Uma artista cria, em um país misógino no qual um estupro é cometido a cada 8 minutos, uma obra gigante representando uma vulva/ferida.
Uma artista branca cria, com a ajuda de mais de uma dezena de homens negros, uma obra gigante representando uma vulva/ferida.
Uma artista branca cria (com a ajuda de mais de uma dezena de homens negros), em um país racista e misógino onde homens pretos são 75% dos mortos pela polícia e no qual um estupro é cometido a cada 8 minutos, uma obra gigante representando uma vulva/ferida.
Cabem outras várias combinações acima: podemos inserir as variantes Nordeste, usina, canavial, patriarcado, branquitude, desmatamento, monocultura, machismo, classe, exclusão, exploração, arte, mercado, cisgeneridade, emprego, desemprego, feminismo, etc.
A fotografia publicada pela artista Juliana Notari, na qual ela aparece em primeiro plano e uma série de homens negros ao fundo, é um registro sobre a história do Brasil.
Talvez mais ferida que buceta.
Um fato me chamou atenção em toda a discussão: a grita, principalmente nas redes sociais, justamente sobre os rapazes trabalhando na obra. No Brasil do racismo, da covid-19 e do desemprego – características ainda mais sublinhadas pela gestão terrorista-patética do governo federal –, a questão trabalho, raça e sobrevivência é mais que eloquente.
Preto, trabalhador/artista, o músico Graxa escreveu em suas redes sociais um texto que me fez refletir ainda mais. Segue um trecho:
“Esses dias a artista Juliana Notari fez um vaginão gigante e a turma descobriu que a maioria da mão de obra era composta por gente preta. Essa galera vive onde, meu anjo do mar? Pagou direito, valorizou meu trabalho, então tá tudo em casa.”
Teve mais combustível para analisar o encontro arte + raça + trabalho: dias depois da viralização da obra de Notari, o artista branco Delson Uchoa publicou em sua conta no Instagram a foto de um dos seus trabalhos, vários deles em grande escala, repletos de detalhes e feitos a várias mãos – a maioria delas de homens negros. Um comentário de uma seguidora, uma artista branca, apareceu momentos depois: “os escravos”, escreveu ela. Uchoa respondeu que sua equipe era contratada e que assinava a carteira dos funcionários.
O comentário da artista, apagado momentos depois pela própria, mostra como, em nome de realizar atos de repúdio a situações racistas ou supostamente racistas, terminamos produzindo outra. Assim, reiteramos a desumanização que qualquer ato como este comporta. Isso também aconteceu nas críticas (várias delas preciosas) da obra “Diva”, quando muita gente disse que os homens presentes na escavação da vagina/ferida foram “usados”.
Mas o que pensam esses homens pretos e o que estes trabalhos significam material e simbolicamente para eles?
André dos Santos, 39 anos, trabalha há 15 com Delson Uchoa e surge em diversas das imagens que o artista, vindo de uma família abastada alagoana, posta. Antes, André trabalhava como pintor de paredes, por empreitada, e não tinha carteira assinada. Com um salário mínimo e meio por mês mais a renda de sua companheira Marineide, cabeleireira, está terminando de construir uma casa maior e mais confortável. Seus primos Jedival e José também trabalham, por diárias, com o artista, que chegou a contratar cinco pessoas da família de André com carteira assinada até a chegada da covid-19.
André tem consciência do que sua cor representa: “a gente sente que te olham diferente em muito lugar onde você passa quando você é preto, quando é pardo. Mas só trabalho onde sei que há respeito e confiança pelo outro. Por onde passei, foi assim.”
Filipe Firmino, 29, foi um dos 12 homens que ajudaram a esculpir a vagina/ferida em uma encosta da Usina Santa Terezinha, na mata sul pernambucana. O trabalho começou em 2019 e não parou, como deveria, durante a pandemia em 2020, o que revela a manutenção de uma lógica de exploração no campo da arte. Foram cerca de oito horas diárias de trabalho na usina, localizada na Mata Sul pernambucana, região canavieira que sustentou, ao custo da escravidão, muitas famílias que seguem no topo da elite econômica nordestina.
A repercussão do caso, que foi parar em vários veículos no exterior do país, não espantou Filipe. “Uma obra daquela proporção é uma ousadia. De longe, a gente olha e pensa que é uma pintura, um quadro, uma escultura, um banner gigante. Fiquei orgulhoso, foi um trabalho novo pra gente.”
Filipe sabe que também fez arte. André me diz que a “executa”.
Homem preto que já trabalhou em banca de feira, montando exposição, escritor, professor e poeta, Allan da Rosa observa a manutenção, também no campo da arte, da desqualificação do trabalho braçal, da separação entre quem pensa e quem executa. Mas a mão preta também é mão pensante, ele diz.
“Desses trabalhadores pretos, as mãos que constroem a performance, o happening, a obra: quantos estão estagiando, quantos também gostariam de assinar os trabalhos? Eles existem? Como eles olham para as obras que eles mesmos fazem? A camada que dá as cartas no circuito da arte contemporânea está bem longe de compreender o que é a presença negra – e especificamente a presença preta do homem – em sua história”.
Sem perder isso de vista e passando pelos constrangimentos impostos por muitos brancos “bem intencionados” – depois da pandemia, Allan já recebeu mais de 40 convites para participar de graça de eventos em nome de “representatividade” –, ele chama atenção para as diferenças entre as condições de escravidão e a de trabalhadores registrados, esta gente inserida em um contexto capitalista que tudo engole e assimila. Gente que precisa manter casa e comida e circular dentro da boca do dragão.
Mas quando mira as fotografias de Notari e Uchoa, muita gente – e muita gente branca – faz simplesmente a rápida conexão entre elas e os quadros do pintor francês Jean-Baptiste Debret, que esteve no Brasil no começo do século 19 e registrou situações cotidianas da então colônia. Eram cenas como esta:
Sim: a imagem da mulher branca servida por pessoas escravizadas repercute simbolicamente, no Brasil do século 21, não só nos trabalhos de Notari e Uchoa, mas na maioria das relações trabalhistas do país onde, por exemplo, 95% dos quadros de lideranças das 500 maiores empresas são ocupados por pessoas brancas.
Mas nem André, nem Filipe ou outras pessoas negras trabalhando nesse Brasil de 15 milhões de desempregados são escravas: são antes de tudo fruto de uma abolição precária, de um estado que instalou uma política de branqueamento social e que lançou a pele escura para as periferias e o subemprego. São fruto de um país que durante décadas impediu seus acessos às universidades, que concentra renda como poucos no mundo e que continua dizimando principalmente homens pretos jovens. Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, entre 10 pessoas mortas pela polícia em 2019, oito eram homens negros.
Estas pessoas não são escravas e não deveriam, antes de tudo por respeito às suas humanidades, serem classificadas assim.
Entender isso não é liberar pessoas brancas, muitas delas empregadoras de pessoas negras, de suas obrigações não só trabalhistas, mas sobretudo éticas e, deveriam, antirracistas. Não tenho a menor dúvida que a própria lógica capitalista, que se funda na escravização de pessoas, seja uma grande responsável por essa desumanização – mas se é dentro dela que a roda gira hoje, então que negras e negros recebam as benesses diariamente ofertadas como se fossem “para todos”.
Se isso é impossível dentro desse sistema, então é inconcebível mantê-lo.
Na periferia do poder, é preciso manter-se vivo para tentar chegar até o coração dele.
Há outro aspecto crucial que irmana as imagens dos quadros de Debret e os homens negros trabalhando nas obras de Juliana Notari e Delson Uchoa: os pretos e pretas ali expostos são pouco chamados para falar sobre si nos momentos em que suas presenças estão sendo debatidas. Se no século 19 isso foi realidade por questões da escravidão, hoje a questão seria, me parece, de raça, de classe e de uma notável predisposição branca ao “salvacionismo”.
Percebam que, historicamente, contou-se a história de negros escravizados sem se dar relevância para suas lutas e estratégias – suas agências e sua autonomia de pensamento, no final das contas. Isso porque sublinhar estes aspectos seria também sublinhar a enorme inteligência e capacidade destas pessoas, cujo maltrato histórico e todas as tentativas de apagamento jamais – JAMAIS – conseguiram prosperar.
Nessas estratégias, diversos pactos foram firmados, todos eles em nome de garantir a sobrevivência, fosse física, fosse simbólica. É preciso deixar evidente que não se pode romantizá-los, na medida em que eles não significaram o fim da exploração ou mesmo da morte. Também é vital compreender que tais acordos, por outro lado, não se traduziam em docilidade dos negros e negras em relação aos seus proprietários/empregadores. O rolê era – e ainda é – outro.
Mas foi, por exemplo, através destes pactos sempre tensos, que populações de pessoas super exploradas desenvolveram uma série de atos de enorme força e que se tornaram expressão de beleza, de porrada, de resistência.
O maracatu rural, pensando a partir da arte, da criação, é um desses exemplos: nascido nos canaviais (eles de novo) pernambucanos no início do século 20 também por pessoas recentemente escravizadas, ele é síntese das contradições ainda fortes entre capital, trabalho e cultura popular; é síntese de ação coletiva e de manutenção da vida.
É isso o que observa Roseana Medeiros em sua pesquisa “Maracatu rural: luta de classes ou espetáculo?”. “Não se pode deixar de considerar que o maracatu rural, como manifestação cultural, emerge no seio de uma sociedade de classes bem nítida e se trata também e sobretudo de uma expressão política, ideológica, uma maneira de contestar a realidade opressora.”
No trabalho de Roseana, um cortador de cana, explicando as origens do maracatu, diz: “Porque o senhor de engenho humilhava muito o trabalhador, ele ficava muito revoltado, porque o salário era pouco, ele não dá o que ele tem, então vamos humilhar o morador”.
O maracatu rural era e é, também, uma estratégia de “hackeamento” produzido com beleza e tensão pela pobreza, uma maneira de gozar e de contestar. Na periferia do poder, é preciso ser ligeiro. Na periferia do poder, é preciso manter-se vivo para tentar chegar até o coração dele.
É ali que a festa, que é revolução, pode – e deve – acontecer.
Pode parecer muito louco para quem curte sempre tutelar os outros – um ato de vaidade e, porque não, racismo –, mas pessoas negras, mãos que fazem e pensam, falam e agem por si mesmas.
Trabalharam e criaram a obra “Diva”, de Juliana Notari
Alexsandro da Silva Santos
André Fillipe Firmino dos Santos
Weivisson Ivanildo da Silva
José Ricardo da Silva
José Lindemberg Pereira
Lorival José da Silva
Jackson Oscar da Silva
Elias Miguel da Silva
Orlando Sisinato da Silva
Carlos Miguel da Silva
José Renildo Lourenço
Trabalham e criam com o artista Delson Uchoa
André dos Santos
José Anildo dos Santos
Gedival João dos Santos
Atualização, 27 de janeiro, 12h45
Os títulos do texto foram atualizados. A expressão entre aspas “escravos” foi suprimida para não gerar uma confusão na interpretação do texto da colunista que condena seu uso.
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