Causou espanto a fiéis católicos uma foto em redes sociais de um padre segurando uma arma postada em dezembro de 2018. Edvaldo Betioli Filho, da Congregação dos Palotinos, posou com uma pistola nas mãos num centro de treinamento de tiros em Atibaia, no interior paulista. Na foto, o então vigário da igreja São João Batista, na Chácara Califórnia, zona leste da cidade de São Paulo, estava ao lado do instrutor do curso, Bene Barbosa, bolsonarista ferrenho defensor da liberação do porte de armas, e do blogueiro Bernardo Küster, militante católico de direita investigado pelo STF e enrolado na CPI das Fake News. Na conta do Instagram de Bene, ele dizia que o curso de tiro fora “abençoado” pelo padre.
A postagem da foto do padre com a arma foi apagada depois de sair no jornal O Globo. Betioli acabou transferido para uma paróquia na pequena Martinópolis, cidade do oeste paulista com 25 mil habitantes. Agora, um ano depois, a congregação dos padres Palotinos anunciou novamente a remoção do religioso para a paróquia Sagrado Coração, em Ribeirão Claro, município do norte do Paraná. Na época da campanha eleitoral, ele havia apoiado publicamente o prefeito eleito na cidade, Marcos Freita, do Republicanos – o partido ligado à Igreja Universal do Reino de Deus, do bispo Edir Macedo, e que abriga Carlos e Flávio Bolsonaro.
“O povo martinopolense deu uma lição gigantesca nas urnas: o tostão venceu o milhão; cerveja, gasolina e cargos já não têm a primeira palavra na escolha do voto da população. Desejo sabedoria e integridade ao novo prefeito”, comemorou Betioli, em sua página no Facebook.
Tanto ele quanto a igreja negam que a motivação da nova transferência tenha sido política. Mas Betioli confessou ter “desagradado algumas pessoas” ao elogiar Freita, político que ostenta fotos com Bolsonaro e seu filho Eduardo nas redes sociais. “No dia da eleição, eu fiz uma saudação ao prefeito eleito. Citei três palavras que geraram revolta”, afirmou o padre em seu programa “Caminho de Fé”, na Rádio Nova Onda FM de Martinópolis. “Mas não vamos envolver o nome de ninguém, o nome de políticos”, pediu. Os motivos da remoção, segundo ele, cabem ao superior provincial dos Palotinos, José Lino Reinaldo Oliveira. No último dia 25, foi realizada uma manifestação na cidade em apoio à sua permanência.
Católicos contra o petismo
Betioli é seguidor do padre Paulo Ricardo, de Cuiabá, um fã ardoroso do presidente Jair Bolsonaro. Ricardo já havia provocado polêmica semelhante nos meios religiosos ao ser fotografado, em 2015, segurando uma espingarda ao lado de outro ídolo da ala ultraconservadora católica, o ideólogo Olavo de Carvalho. Crítico contumaz do desarmamento da população, Paulo Ricardo alegou serem armas de caça e defendeu o direito de padre caçar. No início do ano passado, Bolsonaro, em sua conta no Twitter, republicou um vídeo do religioso dizendo que os católicos têm o direito de usar armas para sua legítima defesa.
Betioli tem compartilhado em suas redes vídeos e mensagens de Bolsonaro e Paulo Ricardo. De Olavo de Carvalho, reproduz no Facebook filosofices do tipo “nem peido vem tão rápido quanto opinião de brasileiro” e “aqui não tememos o futuro: se acabar o papel higiênico no Walmart, usaremos as Obras Completas de Lenin”. O padre também chamou o ex-presidente Luis Inácio Lula da Silva de “bandido” e “apedeuta”, ao comentar o encontro do petista com o papa no início do ano.
Desde o início da pandemia, em março, o padre desdenhou dos efeitos da covid-19 em suas postagens. No dia 2 daquele mês, afirmava que morria mais gente de dengue no país e dizia não entender “o pânico com o coronavírus”. No dia 17, disse que “se todos se preocupassem com a salvação das almas como se desesperam pelo coronavírus, o inferno estava vazio”. Quatro dias depois, postou o vídeo do presidente Bolsonaro defendendo a cloroquina como solução para a covid-19 e anunciando que o Exército passaria a fabricar o produto em larga escala, mesmo sem nenhuma comprovação de sua eficácia. No dia 25, reproduziu um texto do site extremista Brasil sem Medo que afirmava que a Organização Mundial de Saúde inventara uma pandemia “que enlouqueceu o mundo” e garantia que o coronavírus não era um vírus novo. Também subestimava o número de mortos em Wuhan, na China, e na Lombardia, na Itália.
Em julho, Betioli elogiou os evangélicos por continuarem a realizar os seus cultos e manter as igrejas abertas. “Se eu faço isso, abro a igreja e celebro a Santa Missa, serei chamado de irresponsável e inconsequente, imaturo que coloca vidas em risco”, protestou. “Triste tempo em que nossas prioridades estão de perna pro ar”. Em agosto, ele duvidou do total de 100 mortos pela covid-19 no país até aquele momento. Em outubro, acabou contaminado pelo coronavírus. Teve sintomas leves.
Nada disso parece ser um problema para a sua congregação católica. Para o padre José Lino Reinaldo Oliveira, superior provincial dos Palotinos, as declarações políticas de Betioli tratam-se “de posicionamento pessoal”. Oliveira também negou que a transferência do padre tenha razões políticas. “Não procede. É uma questão de necessidade interna, da vida da igreja”, afirmou. A foto de Betioli com uma arma foi considerada pelo provincial dos Palotinos um fato já “pertencente ao passado”. A questão foi esclarecida, segundo Oliveira, e o padre teria explicado que “estava com amigos naquele momento”.
Procurado nos dias 4 e 14 de dezembro, Betioli não foi encontrado. Não estava na casa paroquial, segundo funcionários.
Mídia positiva para o presidente
O papa Francisco, de orientação mais progressista, tem enfrentando oposição da ala mais conservadora da Igreja Católica. Usado por extremistas de direita, o cristianismo tem fundamentado a defesa de valores morais e a demarcação do inimigo típica da extrema-direita global. Não é diferente no Brasil.
Betioli e Paulo Ricardo são dois dos vários sacerdotes católicos conservadores extremamente atuantes nas redes sociais que agem como porta-vozes da agenda bolsonarista. Em Goiás, a direita católica também tem outro representante: Genésio Lamunier Ramos, pároco do distrito de Souzânia, em Anápolis.
Ramos foi notabilizado por seus vídeos com ataques ao PT nas eleições de 2020. Em vídeos, fez várias críticas ao candidato derrotado do PT à prefeitura da cidade, Antônio Gomide. Por causa dos ataques, foi condenado a pagar uma indenização a Gomide no valor de R$ 2 mil, por danos morais. Gomide havia pedido R$ 20 mil.
O padre afirmou ter sido petista, mas se “curado” depois. “Eu não gostava do Lula, eu era apaixonado por ele”, revelou. Em uma missa no dia 18 de outubro, durante a homilia, o sacerdote criticou Gomide, ex-prefeito da cidade, por ter se desligado da administração para concorrer ao governo de Goiás, em 2014. Genésio disse que o petista deixou a prefeitura para “a bomba” estourar “no colo do vice João Gomes”. Na visão do religioso, Gomide seria “do partido da corrupção”, e os brasileiros deveriam fazer de tudo “para não deixar o PT voltar” e Lula “decolar e subir à Presidência”.
Em um dos vídeos, padre Genésio, usando batina e chapéu pretos, com uma Bíblia e uma bandeira do Brasil nas mãos, ainda acusou o PT de “assaltar a nação brasileira e os trabalhadores” e se disse contra “a agenda anti-cristã” do partido de Lula. Em outubro, o religioso participou de uma homenagem ao deputado federal bolsonarista Major Vitor Hugo, do PSL goiano, na sede da Companhia de Policiamento Especializado de Anápolis, onde posou em fotos ao lado de policiais. Além de demonstrar simpatia por Bolsonaro, o padre Genésio recomenda a seus seguidores as obras de Olavo de Carvalho.
Em junho, um grupo de padres e leigos católicos participou de uma live com o presidente Bolsonaro, em busca de verbas para TVs católicas. Vários religiosos acenaram com a proposta de “mídia positiva” para o presidente. Segundo eles, a ideia – embora nem todos os religiosos admitam – é que o governo, em contrapartida, dê anúncios para esses veículos e novas concessões para a expansão da rede de comunicação católica. O encontro foi organizado pelo deputado Major Vitor Hugo.
Um dos participantes, o padre Welinton Silva, da TV Pai Eterno, ligada ao Santuário Basílica do Divino Pai Eterno, na cidade goiana de Trindade, falou explicitamente da “mídia positiva” para Bolsonaro. “Estamos precisando mesmo de um apoio maior por parte do governo para que possamos continuar comunicando a boa notícia, levando ao conhecimento da população católica, ampla maioria desse país, aquilo de bom que o governo pode estar realizando e fazendo pelo nosso povo”, justificou.
O padre cantor Reginaldo Manzotti lembrou a Bolsonaro o “contraponto” que os católicos poderiam fazer para ajudar a melhorar a imagem do governo. Manzotti é uma estrela gospel: já lançou 12 CDs e quatro DVDs e vendeu mais de um milhão de cópias, em gravações ao lado de nomes como Thiaguinho, Joana e a dupla Fernando e Sorocaba. O padre artista também é fundador da Associação Evangelizar é Preciso e ligado ao movimento carismático (que difunde os poderes do Espírito Santo, como a cura, o milagre e o dom de falar línguas estranhas). Na live, Manzotti lembrou ao presidente “o peso” que uma mídia negativa pode ter, disse que a TV católica “é uma potência” e anunciou que quer estar ao lado e “caminhar juntos” para construir um Brasil melhor”.
‘Qualquer cristão que defenda esse governo que está aí, não deve estar lendo o Evangelho de Jesus Cristo’.
As ações dos religiosos simpáticos a Bolsonaro não têm sido bem recebidas em toda a Igreja Católica. As punições, no entanto, são muito raras – ainda que a orientação de padres defensores de arma contrarie frontalmente a visão do papa Francisco. Pedofilia e escândalos financeiros, em geral, são punidos com expulsão sumária ou a perda de cargo. Mas problemas ideológicos são muito mais difíceis de gerarem consequências. As comunidades conservadoras católicas têm sido alvo de questionamentos pela hierarquia da Igreja, mas esses processos “são mais lentos”, explicou ao Intercept o padre e teólogo Manoel José Godoy, professor da Faculdade Jesuíta de Belo Horizonte e do Centro Bíblico Teológico Pastoral do Conselho Episcopal Latino-Americano. Ex-assessor da Confederação Nacional dos Bispos, a CNBB, Godoy disse ser “impossível” um cristão, diante do Evangelho, defender o atual governo.
“Não só o padre, mas qualquer cristão que defenda esse governo que está aí, não deve estar lendo o Evangelho de Jesus Cristo nem se orientando segundo a sua prática”, criticou. “É praticamente indefensável a atual gestão no campo econômico e no campo político. Estritamente na área da saúde, é um desastre. É um governo negacionista que, desde o princípio, chamou a pandemia de gripezinha e provocou aglomerações desnecessárias”.
Para o teólogo, não é possível também um padre defender armamento, “o desmonte dos direitos trabalhistas, a concentração de renda e a deterioração do salário-mínimo”, além de compactuar com manifestações contra o uso de máscaras na pandemia e a defesa de medicamentos como a cloroquina, sem comprovação científica. “É não ser cristão”.
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