Tortura. Estupro. Assasinato. Não consigo tirar da cabeça as terríveis imagens desses crimes brutais. “Welcome to Chechnya: Inside The Russian Republic’s Deadly War on Gays” [“Bem-vindo à Chechênia: por dentro da guerra mortal da república russa contra os gays”], que estreou no Festival de Sundance em janeiro e na HBO em 30 de junho, nos EUA, é um dos filmes mais angustiantes a que já assisti.
“Imagine no século 21, em um país supostamente laico”, fala David Isteev, no começo do elogiado documentário, “existirem casos em que pessoas são mortas simplesmente por serem homossexuais – em que elas são mutiladas, em que as famílias dessas pessoas são instigadas a matar seus filhos e irmãos. É inacreditável.”
“Bem-vindo à Chechênia” acompanha Isteev, coordenador do programa de emergência da organização Rede LGBT da Rússia, e seus colegas ativistas, enquanto arriscam a vida tentando proteger os chechenos homossexuais de se tornarem alvo das autoridades e de suas próprias famílias.
A Chechênia é uma pequena república de maioria muçulmana no sudoeste da Rússia. É ainda um lugar onde as pessoas gays vivem aterrorizadas. Desde 2017, o Estado vem promovendo uma série de expurgos anti-LGBTQ em toda a Chechênia, em que homens gays são detidos e levados para prisões secretas. Quem primeiro revelou esses expurgos foi o jornal russo independente Novaya Gazeta, em abril de 2017, e a informação foi corroborada depois pela organização Human Rights Watch, entre outras.
“Nós documentamos um cruel expurgo anti-LGBTQ de grande escala”, marcado por “tortura, desaparecimentos forçados e execuções extrajudiciais”, foi o que me contou por telefone, de Moscou, a diretora do programa da Human Rights Watch na Rússia, Tanya Lokshina. Em 2017, um dos detidos contou à Human Rights Watch: “Eles nos eletrocutaram, nos bateram com canos, nos deram chutes e socos, fizeram outros detentos baterem em nós, nos xingaram, cuspiram em nossa cara”.
Em dezembro de 2018, houve relatos de uma segunda onda de prisões e ataques contra os homossexuais chechenos. Nos últimos 18 meses, no entanto, tem havido pouca cobertura dessa situação. Para David France, o diretor premiado de “Bem-vindo à Chechênia”, não faz sentido falar em “primeiro” e “segundo” expurgo, pois tudo é parte da uma única campanha de perseguição contra os homossexuais chechenos. “Eles ainda estão sendo caçados”, France me contou, de Nova York, por telefone.
O caçador-chefe é Ramzan Kadyrov, um autocrata violento e apaixonado por tigres que foi nomeado presidente da Chechênia pelo presidente russo Vladmir Putin em 2007. Segundo Lokshina, Kadyrov “foi autorizado pelo Kremlin a governar a Chechênia como seu próprio feudo, um efetivo Estado paralelo, onde não se leva em conta nem a legislação internacional sobre direitos humanos, nem a própria legislação russa”.
Como todo tirano que se preze, Kadyrov tem uma lista de “indesejáveis” que são demonizados e servem de bode expiatório para todos os problemas do país — e os gays estão no topo de sua lista. Foi o líder checheno quem ordenou a captura e a detenção de homens gays, que ele chama de “sub-humanos” e “demônios”.” Nos últimos anos, ele também tem “justificado e encorajado” os chamados assassinatos de honra de gays chechenos por suas famílias, enquanto seu governo, segundo explicou France, se recusa a investigar tais crimes.
Em uma entrevista de julho de 2017, David Scott, repórter esportivo da HBO, perguntou a Kadyrov sobre os pogroms anti-LGBTQ em seu país. “Não temos esses tipos de pessoas aqui”, respondeu Kadyrov. “Não temos nenhum gay. Se houver algum, podem levar para o Canadá.”
“Pelo amor de Deus”, acrescentou o presidente checheno. “Levem-nos para longe, para que não estejam em nossas casas. Se houver algum aqui, levem, para purificar o nosso sangue.”
Kadyrov tem sido recebido de braços abertos em todo o Oriente Médio. O ditador checheno gosta de se apresentar como um muçulmano devoto e tem investido na repressão ao álcool, enquanto impõe códigos de vestimenta islâmicos e endossa a poligamia. Ele vê a guerra contra homossexuais como parte de seu projeto de “islamização“. France o descreve como um “louco e déspota” que “distorce o Islã para seus próprios fins.”
É bom deixar claro: não há nada no Islã que justifique ou desculpe a tortura e a perseguição de qualquer grupo de seres humanos. Mas a realidade é que a homofobia, como já escrevi antes, é frequente em muitas comunidades de muçulmanos no mundo inteiro. A Chechênia, no entanto, é um caso à parte de ódio homofóbico. Como a Human Rights Watch observou, a república russa “é uma sociedade muçulmana tradicional altamente conservadora; a homofobia é intensa e desenfreada, e a homossexualidade em geral é vista como uma mácula para a honra da família”.
No último mês de março, mais de 30 países assinaram uma declaração conjunta no Conselho dos Direitos Humanos das Nações Unidas pedindo “uma investigação rápida, completa e imparcial sobre a alegada perseguição” aos homossexuais na Chechênia. Com a exceção da Albânia, nenhum país de maioria muçulmana assinou a declaração. Enquanto isso, comunidades muçulmanas em todo o ocidente arrecadam fundos e fazem lobby em prol de palestinos, caxemires, rohingyas e uigures perseguidos… mas não dos chechenos sendo “caçados” por Kadyrov e seus capangas. Esses chechenos, ao que parece, são do tipo errado de muçulmano — são muçulmanos gays.
Os cruéis pogroms contra os homossexuais na Chechênia, no entanto, não podem ser postos apenas na conta do Islã ou dos muçulmanos. A própria Rússia é assolada pela homofobia — encorajada tanto pela Igreja Ortodoxa Russa quanto pelo presidente do país. “A posição de Putin é óbvia”, diz um frustrado ativista LGBTQ russo em “Bem-vindo à Chechênia”. “Se lhe dissessem que os gays estavam sendo mortos, ele não se importaria.” Em 2013, Putin sancionou a famigerada lei contra “propaganda gay”, que criminalizou a distribuição de “propaganda de relacionamentos sexuais não-tradicionais”. As pesquisas sugerem que a maioria dos russos acredita que os gays estão conspirando para “destruir” os valores do país, enquanto 1 em cada 5 deles quer “eliminar” pessoas gays e lésbicas da sociedade russa.
Há ainda o contexto global: como bem lembrou France, o diretor, a homossexualidade continua a ser ilegal em mais de 70 países do mundo e é punida com a morte em oito deles.
É de se admirar, então, que os ativistas façam referência a um “genocídio gay”? Em maio de 2017, três grupos franceses de defesa dos direitos dos homossexuais apresentaram uma representação ao Tribunal Penal Internacional acusando a Chechênia de uma política de genocídio contra homossexuais. O problema jurídico, porém, como aponta France, é que a Convenção de Genocídio se aplica apenas a grupos “nacionais, étnicos, raciais ou religiosos”, excluindo assim as comunidades LGBTQ perseguidas.
Apesar disso, France faz uma comparação direta com o Holocausto. “Esta é a primeira vez, desde o regime de Hitler, em que há uma política explícita e conduzida pelo governo para arrebanhar e exterminar pessoas LGBTQ”, ele me disse. Entre 1933 e 1945, de acordo com o Museu Memorial do Holocausto dos Estados Unidos, “cerca de 100.000 homens foram presos por violar a lei da Alemanha nazista contra a homossexualidade, e, destes, aproximadamente 50.000 foram condenados à prisão. Estima-se que entre 5.000 e 15.000 homens tenham sido enviados para campos de concentração sob acusações semelhantes, onde um número desconhecido deles faleceu.”
“Nunca mais” tornou-se (com razão) o mantra global, em referência ao Holocausto. Mas, no que diz respeito aos homossexuais, está acontecendo novamente. Agora mesmo. Na Chechênia.
Onde está, então, atualmente, a indignação dos nossos políticos ou da imprensa? Onde estão os protestos? Por que a falta de apoio global a essa minoria oprimida? Como Lokshina salientou, a maior parte dos países ocidentais não ofereceu um “refúgio seguro” para que os gays chechenos fujam da perseguição. Os Estados Unidos, sob o governo de Donald Trump, podem ter imposto sanções financeiras a líderes chechenos, por exemplo, mas não acolheram um único refugiado LGBTQ da Chechênia.
Lembrem-se que a nossa inércia, a nossa indiferença, e, acima de tudo, o nosso silêncio nos tornam cúmplices desses crimes contra as comunidades LGBTQ. Mas é muito mais do que isso. Nosso silêncio também encoraja demagogos violentos como Putin e Kadyrov — e lança as bases para novas violações de Direitos Humanos por toda parte. “Se não há punição”, diz Isteev ao final do filme, com um semblante exausto, “se as pessoas LGBT são consideradas sub-humanas, se podem fazer com elas o que quiserem, isso significa que, amanhã, qualquer um pode estar no lugar dos gays chechenos.”
“Bem-vindo à Chechênia” estreou na HBO, nos EUA, no dia 30 de junho.
Tradução: Deborah Leão
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