Em março do ano passado, Bolsonaro publicou no Twitter um vídeo pornográfico. Você se lembra do episódio Golden Shower, o primeiro grande vexame internacional de um governo com apenas três meses de mandato. Para muitos juristas, o presidente cometia ali o seu primeiro crime de responsabilidade, o que acabou motivando o primeiro pedido de impeachment protocolado na Câmara. De lá para cá, Bolsonaro protagonizou uma série de outros episódios que poderiam ser enquadrados como crimes de responsabilidade. Passado um ano após o primeiro pedido de impeachment, outros 14 crimes de responsabilidade já haviam sido cometidos. Até os dias de hoje esse número certamente já ultrapassou a marca dos 20, mas eu já perdi as contas.
Bolsonaro já deixou claro qual é o seu projeto para o país: a dilapidação do estado e a depredação da democracia. Trata-se de um projeto até aqui muito bem-sucedido: a saúde, a educação, o meio ambiente, a cultura, enfim, todos os serviços públicos estão sofrendo um processo de desmonte gradual. Gradual, mas acelerado. Ao que tudo indica, sobrará pouco do país ao final do mandato.
Só um impeachment poderia interromper este mandato que despreza a democracia e asfixia os que mais dependem dos serviços públicos: os mais pobres. Passados dois anos, não vemos no horizonte a possibilidade de impeachment. A principal razão para essa paralisia seria a falta de apoio do Congresso à sua aprovação. De fato, um pedido deste tipo hoje não contaria com o voto da maioria dos deputados e senadores. Faltam as condições políticas. Mas isso não justifica a paralisia da oposição. Apoio político se constrói, não cai do céu. E nada está sendo feito para mobilizar os deputados a mudarem de ideia.
O clamor pelo impedimento de Dilma começou logo após a sua reeleição. Ela contava com popularidade e uma boa base de apoio no Congresso. Mas a oposição soube criar o clima e, com a ajuda fundamental da imprensa, colocou a palavra “impeachment” com força no noticiário. As manifestações de rua foram uma consequência desse processo.
A popularidade começou a desabar, e Dilma foi perdendo aliados políticos depois de um “grande acordo nacional” ser articulado para derrubá-la. Todas as tentativas do governo de frear o aprofundamento da crise econômica foram barradas pelas “pautas bombas”. Isolada politicamente, Dilma acabou sendo derrubada por um motivo ridículo: pedaladas fiscais — algo infinitamente menos grave que todos os crimes de responsabilidade cometidos por Bolsonaro.
A oposição de hoje não aprendeu nada com os opositores de Dilma? O impeachment de Bolsonaro teria a vantagem de ser dentro da lei, sem forçações de barra institucionais, sem golpe. O que falta para nossa oposição começar a criar um clima favorável ao impeachment desse homem que vem praticando atentados sucessivos à democracia?
Rodrigo Maia tem sido muito cobrado por não dar andamento aos pedidos de impeachment, mas todos os líderes oposicionistas deveriam ser igualmente cobrados. Aceitar o impeachment agora, sem uma articulação que garanta sua aprovação, seria um vexame que fortaleceria o bolsonarismo. Era para os líderes partidários de oposição estarem à frente de uma campanha nacional pelo impeachment desde os primeiros sinais de que o presidente desrespeita sistematicamente a Constituição.
Mas sempre houve um consenso silencioso entre essas lideranças de que o ideal seria deixar Bolsonaro sangrar, perder popularidade e, assim, ficaria mais fácil derrotá-lo em 2022. Ficaria isolado com os radicais, veria a crise econômica se aprofundar e perderia apoio popular.
Milhares de mortes não estão sendo evitadas por culpa de um presidente que se recusa a guiar-se pela ciência.
Mas o cenário mudou. Preocupado com a perda de popularidade, o presidente abrigou o centrão debaixo das suas asas e conseguiu dar um certo ar de normalidade para o governo. A sangria foi estancada e hoje Bolsonaro possui uma aprovação popular espantosa (37%) para um governo que, sob qualquer aspecto que se olhe, está destruindo o país de maneira acelerada. Quase 40% dos brasileiros não reconhecem Bolsonaro como o responsável direto pelo aprofundamento da crise econômica, política e sanitária do país.
De todas as tragédias que estão nos sendo impostas, a mais grave de todas está em curso: milhares de mortes não estão sendo evitadas por culpa de um presidente que se recusa a guiar-se pela ciência. Desde o início da pandemia, Bolsonaro foi trocando de ministros da Saúde até encontrar um militar que renega a ciência e o obedece cegamente. Comandou uma intervenção militar no ministério da Saúde durante uma crise sanitária sem precedentes. Logo no início da pandemia, a Anvisa fez uma série de recomendações que o governo não seguiu. Entre elas, o órgão sugeriu que viajantes só deveriam embarcar para o Brasil mediante apresentação de um documento que comprovasse o resultado do teste de coronavírus. Não é preciso ser epidemiologista para saber que essa omissão escancarou as portas para a chegada do vírus em peso.
Quantas milhares de vidas poderiam ser poupadas se não fôssemos presididos por um político que comete sucessivos atentados à saúde pública, seja abraçando pessoas aglomeradas na rua, recomendando remédios sem eficácia comprovada, ou boicotando a vacina de todas as formas. Mesmo diante desse cenário trágico, o presidente da Câmara afirmou na semana passada que não é um bom momento para o impeachment porque a prioridade agora é o combate à pandemia. É como se as omissões de Bolsonaro não fossem o principal entrave para o combate ao vírus.
Há quem diga que Bolsonaro deve continuar até o fim por uma questão pedagógica: o povo precisaria sofrer as consequências dos seus votos e criar maturidade democrática. Eu concordaria se este fosse apenas um mau governo, mas estamos falando de uma tragédia sem precedentes em curso. A sua permanência tem um custo alto para a democracia. Um custo que aumenta à medida que o tempo vai passando. Vale a pena pagá-lo? Eu tenho certeza que não. Na prática, o impeachment de Bolsonaro salvará vidas.
Esperar 2022 para salvar o país é um risco tremendo. Se, na melhor das hipóteses, Bolsonaro não for reeleito, nós já sabemos o que irá acontecer: ele acusará fraude nas eleições e usará a máquina do estado para impedir que outro assuma seu lugar. Já está escrito nas estrelas. Bolsonaro consegue ser ainda mais antidemocrático que Donald Trump, e nossa frágil democracia talvez não seja capaz de suportar esse tranco como foi a norte-americana.
Quem passou o mandato fustigando o povo contra os demais poderes e chegou a decidir que mandaria tropas para o Supremo não deixará de criar empecilhos se perder o cargo nas urnas. Quanto mais tempo demorar o impeachment, menos estado e menos democracia vão sobrar para a próxima eleição.
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