Em 2010, a cidade de Toronto, um dos lugares com maior diversidade étnica do mundo e um suposto bastião do liberalismo, elegeu como prefeito um homem que muitos consideravam racista. Rob Ford era um imbecil vulgar e incoerente, um ex-vereador que entrava em conflito com seus colegas em público e fazia piadas racistas contra praticamente todos os grupos minoritários. Mas quando Ford concorreu com sucesso para o cargo, não foi na onda de uma reação branca contra a diversidade, como seria de esperar. Em vez disso, foram os imigrantes e as minorias, as mesmas pessoas que Ford supostamente insultava, que ajudaram a impulsionar sua candidatura. Mais que isso, apesar de toda a sua grosseria – provavelmente até por causa disso – eles o amavam.
“Ele tem problemas com drogas, está acima do peso e não tem educação – mas é o prefeito. Nesta história de sucesso contra todas as probabilidades, Ford é o anti-herói. Ele diz coisas que os desprivilegiados gostariam de dizer”, observou um perfil de 2014 na revista Toronto Life sobre a surpreendente popularidade do prefeito com as minorias.
Ford foi gravado certa vez embriagado, dizendo que “ninguém defende as pessoas como eu, seja qual for a raça”, para depois, de forma um tanto contraditória, lançar uma série de calúnias raciais e acrescentar: “Eu sou o cara mais racista que existe. Eu sou o prefeito de Toronto. ”
Eu morava em Toronto na época e testemunhei a ascensão de Ford. Enquanto a mídia se esforçava para classificá-lo como racista, um título que ele de certa forma abraçou, Ford chocou a todos ao atrair seu apoio mais entusiasmado dos subúrbios da classe trabalhadora, cheia de imigrantes, onde ele era considerado uma espécie de herói popular. Muitos dos meus amigos eram seus apoiadores. Até hoje, vários ainda se lembram com carinho das reuniões improvisadas para fumar maconha com o então prefeito, depois de encontrá-lo em postos de gasolina ou do lado de fora de restaurantes de fast-food na cidade. Embora Ford tenha nascido em uma família rica, as pessoas ignoraram isso, junto com seu uso de drogas pesadas, calúnias constantes e incompetência geral, para considerá-lo um homem comum acessível (para registro: eu não compartilhava desse sentimento.)
Quanto mais a mídia o condenava, melhor Ford parecia aos olhos de seus apoiadores. Ford não ofereceu muito em termos de políticas ou boa governança, mas sua personalidade bizarra representou um “dedo médio erguido”, como disse a Toronto Life, contra o que muitas pessoas consideravam um establishment arrogante, hipócrita e moralmente satisfeito consigo mesmo.
Não pude evitar de lembrar a história de Ford, que faleceu de câncer há quatro anos, enquanto observava as reações às pesquisas de boca de urna nas eleições presidenciais de 2020 nos Estados Unidos. Para o choque de muitos, as pesquisas pareciam mostrar um apoio crescente de não brancos ao presidente Donald Trump. Essas pesquisas podem ser imprecisas, e vale a pena esperar para tirar conclusões mais sólidas. Os números atuais, no entanto, sugerem que depois de anos do que muitos viram como racismo óbvio de Trump, ele atraiu mais eleitores negros e latinos nesta corrida do que em sua campanha de 2016 contra Hillary Clinton. Os dados, coletados pela Edison Research e publicados no New York Times, também sugerem que, além de aumentos marginais entre latinos e negros, Trump atraiu cerca de um terço de todos os eleitores asiáticos – certamente o suficiente para enfraquecer a alegação de que suas políticas atraem apenas um grupo restrito de nacionalistas brancos.
Dado o quanto ele parecia incorporar o candidato racista definitivo, vale a pena perguntar como Trump conseguiu, mesmo que marginalmente, aumentar seu apelo entre os eleitores não brancos.
Joe Biden ainda conquistou a grande maioria em todos os grupos demográficos não brancos, como os políticos democratas têm feito consistentemente por muitos anos. Em importantes áreas urbanas como Filadélfia, Milwaukee, Atlanta e Phoenix, os eleitores negros parecem ter sido decisivos para levar Biden à vitória na eleição.
No entanto, dado o quanto Trump parecia incorporar o candidato racista definitivo, e quão fortemente os progressistas têm apostado na mudança demográfica de longo prazo como um ponto a seu favor, vale a pena perguntar como Trump conseguiu aumentar ainda que marginalmente seu apelo entre os eleitores não brancos após quatro anos de políticas imprudentes e divisionistas. Colocando de outra forma: como alguém que parece ser um racista assumido conseguiu manter e até mesmo aumentar seu apoio entre negros, latinos e outros eleitores não brancos?
Uma razão pode ser que, para muitos eleitores não brancos, Trump simplesmente não se encaixava em sua definição de racismo. A compreensão do que constitui racismo é muitas vezes diferente entre as classes, especialmente quando estamos falando sobre conceitos muito ambíguos como “piadas” e “dogwhistles“, as mensagens cifradas direcionadas a determinado público. Mesmo quando Trump faz o que parecem ser afirmações raciais obviamente codificadas a respeito de imigração ou crime, não está claro se as pessoas não brancas sentem que ele está falando sobre elas pessoalmente. Trump parece feliz em abraçar apoiadores negros e latinos, por exemplo, contanto que eles pareçam se encaixar em uma certa imagem de sucesso e conservadorismo.
As categorias raciais, é claro, são complexas e os blocos eleitorais raciais claramente definidos são um mito. Abandonar a ideia de que imigrantes ou pessoas não brancas representam um tipo de bloco político único pode ser um bom começo. Trump, por exemplo, parece ter se beneficiado muito com o apoio cubano-americano no condado de Miami-Dade, na Flórida, uma comunidade que é rotulada como latina, frequentemente se identifica como branca e parece ter priorizado sua política anti-socialista acima de qualquer outra coisa.
Os políticos liberais, por sua vez, gostam de usar acusações de racismo para mostrar sua própria boa-fé e sua postura como os verdadeiros amigos das minorias – e merecedores do apoio político dessas demografias. Nem sempre funciona. Muitas pessoas de todas as origens se sentem desiludidas com um sistema de governo que é incapaz de melhorar suas vidas, e que acreditam estar zombando delas culturalmente – um estereótipo que a mídia de direita reforça de maneira implacável. A satisfação de eleger um candidato bizarro apenas para vê-los enlouquecer pode parecer algo que vale a pena.
Como Rob Ford anos atrás, Trump emprega alegremente quase todo almanaque de piadas raciais, sempre batendo de frente contra os pontos delicados do discurso retórico da elite do país. Seu comportamento parece ter alienado alguns eleitores brancos, particularmente os com educação universitária, que estão presos em uma disputa política e cultural com pessoas brancas que não têm formação universitária. Mas o comportamento geral de Trump não parece tê-lo prejudicado da mesma forma com os eleitores não brancos.
“A percepção de Trump como racista parece ser a principal força que empurra os brancos em direção aos democratas. Por que o padrão oposto seria mantido entre os eleitores das minorias – ou seja, as mesmas pessoas contra as quais o presidente está supostamente sendo racista?” escreveu Musa al-Gharbi, professor de sociologia da Universidade de Columbia, em um artigo profético escrito para a NBC News, publicado pouco antes da eleição. “Pode ser que muitos eleitores das minorias simplesmente não vejam alguns de seus comentários e políticas polêmicas como racistas. Muitas vezes, os estudiosos tentam testar se algo é racista, observando exclusivamente se a retórica ou propostas com as quais eles discordam ressoam entre os brancos. Muitas vezes, eles nem se preocupam em testar se as ideias podem também atrair as minorias.”
“No entanto, quando o fazem”, escreveu al-Gharbi, “os resultados tendem a ser surpreendentes”.
A retórica conservadora sobre questões como imigração, policiamento e crime muitas vezes parece ressoar entre os eleitores negros e latinos, pelo menos tanto quanto entre os eleitores brancos conservadores – e às vezes, de forma até mais intensa. Ambos os grupos, junto com uma parcela significativa de asiático-americanos, também são conservadores em algumas questões, especialmente religião, em comparação com os progressistas brancos que compõem grande parte da coalizão eleitoral democrata. Tudo isso, porém, não se traduziu em apoio da maioria ao Partido Republicano – pelo menos não ainda -, mas deve ser um sério sinal de alerta para os democratas que pensam que os eleitores não brancos estão garantidos.
Para os políticos democratas, faz sentido definir “racismo” de qualquer forma que pareça lhes dar uma vantagem sobre os republicanos.
No início deste ano, al-Gharbi escreveu outro artigo sobre o excesso de confiança que as elites liberais sentem sobre seu papel na definição da política de raça e racismo na América: as elites presumem que são elas que defendem as pessoas não brancas contra o racismo. A maneira como alguns progressistas supostamente utilizaram o tema para enfraquecer os apelos baseados na ideia de classe é apenas parte da história, conforme al-Gharbi argumentou no artigo, com o apropriado título “Quem consegue definir o que é racista?”
“As elites brancas – que desempenham um papel desproporcional na definição do racismo na academia, na mídia e na cultura em geral – em vez disso, parecem definir ‘racismo’ de maneiras que são compatíveis com suas próprias preferências e prioridades”, escreveu al-Gharbi. “Em vez de realmente desmantelar a supremacia branca ou capacitar de forma significativa os não brancos, os esforços muitas vezes parecem ser orientados para consolidar o capital social e cultural nas mãos dos ‘bons’ brancos.”
Na política eleitoral, o quadro tende a ser mais confuso, por conta de diversos fatores. Por exemplo, está claro que as acusações contra Trump como racista não vêm apenas de elites brancas educadas: muitos dos ativistas, políticos e pessoas comuns que soaram o alarme contra o presidente são, eles próprios, pessoas não brancas sem origens na elite.
No entanto, há uma lógica na crítica de al-Gharbi. Para os políticos democratas, cheios de autoconfiança nessas questões, há um óbvio sentido em definir “racismo” de qualquer forma que pareça lhes dar uma vantagem sobre os republicanos. Isso parece ser parte do ímpeto por trás da constante adoção de renovações de linguagem quando se trata de questões envolvendo pessoas não brancas, mesmo quando elas próprias nem sempre parecem compartilhar da mesma perspectiva.
Ao se considerarem os árbitros do que é e do que não é racista, os progressistas podem se arriscar a politizar a acusação e tirar o poder das pessoas não brancas – as pessoas que sofrem discriminação de verdade -, reduzindo assim uma questão realmente séria a uma arma política para acertar contas com outras elites. Esse tipo de uso politizado de acusações de racismo corre o risco de prejudicar as minorias ao drenar o poder de um conceito de que elas às vezes precisam para defender seus direitos e dignidade contra agressões. Até certo ponto, você pode procurar um exemplo do mesmo fenômeno quando se trata de como a acusação de antissemitismo é usada para desviar as críticas legítimas da política externa dos EUA contra Israel.
É difícil saber o que motivou os não brancos que apoiaram Trump nesta eleição. É possível, por exemplo, que sua postura de “homem forte” tenha ressoado entre os homens para quem o gênero possui mais importância do que a identidade racial em suas decisões de voto. Mas é claro que os democratas têm a oportunidade de combater tais influências culturais com políticas que fariam uma diferença material na vida das pessoas.
O caldo ralo da política de identidade racial simbólica oferecida pelos democratas não está ajudando muito as minorias, e muitas delas não vão continuar a aceitá-lo para sempre.
O caldo ralo da política de identidade racial simbólica oferecida pelos democratas não está ajudando muito as minorias, e muitas delas não vão continuar a aceitá-lo para sempre. Medidas como um aumento do salário mínimo e o Medicare for All, que amplia o acesso ao seguro-saúde, poderiam reduzir as desigualdades raciais de maneiras significativas e tangíveis, ao mesmo tempo em que atrairiam a classe trabalhadora branca, que se beneficiaria com as mesmas medidas. Em vez disso, durante anos, os democratas evitaram o mais ambicioso desses programas econômicos universais para fazer uso de apelos baseados na identidade, torcendo que seja o suficiente para fazê-los vencer. Tal abordagem já está mostrando sintomas graves de exaustão. Os democratas podem ter se esquivado da bala desta vez, por pouco, mas os liberais deveriam pensar em qual posição estariam hoje se não estivessem concorrendo contra um adversário orgulhoso e incompetente que foi o presidente responsável por um desastre histórico para a economia e a saúde pública.
Nada disso quer dizer que os democratas deveriam abandonar as questões e os valores que acreditam definir seu partido. O próprio esforço para combater a injustiça racial é positivo, e não deve ser abandonado. E, em minha humilde opinião, Trump é de fato um racista. Isso é evidenciado não apenas por suas palavras, mas pela crueldade e indiferença que ele frequentemente demonstra para com as pessoas não brancas nos EUA e no exterior. Pessoas de origem racial que optam por ignorar isso estão cometendo um grande erro. Mas o liberalismo americano também precisa atacar nas duas pontas: apoiar programas econômicos para melhoria universal, enquanto defende o fato de que pessoas de todas as origens na sociedade americana têm direitos e dignidades iguais.
Pode ser útil democratizar nossa atitude em relação à justiça racial – sobretudo contra alguns liberais de elite que estão tentando politizar o antirracismo para seus próprios ganhos. Se o racismo fosse tratado como um erro que as pessoas cometem e que pode ser retificado, e não como um rótulo moral que as define, isso poderia reduzir um pouco o calor da guerra cultural infinita que pode levar possíveis aliados a recuar, adotar uma postura defensiva, e esconder interesses econômicos comuns. A misericórdia e o reconhecimento da fragilidade humana universal são sentimentos bons para nossa discussão sobre problemas sociais como o racismo e a misoginia.
Quando Rob Ford morreu em 2016, milhares de pessoas de todas as origens marcharam nas ruas em uma manifestação genuinamente emocional de pesar por um político incompetente, desbocado e fumante de crack que também era, de acordo com o registro público, um racista. Ford, entretanto, era no final das contas apenas o prefeito de uma cidade. Trump, por outro lado, foi eleito para o cargo mais poderoso do mundo – o presidente de um país inteiro no qual milhões de pessoas, muitas delas parte de minorias, estão claramente pedindo por um homem forte.
Os resultados perturbadores desta eleição devem dissipar qualquer suposição de que a mudança demográfica irá, inevitavelmente, nos resgatar de tal destino. Apesar da derrota de Trump nas eleições presidenciais, agora mais do que nunca, o establishment liberal parece fraco para enfrentar os graves desafios da nação. Ainda há uma oportunidade de esclarecer as coisas e retrabalhar em uma abordagem política que faça apelo a uma coalizão sustentável da maioria dos americanos. Se essa eleição apertada nos diz alguma coisa, é que o tempo está se esgotando.
Tradução: Antenor Savoldi Jr.
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