Pressionados por uma carta assinada por mais de 120 funcionários, os diretores do GRPCom, dono da Gazeta do Povo, convocaram reunião online nesta sexta-feira, 6, para avisar que irão manter Rodrigo Constantino entre os comentaristas do jornal online por entender que “os esclarecimentos fornecidos pelo colunista foram suficientemente satisfatórios para que não seja necessário tomar nenhuma medida mais drástica”.
Esta semana, Constantino disse que, caso sua filha alegasse ter sido estuprada mas tivesse bebido antes de ser violentada, ele a colocaria de castigo. O comentário, feito após a repercussão do caso Mariana Ferrer, causou a demissão dele da reacionária rádio Jovem Pan, da TV Record, alinhada ao bolsonarismo, da rádio Guaíba e do jornal Correio do Povo, ambos do Rio Grande do Sul.
Na carta, jornalistas e outras funcionários apontam a contradição entre manter Constantino e os valores morais conservadores que o jornal diz serem suas “convicções”.
Na reunião, Guilherme Doring Cunha Pereira e Ana Amélia Filizola, irmãos e donos do jornal, foram confrontados com perguntas e comentários dos funcionários – vários deles ocultando os nomes, pelo óbvio temor de retaliações. A todos, responderam com evasivas e reafirmaram confiar na “capacidade de discernimento de Constantino” e a decisão de “dar a ele um voto de confiança”. Além disso, falaram no desejo de “não participar de um linchamento”.
O documento enviado por eles aos funcionários (e assinado apenas por Filizola) é o seguinte:
Caros colaboradores,
As considerações iniciais feitas pelo jornalista Rodrigo Constantino sobre estupro na última quarta-feira (4), em seu perfil pessoal nas redes sociais, foram, na nossa opinião, infelizes e inoportunas. Lamentamos profundamente o constrangimento que o episódio causou em muitos de vocês. Reiteramos que a opinião de nossos colunistas não representa, necessariamente, o pensamento do jornal. Por outro lado, vocês conhecem nossas convicções, entre as quais queríamos destacar a de que “a valorização da mulher é não apenas uma exigência de um olhar justo sobre o ser humano, como uma necessidade para o bem comum de qualquer comunidade”.
Foi precisa uma análise de todos os posts feitos pelo Constantino, de um vídeo com esclarecimento, publicado no fim da tarde de anteontem, e de um esclarecimento dele publicado ontem na Gazeta, para compreender que ele não se referia ao caso específico de Mariana Ferrer e, muito menos, amenizava a gravidade do abuso sexual, em qualquer circunstância.
O colunista admitiu que errou na abordagem de um tema tão delicado e, nesse texto publicado ontem na Gazeta do Povo, esclareceu seu posicionamento. “Não acredito que nenhuma pessoa com um mínimo de consciência e moralidade seja capaz de fazer apologia ao estupro. Portanto, venho aqui registrar e defender o óbvio: o estupro é um crime abominável e deve ser combatido por toda a sociedade, por todos os homens e mulheres de bem”, escreveu.
Temas relativos a comportamentos suscitam hoje divergências agudas e inconciliáveis, algo que dificulta e torna nebulosa a compreensão de qualquer discurso intempestivo e eventualmente formulado com imprecisão. Essa realidade obriga a evitar soluções simplistas e unidimensionais e convida a mais reflexão e ponderação.
Justamente por isso, antes de tomar qualquer decisão, fomos cautelosos na análise do tema. Pedimos desculpas pela demora na manifestação de nosso posicionamento. Aqueles que nos acompanham há mais tempo e todos vocês que conhecem nossas convicções sabem que a Gazeta do Povo jamais considerou a liberdade de expressão como um direito absoluto, sem limites; em diversas ocasiões deixamos clara nossa posição de que há, sim, discursos que não são protegidos por essa liberdade. No entanto, também entendemos que os esclarecimentos fornecidos pelo colunista foram suficientemente satisfatórios para que não seja necessário tomar nenhuma medida mais drástica.
O pedido de desculpas feito por Constantino a todas as mulheres que se sentiram ofendidas com as palavras grosseiras ditas por ele, em redes sociais, pesou em nossa decisão. “Se perguntar para uma mulher se ela é feminista, talvez ela diga que sim, e ao pedir explicação, ela dirá que defende a liberdade, independência, respeito, direito de igualdade e empoderamento da mulher. Mas estou de acordo com isso tudo! E se de alguma forma minhas palavras mais fortes magoaram as mulheres, peço desculpas”, afirmou.
Assim, confiando no discernimento de Constantino quanto ao aprendizado gerado por este episódio, e reafirmando nosso compromisso com a liberdade de expressão, não vemos, no presente momento, motivo para desligá-lo de nosso quadro de colunistas.
Ana Amélia.
A posição do jornal gerou revolta entre os funcionários. Um deles escreveu: “Uma satisfação hoje: saber que jornalistas premiadas recém-demitidas não estão assistindo a isto”, em referência a Katia Brembatti e Rosana Felix, ambas vencedoras do Prêmio Esso por reportagens publicadas na Gazeta do Povo antes dos irmãos transformarem o centenário jornal paranaense num portal de extrema direita.
“Acho que em nenhum momento [como funcionário da Gazeta do Povo] me senti tão indignado. Seria melhor que continuassem quietos, como ficaram por dois, do que fazer essa ‘ação de transparência'”, desabafou comigo um contratado da casa – que, por razões óbvias, terá a identidade preservada.
Na reunião, Filizola disse não ver problemas que a carta assinada por mais de 120 funcionários à direção fosse tornada pública. “Único pedido que eu faço é chequem [com] um a um [dos signatários]”, ela disse, numa pouco velada ameaça de retaliações.
A carta é uma iniciativa das mulheres da redação da Gazeta do Povo que cobrava uma posição da empresa – e foi motivada pela demora dela em se manifestar sobre o caso – e vai a seguir. Para preservar os signatários, os nomes deles foram omitidos.
Cara Ana Amélia e demais membros da direção da Gazeta do Povo,
No dia 4 de novembro de 2020 o colunista da Gazeta do Povo Rodrigo Constantino publicou em seu blog um artigo com o título “Estupro Culposo é Fake News”. As colaboradoras da Gazeta do Povo abaixo assinadas receberam o comentário com incômodo e enxergam no episódio uma violação às convicções do jornal.
No artigo de Constantino, é possível encontrar trechos como os seguintes:
“Minha preocupação é com quem alega que mulheres bêbadas, em situações comprometedoras, foram estupradas depois. Mulheres que consentem, ainda que bêbadas, foram de fato estupradas? Se alguém ESCOLHE beber e ESCOLHE, bêbado, pegar um carro e dirigir, e mata alguém, é crime DOLOSO, certo? Então por que essa desculpa de que a mulher bêbada não é responsável? (…) Há enorme diferença entre uma mulher violentada sob a mira de uma arma e outra que bebeu demais no quarto de um cara e “se arrependeu” depois…”
E ainda:
“Dito tudo isso, é ÓBVIO que um homem DECENTE jamais deveria se aproveitar da condição de uma mulher que ESCOLHEU ficar bêbada e relaxou os freios morais por conta disso ou demonstrou certa incapacidade de uso da faculdade racional DEPOIS da bebida. É indecente. Mas é estupro?”
O texto, embora não cite, faz referência ao caso da influencer Mariana Ferrer, que veio a público nesta semana. O episódio mostra um lamentável ataque à honra de uma suposta vítima de estupro durante uma audiência judicial, com a anuência do juiz e do procurador presentes no ato.
Entendemos a complexidade da tomada de qualquer decisão a respeito do assunto, mas gostaríamos de um canal de comunicação mais ativo da empresa para com os colaboradores, que sinalizasse o que está sendo feito em relação ao episódio. Gostaríamos, assim, de mais transparência da direção em relação ao tema e seus possíveis desdobramentos.
O colunista da Gazeta do Povo, em seu texto, culpa vítimas pela violência sofrida. Não existe “assumir o risco de ser estuprada”. É mais uma situação de opressão em cima da mulher, que não considera avanços de entendimento da sociedade de que estupro não é apenas o ato sexual imposto de forma violenta, mas também o que passa por cima do consentimento. A própria legislação estabelece a condição de vulnerabilidade.
É de uma irresponsabilidade imensa criar uma analogia em que o estupro seja equivalente a um crime de trânsito. Ao contrário deste, a desigualdade de gênero existente no país é histórica e, ao longo dos séculos, deixou impunes assassinatos de mulheres por seus maridos, e nem mesmo considerava o estupro como um crime. Ao alegar que uma mulher bêbada – ou sob qualquer situação de vulnerabilidade – tem o poder de consentimento, o autor do texto revitimiza e responsabiliza a mulher por um crime de responsabilidade DO HOMEM.
Constantino cobra “responsabilidade” da vítima e condena “banalização” do uso do termo estupro, mas descarta a palavra da vítima e ignora o fato de que a violência sexual tem inúmeras outras formas que não um ato consumado. Pior: dissemina esse entendimento deturpado, prejudicando o debate tão essencial.
A misoginia perpassa toda a construção do texto além de deixar subentendida a avaliação de que tipo de mulher se coloca sob risco.
Um retrato da violência de gênero é o número de estupros no Brasil reportados em 2019: segundo o Anuário de Segurança Pública 2020, 85,7% das vítimas eram do sexo feminino, sendo 1 estupro a cada 8 minutos. Além disso, os registros mostram 1 agressão física em decorrência de violência doméstica a cada 2 minutos, e um crescimento no número de feminicídios no país no primeiro semestre deste ano.
Tudo isso endossa o tamanho do problema da violência contra mulheres no país. Optar por ignorar a violência de gênero neste caso é um retrocesso de décadas de lutas e conquistas jurídicas que garantem a integridade da mulher.
Ademais, a lei que configura o estupro foi reformulada em 2009, se tornando mais abrangente e aumentando a proteção da mulher: o texto, que antes definia estupro como “constranger mulher à conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça”, passou a ser “constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso”, englobando o que antes era tipificado como “atentado violento ao pudor”.
Essa lei, ao unificar os crimes de estupro e atentado violento ao pudor em uma única redação, a atual definição do crime de estupro, fez desaparecer qualquer referência a honestidade ou recato sexual da vítima, pois o foco da referida lei não é mais a forma como as pessoas agem perante a sociedade, e sim a proteção da liberdade sexual do indivíduo (OLIVEIRA, RODRIGUES, 2011, p. 27).
Além de tudo, o autor do texto faz menção à reação de que o estupro tem “reação”, exige “força”, acontece “na marra”. Isso mostra um COMPLETO DESCONHECIMENTO da pessoa em relação ao tema: o medo no momento do abuso é paralisador e o não-consentimento da vítima pode acontecer de maneira difusa – e isso não invalida o crime. Sem entrar no mérito do que legalmente define cada um destes termos, fato é que o medo pode paralisar as vítimas, e o sentimento de pânico é comum e pode ser gerado por diversos motivos (COULOURIS, 2010, p. 19)
Artigo contraria convicções da Gazeta do Povo
A Gazeta do Povo lançou, em 2017, um caderno de convicções que são defendidas pelo jornal como essenciais, das quais a empresa diz não abrir mão. Entre essas convicções, está a dignidade da pessoa humana (página 5). Já no primeiro parágrafo, consta o seguinte trecho:
“Cada ser humano, independentemente de qualquer atributo ou característica (sexo, idade, raça, religião, etc) ou de qualquer comportamento que tenha adotado ou venha a adotar, tem um valor único, um significado que transcende a sua existência individual e que tem relevância para todos os demais homens. É o que queremos expressar quando falamos em ‘dignidade da pessoa humana’.
Mais à frente, no mesmo texto, a Gazeta do Povo ressalta a importância do cristianismo em sociedades pagãs ao afirmar a universalidade da dignidade humana entre pessoas que viam, por exemplo, as mulheres como objeto.
A Gazeta do Povo também defende que a dignidade da pessoa humana deve ser preservada “mesmo quando o exercício de sua autonomia não pode ser plenamente exercido”. E traz o seguinte exemplo: “alguém tão mergulhado nas drogas que já perdeu o controle de si mesmo”. Para o jornal, essas pessoas “Não são menos dignas, menos pessoas, que ninguém”.
Ora, se mesmo pessoas “tão mergulhadas nas drogas” merecem total respeito à sua dignidade humana, por que seria diferente com mulheres bêbadas? O colunista afirma que ao escolher e assumir o risco da embriaguez, mulheres podem ser estupradas. O que é o estupro senão uma extrema violação da dignidade da vítima?
Outro preceito defendido como convicção da Gazeta do Povo é a valorização da mulher (página 11). O texto reforça o mérito da pregação cristã, que “foi decisiva para uma reavaliação do valor da mulher, arrancando-a da condição de objeto ou propriedade de seu pai ou marido”.
A Gazeta do Povo também considera “básico” para a valorização da mulher “a construção de uma sociedade em que a mulher se sinta segura e até mesmo protegida, nunca em um sentido paternalista, mas como afirmação de sua liberdade”. Como uma mulher pode se sentir protegida se, caso seja embebedada ou dopada, até mesmo sem o seu conhecimento, possa ser violada em sua dignidade com a chancela da sociedade e de formadores de opinião?
Por fim, vale ressaltar que, mesmo tendo a liberdade de expressão como uma de suas convicções (página 25), como não poderia deixar de ser, a Gazeta do Povo entende que ela não é absoluta e tem limites. Diz o seguinte o editorial do jornal:
“É fácil perceber que há, sim, limites à liberdade de expressão. O respeito à dignidade humana, por exemplo, é um deles. Não podemos tolerar o racismo, as ofensas à honra ou qualquer agressão que diminua um ser humano em dignidade na comparação com seus iguais. O mesmo critério se aplica aos casos de apologia ao crime, pelo menos nos casos de apologia a crime especialmente graves”.
O que Rodrigo Constantino fez foi relativizar – de forma machista, covarde, retrógrada e em desacordo com o Artigo 217A do Código Penal – uma transgressão bárbara, o estupro. Criminalizou as vítimas nos casos de vulnerabilidade.
É de se imaginar, ao ler as convicções da Gazeta do Povo, que o jornal classifique esse crime como extremamente grave, o que faz com que o colunista tenha extrapolado sua liberdade de expressão.
Episódio pode afetar a cultura da empresa
O colunista foi totalmente desrespeitoso com as mulheres, atribuindo culpa e fazendo uma analogia descabida. As colaboradoras da Gazeta do Povo consideram extremamente frustrante compartilhar espaço com esse tipo de declaração, que não vem acompanhada de pedido de desculpas. Não se trata de mera distorção de palavras, ele foi agressivo, desrespeitoso e tratou indignamente as mulheres.
O colunista foi desrespeitoso com as mulheres e violou uma série de valores e convicções caros à Gazeta do Povo. Esse comportamento, sem nenhuma repreensão, estimula outros comportamentos similares. A Gazeta do Povo quer proporcionar um ambiente onde as mulheres se sentem seguras para desempenhar seu trabalho ou, ao contrário, um ambiente em que o machismo e a violência moral, verbal e, eventualmente, física, seja vista como tolerada pela direção?
Neste cenário, as colaboradoras entendem haver um incentivo ao assédio, à cultura de julgar a vítima e desestímulo a denúncias. Com isso, há perda de respeito e engajamento aos valores e ideais do grupo.
Toda a comunicação de Constantino – não só nesse episódio, mas em grande parte de sua produção – se mostra indigna de dividir espaço com a informação produzida em um veículo que diz valorizar comunicação e diálogo. Há dificuldade de manter produtividade inabalada na presença de episódios como esse, sem reação à altura por parte da empresa.
Com base no exposto neste documento, as colaboradoras da Gazeta do Povo, com o apoio de todos os colaboradores abaixo assinados, pedem um posicionamento da direção do jornal a respeito dos fatos narrados e dos argumentos expostos.
Além de publicar a Gazeta do Povo, o GRPCom é dono das afiliadas da TV Globo no Paraná, de um jornal impresso e de emissoras de rádio em Curitiba.
Correção: 6 de outubro, 19h45
Uma versão anterior deste texto informava, incorretamente, que Rodrigo Constantino havia sido contratado pelo portal Terça Livre, conhecido por publicar mentiras e teorias da conspiração de extrema direita. O texto foi corrigido.
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