a parcela de brasileiros que quer fazer parte dessa ampla rede de apoio de entregadores antifascistas é imensa – e o que falta, portanto, são os meios para fazer essas conexões.
Muitos querem ajudar o movimento, mas poucos sabem como fazer isso. E é aí que entra a tal da escuta. Galo e seus 24 companheiros espalhados pelo Brasil sabem muito bem o que querem, mas precisam de suporte para articular e expandir o movimento.
Em meu livro “Counterfeit Itineraries” (sem tradução no português) sobre trabalho precário, defendi que, para além dos muitos capitais – econômicos, culturais e sociais – que os sujeitos de baixa renda são destituídos, falta-lhes também o capital tempo. Já no início do século 20, o economista Thorstein Veblen escrevia que tempo livre era uma das principais formas de distinção, poder das elites e desigualdade.
Mobilizar um movimento exige muitos recursos – e tempo é um deles. Apesar do medo da retaliação que as empresas possam aplicar aos que protestam, um dos grandes desafios para mobilizar os entregadores é conseguir fazê-los parar. Eles pedalam e dirigem por horas a fio para bater o mínimo da meta. Rodam muitas vezes sem parar para comer, sem poder ir ao banheiro ou tomar um copo d’água, prejudicando sua saúde física e mental. Para que um entregador se mobilize, ele precisa usar suas horas de sono para se comunicar nas redes sociais.
Sem financiamento, Galo acorda às 4 da manhã. Entre uma entrega e outra, participa de lives e reuniões diárias – e ainda precisa dar atenção à filha de dois anos. Esse estilo de vida é possível manter por um período inicial de mobilização, mas humanamente insustentável a médio e longo prazo. A perversidade do capitalismo tem sido, desde sempre, acabar com o tempo e a vida do trabalhador para que ele não possa se mobilizar e trabalhe como uma máquina não pensante.
Toda a paralisação é um momento de politização porque nos lembra que nossa energia vital vem da catarse e do poder coletivo.
Por isso, ainda que hashtag e compartilhamentos entusiasmados de notícias sobre o movimento sejam importantíssimos para garantir visibilidade e suporte ao grupo, neste momento eles precisam de recursos materiais e simbólicos para resolver essa difícil equação entre tempo de trabalho e tempo de mobilização.
Quando falo de distribuição de recursos e capitais, refiro-me especificamente à importância de apoiar o MEAF financeiramente, oferecendo serviços ou provendo tecnologia. O movimento quer criar uma forma de financiamento coletivo que possa criar, entre outras coisas, um fundo de ajuda aos trabalhadores que se machucam, ficam doentes e precisam parar de trabalhar. Eles também sonham com iniciativas de base tecnológica que transformem radicalmente o modelo predador e individualista que os isolam. É preciso conectar os entregadores antifascistas com a ampla rede de solidariedade daqueles que acreditam que um novo modelo de trabalho é possível.
Nesta crise econômica, poucos tem recursos financeiros para apoiar o movimento. Mas muitos podem ajudar – um dos entraves do modelo neoliberal é sequer saber como e por onde ajudar. Mesmo sem recursos, milhares de pessoas podem ajudar, oferecendo uma quentinha, um copo de suco, um atendimento médico ou psicológico, o empréstimo de um livro ou mesmo uma rede para descansar.
É evidente que oferecer um prato de comida aos entregadores não os ajudará na transformação radical do modelo de trabalho. Mas em tempos de duplo isolamento social – aquele que vem da alienação do trabalho e da vida coletiva, que se soma ao isolamento físico provocado da pandemia –, contar com uma ampla rede de solidariedade não é pouca coisa.
Entre uma entrega e outra, conectar pessoas é apenas uma das frentes do MEAF. Os entregadores, que refutam o rótulo de empreendedores, lutam por melhores condições de trabalho – como contar com alimentação durante o expediente – e vínculo empregatício com as empresas. Ganhando adesão, o movimento tem ambições de produzir uma transformação radical no conceito de entregador de aplicativo. Um dos principais desafios é contar com tecnologia que os ajude a montar modelos de trabalho que sejam verdadeiramente sustentáveis, cooperativos e fraternais.
Os entregadores vão parar
O MEAF é uma rede ainda pequena dentro de uma imensidão. Enquanto as formas de proteção social foram se deteriorando, assistimos ao surgimento de insurgências pulverizadas de trabalhadores com fracos laços sindicais que se organizam por meio das redes sociais, como WhatsApp. Por isso, penso que apoiar a paralisação dos entregadores que está prevista para o dia 1º de julho é uma tarefa urgente e fundamental. O protesto não é puxado pelo movimento de entregadores antifascistas, pois é muito mais amplo e diverso – mas o MEAF estará nele.
É possível que tenhamos em 1º de julho uma greve muito semelhante à greve dos caminheiros de 2018, com muitos grupos políticos divergentes e outros não politizados. Talvez encontraremos até apoiadores de Bolsonaro.
A tendência das esquerdas nas redes é, ao ver o compartilhamento de imagens de bolsonaristas na paralisação, desdenhar da mobilização. Isso é um erro grave, pois imagens isoladas não representam toda a paralisação e não tiram a legitimidade do protesto dos precarizados. É fundamental que o campo progressista dispute essa paralisação e saiba usar as redes para espalhar as imagens e as vozes daqueles que lutam contra o sistema político e econômico, sem desdenhar de toda a luta política de uma categoria que é plural por causa de uma parte dela.
Toda a paralisação é um momento de politização porque nos lembra que nossa energia vital vem da catarse e do poder coletivo. Dentro desse caldeirão político que vai se manifestar no dia 1º, precisamos apoiar e dar visibilidade aos democratas e antifascistas que darão seu grito de basta. Essa é só a primeira insurgência do precariado dos aplicativos.
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