Ao final de textos publicados em sites de jornalismo, é comum os leitores se depararem com uma fileira de pequenos anúncios sensacionalistas disfarçados de conteúdo jornalístico. Os títulos são sempre apelativos — conhecidos como clickbaits —, feitos com o único objetivo de fazer o visitante clicar. Esses anúncios geralmente giram em torno de dicas de saúde, novidades sobre celebridades e maneiras fáceis de enriquecer. Quando o leitor clica, é levado para sites desconhecidos de baixíssima qualidade, que oferecem algum produto duvidoso. O problema não são apenas as chamadas sensacionalistas, mas o conteúdo dos textos. Vários deles são falsos. Leitores de sites jornalísticos sérios estão a um clique de distância de fake news.
Esse modelo de veiculação automática de anúncios em grandes sites vem sendo criticado nos Estados Unidos pelo menos desde 2016. Editores de alguns dos principais veículos americanos passaram a questionar os efeitos desse modelo de anúncios sobre a credibilidade das suas marcas. As revistas Slate e a The New Yorker decidiram interromper a exibição desses anúncios em seus sites. Um artigo sobre misoginia de Trump na Slate, por exemplo, era acompanhado de uma chamada para a seguinte notícia “10 celebridades que perderam seus corpos sarados”. Abaixo da manchete, fotos mostrando o antes e depois do corpo de uma mulher famosa completam a baixaria. Na campanha de 2016, esses espaços patrocinados também foram usados para espalhar mentiras sobre a candidata democrata Hillary Clinton.
Taboola e Outbrain são as duas grandes empresas que dominam esse mercado dos anúncios clickbait. Fundadas em Israel, elas cresceram nos EUA e têm se espalhado pelo mundo. Oferecem aos sites de jornalismo uma solução que automatiza o conteúdo sugerido e reconhece o interesse do leitor a partir de pistas contextuais, como o histórico de navegação, por exemplo. Assim, a todo momento o leitor recebe indicações de conteúdo do próprio site, o que faz com que ele permaneça consumindo notícias por mais tempo. Até aí, tudo bem. O problema é que, em troca desse serviço, Taboola e Outbrain incluem nessas páginas propagandas travestidas de notícias. Os anunciantes pagam para inserir essas chamadas nos sites associados, que também ganham uma fatia dessa grana. As duas empresas estão prestes a concluir uma fusão para dominar de vez o mercado dos clickbaits.
No Brasil, essas empresas chegaram com força. Um jornalista de dados com quem conversei, que preferiu não se identificar, vem acompanhando os links patrocinados do Taboola e Outbrain no rodapé dos grandes sites há algum tempo. Foi ele quem me passou boa parte das informações que guiaram esse texto. Em um levantamento sobre páginas de fake news, o jornalista identificou que as mentiras relacionadas à saúde eram bem mais volumosas que as relacionadas à política. Percebeu também que os links patrocinados no pé das notícias tinham se transformado em uma espécie de “fakeoduto”.
Boa parte dos veículos de grande imprensa brasileira aderiu a esse modelo de anúncios. Os sites da Folha de S. Paulo e do jornal O Globo, os principais jornais do país, estão associados respectivamente ao Outbrain e ao Taboola. Quando o visitante continua a descer a barra de rolagem após a leitura de uma notícia, se depara com um quadro com esses anúncios sensacionalistas misturados com links para notícias do próprio jornal. Apesar de haver uma tarja minúscula indicando ser conteúdo patrocinado, a diagramação dá a entender que as manchetes sensacionalistas dos anúncios são conteúdos produzidos pelo jornal. Esses anúncios estão presentes em todas as páginas da Folha e do Globo que visitei.
Perceba nas imagens acima como os anúncios sensacionalistas e as notícias da Folha aparecem misturados no mesmo quadro. Uma notícia do caderno Saúde do jornal figura no mesmo enquadramento de propagandas sensacionalistas para remédios naturais sem eficácia comprovada. Em uma notícia sobre o Brasil ter ultrapassado 4 milhões de infectados pelo coronavírus, o leitor dá de cara com esse tipo de propaganda sensacionalista ao final do texto. Alguns desses clickbaits têm um claro cunho machista, como o “estimulante natural que virou febre no Brasil” ilustrado com uma foto de mulher.
Uma outra “notícia” patrocinada intitulada “Médico Alerta: Pressão alta é um fator de risco. Se você toma Losartana, tente isso” também aparece em meio a outras chamadas do caderno de Saúde da Folha. A losartana é uma droga utilizada no tratamento de hipertensão. Se o leitor clicar nessa notícia, o sistema do Outbrain o levará para o domínio doutornature.com. O texto promete apresentar uma receita natural para a hipertensão, mas começa a enrolar o leitor nos mesmos moldes dos programas de João Kleber. Para acessar a receita milagrosa, é necessário assistir a um vídeo que, entre outras bobagens, afirma que existe uma solução natural para a hipertensão “melhor que dieta e exercícios” e que “já foi citada até na Bíblia”.
É um vídeo hospedado no YouTube, mas a configuração da página do anunciante não permite que você pule para o final, obrigando o visitante a vê-lo inteiro se quiser conhecer o milagre prometido. Toda a narração leva a acreditar que receberá dicas grátis para a cura da hipertensão. Depois de muita enrolação, o vídeo conta que a folha de oliveira é a substância mágica, chamada pelo narrador de “um plano de Deus”. Além da pressão alta, o narrador afirma de maneira categórica que a folha ajuda a combater o diabetes, a emagrecer, te mantém jovem, energizado e mais um sem número de benefícios para a saúde.
De fato, há pesquisas indicando que a folha de oliveira ajuda no controle da hipertensão, mas está longe de ter o efeito milagroso repetido. Depois de 20 minutos, o narrador sugere que você compre esse milagre em cápsulas: o remédio Nature Olive, que você poderá comprar em uma promoção exclusiva no link a seguir. No Reclame Aqui, há mais de 500 reclamações contra a Doutor Nature. Há relatos de todo tipo: remédios que estão fazendo mal, cobranças indevidas no cartão de crédito e atrasos na entrega.
Nesta semana, no final de uma coluna da Mônica Bergamo, encontrei a chamada “Insônia: novo fitoterápico faz dormir sem causar dependência”. O link aparece como se fosse uma notícia qualquer, exceto pelo fato de haver um aviso com letras miúdas avisando que se trata de uma notícia patrocinada. Você clica nele, e o Outbrain te leva para o site topsaudavel.com.
O nome do domínio já exala a picaretagem que vem a seguir. Trata-se de uma propaganda de um remédio milagroso para a insônia disfarçado de artigo escrito por um médico especialista em distúrbios de sono. Depois de muita enrolação, o nome do remédio aparece no quinto parágrafo, e o tal médico afirma: “funciona melhor que a maioria dos tarjas-pretas que eu conheço”. Sim, o doutor garoto-propaganda diz de forma categórica que o tal fitoterápico é mais eficaz que remédios tarja-preta. “Tenho receitado Relaxxia a todos os pacientes que me procuram com problemas de insônia e ansiedade, e os resultados são surpreendentes: 97% deles tem o problema resolvido com Relaxxia, e praticamente não preciso mais receitar tarjas-pretas para ninguém!”
Ao final do artigo, sem o doutor ter contado qual a composição e o princípio ativo do medicamento, uma mensagem piscando lhe oferece um “DESCONTO EXCLUSIVO” de 40% na compra do medicamento. Só depois descobre-se do que é feito o milagre: a cápsula do Relaxxia é um combinado de extratos de ervas naturais como camomila, maracujá, passiflora e melissa. Ou seja, tudo isso para chegarmos no chazinho da vovó, que realmente ajuda, mas não resolve o problema de quem sofre com insônias crônicas. Apesar da convicção do médico vendedor, ainda faltam estudos científicos de peso atestando a eficácia da maioria desses fitoterápicos. O milagre vendido não existe.
É para esse lugar que um leitor da Folha menos cuidadoso pode ser levado. Essa fake news lucrativa está a um clique de uma notícia do maior jornal do país. É a desinformação sendo vendida em um espaço no qual se espera encontrar informação de qualidade. Os sites de jornalismo estão, na prática, faturando com as propagandas de empresas que vendem seus produtos através de sensacionalismo barato e mentiroso. Entenderam o tamanho do drama?
No site do jornal O Globo, a empresa Taboola é quem indica os sites aos leitores. Dentro do quadro criado pela Taboola, há uma promiscuidade entre os anúncios sensacionalistas disfarçados de conteúdo jornalísticos e os conteúdos do próprio jornal. A confusão é proposital para gerar cliques para os anunciantes. Será que todos os brasileiros conseguem facilmente identificar o que é notícia do O Globo e o que é propaganda nessa imagem abaixo? Eu tenho certeza que não.
O creme para varizes recomendado acima também não funciona. É mentira que a tal fórmula “some com as varizes”. Segundo médicos, todo o creme contra varizes no mercado tem apenas um efeito cosmético tímido, não serve como tratamento. Não há nenhum estudo científico comprovando a sua eficácia. O leitor do O Globo está exposto a esse tipo de armadilha.
Em outra página do jornal, mais um milagre: uma medicação que promete secar a gordura que é chamada de “bariátrica em cápsula”.
Nas diretrizes do site da Outbrain, há uma lista de tipos de anúncios que são proibidos pela empresa:
“Sites que intencionalmente buscam levar o leitor a acreditar em algo que não é verdade”.
“Conteúdo desenvolvido para levar o leitor a acreditar que ele está lendo um conteúdo editorial legítimo ou notícias baseadas em fatos”.
“Conteúdo que possa ser um anúncio habilmente disfarçado (com pouco ou nenhum valor oferecido ao leitor), uma propaganda ou uma farsa”.
Bom, basta você passear por esses sites (desative o bloqueador de anúncios do seu navegador) para verificar que praticamente todos os anúncios exibidos pela plataforma violam essas diretrizes.
Procurada para se explicar, a empresa afirma que há três filtros de checagem: primeiro há um filtro automático que bloqueia palavras e imagens impróprias. Depois, os anúncios aprovados seguem para um time de revisores para garantir o cumprimento das diretrizes. E, por fim, a empresa afirma que as empresas associadas à plataforma, como Globo e Folha, têm total autonomia para criar seus próprios filtros e bloqueios de acordo com as suas diretrizes editoriais e comerciais.
Essa rigorosa filtragem deixou passar os anúncios enganosos que você leu neste texto. Globo e Folha têm total autonomia para criar seus próprios filtros, segundo a Outbrain. Ou seja, todos os envolvidos parecem ter consciência de que estão divulgando conteúdo duvidoso na internet.
A Outbrain ressalta “que todos os produtos anunciados estão regulamentados pelos órgãos competentes, e toda a documentação é exigida do anunciante para que a veiculação seja feita”. Sim, o creme para varizes citado aqui, por exemplo, é aprovado pela Anvisa e vendido legalmente. A enganação está em vendê-lo como remédio milagroso para o tratamento de varizes.
A Folha reconhece que “normalmente os anúncios são chamativos e destacam propriedades milagrosas”, mas completa: “no fim das contas são suplementos e similares que estão à venda nas lojas do ramo”.
O jornal afirma que “os anunciantes da rede sempre têm registro na Anvisa e as regras quanto às páginas de destino obedecem ao manual da empresa”.
A empresa defendeu os anunciantes, dizendo que eles “estão sempre comprometidos a ouvir e trabalham para acatar. Quando temos uma solicitação de remoção e restrição total, também sempre realizam rapidamente”. Ou seja, já que os produtos foram regulamentados pela Anvisa, a Folha não vê problema em faturar com o sensacionalismo desses anúncios. Então ficamos assim: a cápsula feita com um combinado de chazinhos da vovó pode aparecer no site do jornal prometendo ser o remédio definitivo para insônia. Basta que ele tenha sido aprovado pela Anvisa. Então tá.
Taboola e Globo não responderam às perguntas enviadas por e-mail até o fechamento da coluna – o texto será atualizado caso as respostas cheguem após a publicação.
Numa época em que as fake news atrapalham o trabalho dos jornalistas e ameaçam a democracia, empresas de jornalismo oferecem aos seus leitores espaços publicitários repletos de …. fake news. Com que moral essas grandes empresas de jornalismo fazem campanhas para combater as mentiras? Do que adianta lutar contra as fake news se parte da receita dessas empresas de jornalismo é proveniente de anúncios sensacionalistas de produtos que não funcionam?
Praticamente todos os grandes sites de jornalismo no Brasil estão navegando nessas águas turvas. Revista Veja, El País e Estadão também se beneficiam desse modelo de anúncios. Nós sabemos que bom jornalismo requer recursos, mas flertar com a desinformação não me parece um preço justo a se pagar. A grande imprensa brasileira precisa se desvencilhar desses esqueletos no armário se quiser manter o mínimo de credibilidade junto aos leitores.
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