Esta reportagem foi originalmente publicada no livro “Vaza Jato: os bastidores das reportagens que sacudiram o Brasil”. Compre aqui.
Deltan Dallagnol estava obcecado pelo poder da Rede Globo no segundo semestre de 2015. A força-tarefa da Lava Jato colecionava troféus: em junho, os procuradores chefiados por ele haviam conseguido a prisão dos presidentes das superpoderosas empreiteiras Odebrecht e Andrade Gutierrez, Marcelo Odebrecht e Otávio Marques de Azevedo. O ex-ministro José Dirceu, o principal articulador político do PT, havia sido preso em 3 de agosto. O procurador-chefe da Lava Jato sabia que era o momento de capitalizar as vitórias.
As conversas do Telegram revelam que a obsessão de Dallagnol pela Globo convivia com outra: o projeto das dez medidas de combate à corrupção. Para o procurador e seus aliados, a série de mudanças legislativas iria fechar a porta para novos casos de corrupção, como o da Petrobras, e era uma mudança fundamental para transformar o país. Se houvesse apoio da mais influente organização de mídia do país, o projeto ganharia tração. “a globo é, como Vc diz, um transatlântico… não só para mudar de direção, mas também para impulsionar kkkk”, escreveu Dallagnol a um repórter da emissora em agosto daquele ano.
No final daquele mês, o Telegram de Dallagnol lançou uma notificação que iniciaria uma transformação na percepção do Brasil sobre o modelo de combate à corrupção defendido pela Lava Jato. Era uma mensagem de um colega de Ministério Público Federal chamado Daniel Azeredo, que se orgulhava de ter um “ótimo contato” com José Roberto Marinho, um dos filhos de Roberto Marinho, vice-presidente do Grupo Globo e presidente da Fundação Roberto Marinho.
Em um grupo do Telegram com apoiadores do projeto das dez medidas contra a corrupção, Azeredo comentou sobre um encontro com um dos chefões da Globo.
“Deltan, jantei na semana passada com o José Roberto Marinho (com quem tenho um ótimo contato desde a Rio +20) da Globo e conversei sobre a campanha e novas formas de aprofundarmos a divulgação. Falamos por alto em uma série no jornal nacional comparando os modelos de combate a corrupção de outros países e mostrando como as 10 medidas aproximaria o Brasil dos sistemas mais eficientes do mundo, mas há abertura para outras ideias. O diretor executivo de jornalismo da Globo está em contato conosco para conversar sobre o assunto. Vou fazer uma conversa inicial e colocá-lo em contato com você tudo bem?”, escreveu o procurador em agosto de 2015, no grupo Parceiros/MPF–10 Medidas.
“Shou heim”, vibrou Dallagnol.
Horas mais tarde, Azeredo usou o Telegram para disparar mensagens privadas alertando o colega:
25 de agosto de 2015 – Chat pessoal
Daniel Azeredo – 17:26:30 – Oi Deltan! Aqui é Daniel do Pará! Vc viu minha mensagem no grupo sobre o contato com a Globo? Precisaria do seu ok para avançarmos …
Deltan Dallagnol – 22:37:40 – Respondi lá, shou!! Sensacional!!!! Bora!! Já tnha pedido pro NOME SUPRIMIDO e ele disse que apresentou um projeto ao JN
Dallagnol – 22:37:44 – Se vier ordem de cima, ele manda ver
Dallagnol – 22:37:56 – Ele está em férias agora mas já falei com ele depois da sua msg e ele é empolgado
Azeredo – 23:02:20 – Maravilha!! O diretor fez contato hoje e pediu para trabalharmos com tempo essa série até para não parecer que a campanha é da globo … Mas disse que já podemos fazer um levantamento de informações para passar a eles … Vou mandar no Grupo da SCI tudo bem!?
Dallagnol – 23:13:00 – Claro, shou Daniel!!! Minha sugestão pro NOME SUPRIMIDO foi fazer no esquema “problema – soluçaõ”
Azeredo também compartilhou a informação no grupo SCI/PGR e recebeu um elogio do colega Rodrigo Leite Prado, do MPF de Minas Gerais: “Daniel, já disse e repito: vc é um jênil! Delirando um pouco, se a Globo comprar sua ideia, poderíamos oferecer algo que de que eles gostam muito: casos, divulgados pelas emissoras locais, em que a adoção das Medidas teria evitado a impunidade. Daria boas suítes com custo pífio para o MGTV, o PRTV etc, sobretudo como opção nos dias em que as notícias não estão sobrando…”.
Até ali, Dallagnol e equipe privilegiavam a Globo sempre que possível. Em 3 de julho de 2015, por exemplo, enquanto o grupo comemorava mais um avanço nas investigações, o procurador pediu para os colegas segurarem a informação. “Não passem pra frente, vamos dar pro JN de amanhã em princípio…”, disse no grupo FT–MPF 2, se referindo ao principal programa jornalístico da emissora, o Jornal Nacional. Dallagnol queria repassar à Globo a descoberta, até ali restrita à força-tarefa, de que o ex-diretor da Petrobras Paulo Roberto Costa recebeu depósitos em contas na Suíça em datas próximas a telefonemas trocados entre Bernardo Freiburghaus, apontado como operador da Odebrecht, e Rogério Araújo, um executivo da empreiteira. O assunto permaneceu oculto no dia 3 de julho, mas voltou à tona entre os procuradores três dias depois:
6 de julho de 2015 – Chat FT MPF Curitiba 2
Deltan Dallagnol – 11:17:28 – Caros não juntem as info da Ode antes de conversarmos
Dallagnol – 11:17:45 – Moro vai esperar para info em HCs
Dallagnol – 11:17:53 – E estou falando com JN
Athayde Costa – 11:20:36 – Cf passou para o Estadao
Costa – 11:21:39 – Brincadeirinha…..
Costa – 11:22:36 – to tentando com a tim os extratos de 2009 tb
Dallagnol – 11:29:52 – Limite pra passar pro JN é17h
Mesmo antes de terminar essa conversa, Dallagnol já falava com o jornalista da Globo para tratar do repasse da informação exclusiva:
6 de julho de 2015 – Chat pessoal
Deltan Dallagnol – 11:18:20 – Oi NOME SUPRIMIDO , devo passar pra Vc ou pra NOME SUPRIMIDO aquele material?
Dallagnol – 11:18:28 – Ele deu uma melhorada até
Dallagnol – 11:18:48 – Pergunto pq ele me perguntou a respeito…
NOME SUPRIMIDO – 11:19:40 – Oi dr deltan. Aquele o sr deve passar pra mim
NOME SUPRIMIDO – 11:19:48 – Imagino que ele tenha ficado sabendo depois né
NOME SUPRIMIDO – 11:20:00 – Obrigada por me contar
NOME SUPRIMIDO – 11:20:40 – Ele te perguntou do material hoje ou na sexta?
NOME SUPRIMIDO – 11:20:48 – Pq conversamos na quinta
Dallagnol – 11:21:23 – Sexta depois de eu te ligar, mandou uma msg
NOME SUPRIMIDO – 11:21:47 – Então é pra mim mesmo, eu pedi primeiro , ele deve ter me ouvido conversar com a editora rs
Dallagnol – 11:21:59 – como nao falamos pra mais ninguém, imaginei que Vc falou…
NOME SUPRIMIDO – 11:22:08 – Pois é! Eu não falei!
NOME SUPRIMIDO – 11:22:32 – Mas tudo bem, fica entre nós
NOME SUPRIMIDO – 11:22:40 – Posso passar ai ou quer definir um horário
Dallagnol – 11:23:08 – Vamos nos falando. Mas te passo hoje com certeza. Qual o limite de horário?
NOME SUPRIMIDO – 11:23:28 – Umas 17h no máximo. Senão aperta o fechamento da matéria e pode não ir ao ar por conta disso
Dallagnol – 11:23:32 – Qdo for lá, queria entender melhor esse negócio do NOME SUPRIMIDO…
Dallagnol – 11:23:40 – Ok
NOME SUPRIMIDO – 11:23:44 – A gente conversa lá
Dallagnol – 11:30:15 – Pode passar 17h lá. Se ficar pronto antes, aviso
NOME SUPRIMIDO – 11:30:35 – Combinado
A informação de Dallagnol realmente foi aproveitada pela Globo, que veiculou uma reportagem de quase dois minutos no Jornal Nacional daquela noite, 6 de julho. A matéria mostra trechos de um pedido do MPF para manter as prisões de Marcelo Odebrecht e dois executivos da empreiteira. O argumento eram as novas descobertas sobre as movimentações da empreiteira no exterior.
Esse documento já estava pronto desde o dia 2 de julho, mas ainda não tinha sido juntado aos autos da Justiça Federal do Paraná — ou seja, não estava público. A força-tarefa só anexou esse documento no processo às 20h19 do dia 6: onze minutos antes do início do Jornal Nacional daquela noite. Uma espécie de vazamento legalizado.
No dia 21, um repórter da emissora perguntou pelo Telegram se o coordenador da Lava Jato faria alguma denúncia na sexta-feira seguinte. Dallagnol abasteceu o jornalista. “Haverádenúncias sim, e não comente com ninguém mas te garanto que Vc não vai se arrepender. Venha. Mas não comente com ninguém. A ASSCOM vai informar jornalistas amanhã só, creio”, adiantou. “Vc não sabe disso”, acrescentou Dallagnol.
Três meses depois de alimentar jornalistas da emissora, o contato de Dallagnol com a cúpula da Globo finalmente avançaria.
Novembro de 2015 foi mais um mês movimentado na Lava Jato. Sucessivas fases da operação prenderam o pecuarista José Carlos Bumlai, contumaz frequentador do Palácio do Planalto nos tempos de Lula presidente, o senador petista Delcídio Amaral e o banqueiro André Esteves, do BTG Pactual. A Andrade Gutierrez, uma das maiores empreiteiras do país, fechou acordo de leniência.
Dallagnol, no entanto, seguia pensando em um encontro com um dos irmãos Marinho, que via como fundamental para as dez medidas contra a corrupção, projeto que passaria a ocupar cada vez mais o seu tempo — mais tarde, enquanto cogitava uma candidatura ao Senado em 2018, Dallagnol via o projeto como a plataforma da sua possível campanha, que nunca foi adiante.
No dia 7, ao conversar pelo Telegram com a procuradora Mônica Campos de Ré, ele revelou que finalmente havia conseguido um encontro com outro dos Marinho: João Roberto Marinho, presidente dos conselhos Editorial e Institucional do Grupo Globo e vice-presidente do Conselho de Administração. A conversa estava marcada para aproveitar uma viagem que Dallagnol faria ao Rio para defender seu projeto:
“Terei 2 eventos na FGV (em razão da representatividade do Joaquim Falcão), um encontro mais reservado com Roberto Marinho que foi feito de modo bem restrito (mantenha em sigilo por favor, para não expô-lo, mas torçamos que renda frutos), um evento na estácio de sá e o evento à noite na igreja..”, digitou.
No dia seguinte, ainda em chat privado com a colega, Dallagnol lamentou que o encontro com Marinho lhe custaria cancelar um debate marcado em uma igreja evangélica. “Há muitos evangélicos no RJ. É mto importante ocupar esse espaço… só cancelei minha participação pq entendemos que agora estrategicamente o Marinho pode render mais”. Dallagnol costumava pregar sobre corrupção em suas viagens pelo Brasil.
Mais tarde, Dallagnol recorreu à sua assessoria com outro pedido relacionado à Globo: “queria falar com Merval Pereira. Onde ele fica? SP ou RJ? Queria uma conversa sem objeto definido, para ele nos conhecer por uma conversa comigo. Vcs intermediam isso por favor?”
A resposta veio em tom de cautela:
9 de novembro de 2015 – Chat DD-NOME SUPRIMIDO
Assessor 1 – 11:33:56 – Acho que ele fica no Rio, mas preciso confirmar. De qualquer forma, quer mesmo fazer contato com ele? Almoço com João Roberto Marinho, conversa com Merval… Não sei, talvez seja “aproximação” demais com a Globo.
Assessor 3 – 11:35:00 – concordo. qual é o objetivo, exatamente, dr?
Deltan Dallagnol – 11:59:08 – Faz tempo que quero falar com Merval. Um sexto sentido. Não costumo seguir intuição, mas essa me acompanha há uns meses.
Dallagnol – 12:16:15 – NOME SUPRIMIDO, Vc liga lá por favor e tenta conseguir um espaço?
Nos dias seguintes, o procurador solicitou uma lista de pedidos a fazer à cúpula da Globo no grupo de coordenadores do projeto das dez medidas no MPF:
“Caros, mantenham restrito por favor, mas almoçarei com João Roberto Marinho, responsável pela parte de programação da globo. Preciso saber o que exatamente pedir que seja realista é factível, na forma de duas ou três alternativas”, escreveu.
Ao longo do mês, Dallagnol seguiu cobrando colegas a respeito do briefing para o encontro com Marinho. Ele disparou seguidas mensagens para dois grupos e um chat privado:
“NOMES SUPRIMIDOS, conseguiram pensar na pauta da minha conversa com o Roberto Marinho, na próxima semana?”, enviou para o grupo LJ comunic conexão CWB-BSB em 19 de novembro. “Os pedidos que posso fazer e alternativas que posso colocar na mesa, para apoio da globo?”, completou.
No grupo com os assessores de imprensa do MPF, recebeu dicas: “Sobre os Marinhos — o que pedir, é bem fácil: apoio institucional das Organizações Globo à campanha fora dos canais jornalísticos, ou seja, veiculação de VTs, talvez um um encarte ou anúncio no Globo, na Época… ;)”, disse um assessor.
Os frutos
O encontro com João Roberto Marinho foi marcado para o dia 25 de novembro, quarta-feira, na casa de Joaquim Falcão, professor da Fundação Getúlio Vargas no Rio de Janeiro, que dirigiu a Fundação Roberto Marinho na década de 1990 e é tido como responsável pela criação do canal de televisão Futura.
Foi um dia cheio para Dallagnol. Pela manhã, Merval Pereira publicou um artigo que já trazia resultados da sua aproximação com a empresa. O colunista (e membro do Conselho Editorial do Grupo Globo) levou para as páginas de O Globo um texto intitulado “Atrás da prova concreta”, no qual falava sobre como os procuradores discutiam nos bastidores a busca da Lava Jato por provas sólidas para denunciar Lula. O texto trazia aspas de procuradores anônimos e respostas para as críticas de que a operação demorava para avançar — e mencionava as dez medidas de combate à corrupção como forma de consolidar os avanços da Lava Jato.
Dallagnol comemorou o “fruto da conversa com Merval”, como escreveu no Telegram a assessores, e mandou o link do artigo. “Já tinha lido. Percebi seu “discurso oculto” na hora… rsrs”, respondeu um dos assessores.
No almoço, o procurador, enfim, teve o encontro com João Roberto Marinho. A costura de agendas foi feita por Falcão, segundo Dallagnol confessou a seus colegas, em tom casual, dois dias depois, pelo Telegram:
27 de novembro de 2015 – Chat FT MPF Curitiba 2
Deltan Dallagnol – 12:42:27 – Caros esqueci de contar algo importante… Na correria, passou. Mas tem que ficar restrito. Almocei na quarta com João Roberto Marinho. É ele quem, segundo muitos, manda de fato na globo. Responsável pela área editorial do grupo. A pessoa que mais manda na área de comunicação no país. Quem marcou foi Joaquim Falcao. Para evitar repercussão negativa, foi na casa do Falcao. Falei do grupo, do trabalho e das medidas. Falei da guerra de comunicação que há no caso. Ele ouviu atentamente e deu seu apoio às 10 medidas. Vai abrir espaço de publicidade na globo gratuitamente.
Andrey Mendonça – 13:04:03 – Parabens Deltinha!
Januário Paludo – 13:04:20 – Bah!!!
Menos de um mês depois do almoço secreto entre o executivo e Deltan Dallagnol, o jornal O Globo publicou o editorial “Combate à corrupção passa pelo fim da impunidade”. Estava selado o alinhamento entre a Lava Jato e a família Marinho.
“Mais eficácia no combate à corrupção passa pela aprovação de punições mais duras. Esse é o princípio de um documento elaborado pelo Ministério Público Federal que será a base de um projeto de lei de origem popular, nos moldes do que se transformou na Lei da Ficha Limpa”, afirmou O Globo no texto que reflete a opinião da empresa. “O documento consagra o pressuposto do fim da impunidade”, prosseguiu a narrativa, que trazia uma declaração de Dallagnol: “A punição no Brasil é algo raro. As pessoas confiam que não serão pegas e que, se forem pegas, não serão punidas”.
Ao ler o editorial de apoio, o procurador abriu o Telegram: “Conversa com o Marinho rendeu como não imaginaria”, escreveu no grupo FT MPF Curitiba 2.
Dias depois, o Dallagnol revelou a Patricia Fehrmann, no grupo MUDE – CHEGA DE CORRUPÇÃO, que a conversa com Marinho também rendera espaço publicitário para a campanha das dez medidas contra a corrupção: “Não pode sair deste grupo, Pati, mas falei diretamente com João Roberto Marinho, que se comprometeu a abrir espaço. Não tenho garantia no papel, mas ele tinha se comprometido com dia 9 de dezembro (dia contra corrupção) e fez chover”, escreveu.
As mensagens trocadas por Dallagnol com dezenas de pessoas revelam que o procurador e João Roberto Marinho se tornaram interlocutores a partir daquele almoço.
Os meses seguintes mostraram que a estratégia de recrutar o grupo de comunicação como aliado foi um sucesso e componente fundamental para a operação moldar a percepção pública e disseminar informações favoráveis. As críticas praticamente desapareceram.
Por anos, a Globo trabalhou com a operação Lava Jato numa parceria de benefício mútuo. O arquivo da Vaza Jato mostra que a força-tarefa antecipava informações para jornalistas da emissora e dava dicas sobre como achar detalhes quentes nas denúncias. A Globo usava os furos para atrair audiência e servia como uma plataforma para amplificar o ponto de vista dos procuradores. O espaço dado à defesa dos suspeitos e investigados viraria nota de rodapé, e minguava a esperada distância crítica que jornalistas precisam ter de suas fontes e de grupos políticos que são tema de suas reportagens.
A parceria da Globo com a Lava Jato foi fundamental para consolidar a imagem de heróis que procuradores e o ex-juiz e ex-ministro da Justiça Sergio Moro sustentaram por anos.
Quando os trechos de delações — algumas delas até hoje não homologadas pela justiça — continham acusações contra políticos, ganhavam as manchetes da Globo, e da imprensa em geral, em letras garrafais. Mas, quando as acusações se provaram falsas ou não puderam ser comprovadas — como ocorreu com frequência —, não se noticiou o fim das suspeitas ou a absolvição de acusados com o mesmo destaque, com consequências desastrosas para a reputação dos envolvidos.
O almoço com João Roberto Marinho deixou Deltan Dallagnol ainda mais íntimo de profissionais da empresa. Em janeiro de 2016, ele antecipou voluntariamente uma informação a um repórter da emissora.
Na tarde do dia 28 daquele mês, o procurador Roberson Pozzobon anunciou aos colegas que havia acabado de tomar o depoimento de Fernando Moura. Era um delator da Lava Jato que havia dito, na colaboração, ter sido aconselhado pelo ex-ministro José Dirceu a fugir do país em 2005, na esteira do caso Mensalão. Em depoimento a Sergio Moro, no entanto, Moura voltou atrás e negou ter recebido essa recomendação do petista.
O assunto estava na mira da imprensa nacional naquele dia, porque os advogados de Moura tinham acabado de abandonar a defesa do cliente devido à contradição entre os testemunhos. Naquela tarde, Moura confessou aos procuradores, em depoimento gravado, ter mentido a Moro. Foi esse vídeo que Dallagnol ofereceu à Globo:
28 de janeiro de 2016 – Chat pessoal
Deltan Dallagnol – 18:36:20 – O Moura disse que JD o orientou a ir para o exterior para proteger JD e o partido
NOME SUPRIMIDO – 18:37:00 – Vixe…isso é muito bom!
NOME SUPRIMIDO – 18:37:28 – Obrigado por me ligar! Falei com ela, ela está correndo prai. Abração!
Dallagnol – 19:14:09 – Mas destaca por favor a questão de ele ter se desmentido e ter alegado que foi ameaçado para ter mentido…
Dallagnol – 19:14:44 – Ele foi ouvido em procedimento de apuração de violação do acordo, instaurado por uma questão lógica, porque ele disse “A” e depois “não-A”, o que deixa evidente que em um dos dois momentos ele mentiu
NOME SUPRIMIDO – 19:31:00 – Boa! Tem toda razão! Falei pra ela. Abração!! E mais uma vez obrigado. PS. duque está fazendo delação?? heheheh
NOME SUPRIMIDO – 19:31:30 – Parabéns! Vcs vão conseguir esclarecer toda essa história!!
Dallagnol – 19:33:44 –
Enquanto Dallagnol alertava o jornalista da Globo para a existência dos vídeos com a confissão do delator, eles eram anexados aos processos, para que já estivessem públicos quando a reportagem fosse ao ar: as gravações foram juntadas aos autos às 19h18 e apareceram na edição do Jornal Nacional pouco mais de uma hora depois.
A aproximação de Dallagnol com a Globo fez o procurador se sentir à vontade até para pedir dicas aos jornalistas. Uma dessas consultorias ocorreu em março de 2016.
No dia 4, a avenida Washington Luís, acesso ao aeroporto de Congonhas, o segundo mais movimentado do país, quase parou. Habitualmente congestionada, a via concentrava protestos a favor e contra o ex-presidente Lula. As manifestações começaram cedo, por volta das 7h30, em frente à casa de Lula em São Bernardo do Campo — onde grupos ocupavam as duas pistas da avenida Prestes Maia. Congonhas se transformara no epicentro da política brasileira desde que Lula fora levado ali para depor, conduzido coercitivamente — isto é, sem a alternativa de se recusar a comparecer — por ordem do então juiz Sergio Moro.
Após três horas de depoimento, Lula saiu falando grosso e convocou uma entrevista em que se comparou a uma cobra venenosa e prometeu vingança: “Se tentaram matar a jararaca, não bateram na cabeça, bateram no rabo”. A temperatura também subiu em Brasília: havia mal-estar com as críticas de que a condução de Lula fora arbitrária.
Era a opinião, entre outros, do ministro Marco Aurélio Mello, do Supremo Tribunal Federal, e do advogado Alberto Toron, famoso criminalista que defendeu, na Lava Jato, nomes como o deputado Aécio Neves, o ex-presidente da Petrobras Aldemir Bendine, e Fernando Bittar, sócio de um dos filhos de Lula.
Incomodado com as críticas, Dallagnol acionou Vladimir Netto, repórter do Jornal Nacional e autor de um livro sobre a Lava Jato que estava, então, às vésperas de ser lançado. Ambos conversavam com frequência pelo Telegram desde novembro de 2014, e a correspondência trocada no aplicativo, até abril de 2019, enche 35 páginas de livro. Aproveitando a intimidade, o procurador perguntou a opinião do jornalista sobre como agir naquela situação. Netto foi em frente — ainda que os Princípios Editoriais do Grupo Globo digam que “é altamente recomendável que a relação com a fonte, por mais próxima que seja, não se transforme em relação de amizade”.
4 de março de 2016 – Chat pessoal
Deltan Dallagnol– 16:20:49 – Vc acha que temos que fazer nota sobre a condução coercitiva?
Vladimir Netto – 16:23:36 – Não
Netto – 16:24:02 – Pra q? Não vejo o q vcs poderiam ganhar com isso
Netto – 16:24:18 – Rsrs entendi o recado Rsrs
Netto – 16:25:02 – O CF foi muito bem na coletiva ao abordar esse ponto.
Mas o incômodo persistiu em Curitiba, e a discussão sobre soltar ou não uma nota tomou boa parte do dia seguinte, 5 de março, um sábado, no Telegram. Dallagnol e Carlos Fernando dos Santos Lima esboçaram propostas do que divulgar em defesa da ação da Lava Jato, mas a discussão se alongava.
No final da tarde, Dallagnol propôs ao grupo que voltassem a se aconselhar com Netto. O jornalista, afinal, cobria a Lava Jato para o principal telejornal da Globo. “A nota ficou excelente CF. Bem melhor do que a que tinha feito. Sou a favor. Deixa eu consultar o Vladimir Neto”, postou, às 18h41. Minutos depois, às 18h48, enviou para o Telegram do repórter a nota que a força-tarefa pensava em divulgar.
Em seguida, voltou a se comunicar com os colegas.
5 de março de 2016 – Chat FT MPF Curitiba 3
Deltan Dallagnol – 18:51:12 – Falei com Vladimir neto e ele acha que não valeria a pena pq so reaviva, a não ser que seja para soltar agora para não deixar Moro sozinho. Mas ele acha que teria que ser muuuuito serena pq estamos mais expostos do que o Moro na avaliação dele
Jerusa Viecili – 18:51:22 – Os artigos do J e do Robinho estao sensacionais! Mas agora não é o momento.
Dallagnol – 18:51:34 – Teria que dizer que pedida por razões técnicas sem ficar bradando igualdade etc
Dallagnol – 18:51:56 – Mandei a nota para ele e espero as impressões dele
Dallagnol – 18:52:58 – Por mim, soltamos pq não deixo amigo apanhando sozinho rs. Independentemente de resultado, soltaria por solidariedade ao Moro
Carlos Fernando dos Santos Lima – 18:53:14 – Concordo.
Dallagnol – 18:53:16 – Mas deixaria mais amena do que está
Dallagnol – 18:53:24 – O máximo possível
Santos Lima – 18:53:27 – Sugestão?
Laura Tessler – 18:53:37 – Concordo contigo, Deltan, mas deixaria como está
Santos Lima – 18:53:42 – Não adianta também soltar um picolé de chuchu.
Dallagnol – 18:53:59 – Kkkk
Dallagnol – 18:54:11 – Blz, assino embaixo
Dallagnol – 18:54:39 – Querem esperar as impressões do Vladimir Neto? Eh um cara ligado em imprensa e política
Minutos depois, Dallagnol comunicava a opinião do jornalista a respeito do texto: “Vladimir Neto achou ok o final atacando, mas achou realmente pra tirar o começo”, escreveu, às 19h13. Em seguida, usou o Telegram para informar qual a decisão da força-tarefa e agradecer a ajuda. O jornalista lembrou-o que ainda havia tempo para que a nota fosse lida no Jornal Nacional.
5 de março de 2016 – Chat pessoal
Deltan Dallagnol – 19:27:31 – Acabou ficando boa parte do começo, mas com base em seu olhar tiramos 2 itens inteiros. Acabou pesando a solidariedade à nota de hoje
Dallagnol – 19:27:41 – Obrigado Vladimir!
Netto – 19:29:57 – De nada! Fico feliz em ajudar. Já soltaram a nota? Ainda dá tempo de sair no JN
Dallagnol – 20:04:17 – Soltamos
Em meados de março, Dallagnol comemorava a adesão da Globo à campanha das dez medidas: “Lu, os vídeos estão bombando, assim como divulgação em programas… ontem Faustão, hoje Ana Maria Braga…”, escreveu para a promotora Luciana Asper.
Dias depois, Dallagnol escreveu a uma assessora de imprensa do MPF em Brasília para comunicar que falara com Marinho sobre a cobertura de “dois eventos” — um deles certamente a entrega do projeto de lei das dez medidas contra a corrupção no Congresso, dali a uma semana: “NOME SUPRIMIDO, reservado: falei com o João Roberto Marinho, e ele falou que vão cobrir os 2 eventos. Agradeci o vídeo que está entrando no ar hoje”. Naquele mesmo ano, Dallagnol começaria a cogitar sua candidatura ao Senado, incentivado por, entre outras pessoas, a promotora Luciana Asper, do Distrito Federal, voluntária da campanha pelas dez medidas.
O vídeo mencionado por Dallagnol é uma peça publicitária criada para uma campanha da Associação Nacional dos Procuradores da República, entidade de classe da categoria, intitulada “Juntos Contra a Corrupção”. Conforme prometeu ao chefe da Lava Jato, a Globo veiculou a peça gratuitamente em sua programação.
Embora generosa (quase dois minutos) e totalmente favorável aos procuradores, a cobertura do evento do dia 29 de março, no Jornal Nacional, não agradou a Dallagnol. Assim, ele enviou mensagem a uma repórter da Globo, conforme encaminhou a uma assessora de comunicação do MPF:
30 de março de 2016 – Chat com ASSESSOR 1
Deltan Dallagnol – 10:21:32 – Oi NOME SUPRIMIDO, tudo bem? Ontem foi um dia mágico. Pessoas vieram de todos os Estados, pagando de seus bolsos, para o momento cívico das 10 medidas. O auditório JFK para umas 400-500 pessoas nunca esteve tão cheio, com pessoas de pé. Após o evento, as pessoas puxaram o hino. Crianças foram e depois levaram cartinhas a deputados e senadores. Foi um momento histórico em que a sociedade civil saiu fortalecida, ganhou músculos, algo que nunca vi nessa proporção. Contudo, a matéria do JN não consegue alcançar um centésimo dessa dimensão humana. Você, com sua visão de mundo e qualidade profissional, seria nossa jornalista dos sonhos para retratar isso e levar aos telespectadores a emoção e o valor desse momento. Fica nosso pedido para considerar com especial carinho esse nosso convite. Estarei à sua disposição, assim como nosso time da SECOM e todos os vídeos do evento e de voluntários, para fazer isso acontecer e fazer as pessoas verem que elas são parte não só dos problemas, mas também das soluções no nosso país. Bjs e abs ao NOME SUPRIMIDO !!
No dia seguinte, a assessora voltou com uma resposta positiva. A jornalista da Globo havia explicado por que não poderia fazer a reportagem, mas disse que produziria outra matéria sobre as dez medidas no Fantástico seguinte (publicada, de fato, no dia 10 de abril).
A parceria entre a Lava Jato e a Globo seguiria mesmo assim. Em setembro, a força-tarefa passou uma informação privilegiada para a equipe da emissora. Dessa vez, a iniciativa partiu do procurador Diogo Castor de Mattos, que procurou Dallagnol com um pedido recebido do Fantástico:
9 de setembro de 2016 – Chat pessoal
Diogo Castor de Mattos – 12:04:11 – prof, NOME SUPRIMIDO quer as info da rf do casorio da filha do cunha
Castor de Mattos – 12:04:14 – queria mandar
Castor de Mattos – 12:04:23 – o problema é que a investigação ta sobre em sigilo
Castor de Mattos – 12:04:33 – embora não tenha mais muito sentido
Castor de Mattos – 12:04:36 – oq acha?
Dallagnol não respondeu à pergunta, mas Castor de Mattos seguiu em frente com seu plano, e o vazamento foi parar no Fantástico do domingo seguinte, 11 de setembro. Uma reportagem de quase oito minutos mostrou trechos de um documento da Receita Federal que apontava suspeitas sobre o ex-presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, ligadas ao custeio do casamento da filha dele, Danielle Dytz da Cunha.
O documento, que era sigiloso, só seria tornado público mais de um mês depois, em 19 de outubro, quando Cunha foi preso.
Em 14 de setembro de 2016, a Lava Jato chegava a seu maior momento até então: numa entrevista coletiva num hotel de luxo no Centro de Curitiba, os procuradores apresentaram a primeira denúncia contra o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
A coletiva, que ficaria famosa pela esdrúxula apresentação em PowerPoint elaborada pelos procuradores, ainda era debatida dois dias depois no grupo Filhos do Januario 1. O chefe da Lava Jato tratou de trazer boas notícias que eram fruto do clima de colaboração entre a Globo e a operação e que implicariam um alvo preferencial dos procuradores — Lula:
16 de setembro de 2016 – Chat Filhos do Januario 1
Deltan Dallagnol – 22:02:03 – Tenho boas novidades. NOME SUPRIMIDO foi atrás do Rogério Manso. Ele ia falar pro fantástico, mas por medo do PT e recomendação da esposa voltou atrás. Está afinzão de depor pra nós. Vai confirmar tudo. Cerveró disse que ele cometeu crime sendo subordinado a Gabrielli, mas não era, era subordinado ao Dutra. Ildo Sauer, de esquerda, consultado pela NOME SUPRIMIDO e ex-diretor da Petrobras, disse que discorda da visão ideológica do RM, mas que se for corrupto isso o surpreenderá. O mesmo disse Adriano Pires. RM narrou que Janene, Correa e Pizzolati procurram ele dizendo: queremos a lista de todos os fornecedores e contratos pq PP vai fazer arrecadação. RM disse: NÃO e foi no Dutra. Dutra disse que ia falar com quem, quem, quem?? LULA!!!!
Dallagnol – 22:02:21 – Hoje RM trabalha numa empresa que fundou e foi comprada pela Ode
Dallagnol – 22:02:30 – Vantagem que é testemunha, não colaborador, e implica LULA!!
Dallagnol – 22:02:43 – Pode ser o depoimento a ir pro JN próxima semana e nos ajudar
Dallagnol – 22:03:03 – Quem se encarrega disso? Januário?? Megaurgente. Prioridade -1.
A proximidade e a bomba atômica
A assessora de imprensa de Rodrigo Janot estava aflita no começo da noite de 16 de maio de 2017, uma terça-feira. O então procurador-geral da República havia pedido aos assessores uma ligação urgente para o empresário João Roberto Marinho. A assessora, no entanto, não tinha à mão o número do celular do empresário.
Ela passou a buscar quem poderia ter o número pessoal de Marinho na agenda de contatos. De súbito, um nome lhe veio à mente: Deltan Dallagnol.
A assessora disparou telefonemas para o celular do procurador-chefe da Lava Jato em Curitiba. Desligado. Decidiu acionar o assessor de imprensa do Ministério Público Federal, que utilizou o Telegram para avisar o chefe sobre a emergência:
16 de maio de 2017 – Chat pessoal
Assessor 2 – 19:18:11 – Dr., NOME SUPRIMIDO precisa falar urgente com você. Ela queria o contato do João Roberto Marinho. Ela te ligou mais cai na caixa postal.
Assessor 2 – 19:18:40 – Pediu pra você respondê-la o quanto antes.
Deltan Dallagnol – 19:32:58 – Feito
Dallagnol – 19:33:07 –
Dallagnol não perdeu tempo. Enviou diretamente a Janot o que ele precisava:
16 de maio de 2017 – Chat pessoal
Deltan Dallagnol – 19:26:37 – TELEFONE SUPRIMIDO
Dallagnol – 19:26:43 – João Roberto Marinho
Rodrigo Janot – 19:27:34 – Ok
No dia seguinte, no início da noite de quarta-feira, 17, o blog do jornalista Lauro Jardim publicou uma notícia que caiu como uma bomba atômica sobre Brasília: o empresário Joesley Batista, dono da JBS, gravara uma conversa com Michel Temer no Palácio da Alvorada.
Nela, o então presidente da República parece dar seu aval ao empresário para que seguisse pagando propinas a Eduardo Cunha, ex-deputado federal e colega de MDB, preso pela Lava Jato: “Tem que manter isso aí, viu?”. O sentido da frase é até hoje controverso.
Naquele dia, a queda de Temer foi dada como certa — mas ele sobreviveria, moribundo, até o final de seu mandato tampão, após um discurso no dia seguinte, no qual disse: “Não renunciarei, repito, não renunciarei!”. À noite, no grupo Filhos do Januario 1, a gravação de Joesley Batista naturalmente foi assunto entre os procuradores da Lava Jato. Foi então que Dallagnol se lembrou da pressa de Janot. E fez uma suposição:
“Por isso Janot me pediu o contato de Roberto Marinho ontem. Pra pedir pra não sair”, escreveu ao grupo.
Na sua autobiografia, Rodrigo Janot conta uma história diferente.
O ex-procurador-geral escreve que vinha tratando diretamente com João Roberto Marinho dias antes da conversa ser publicada no blog de Lauro Jardim. Sua intenção era a mesma que Dallagnol identificou: evitar que o material vazasse antes que a Polícia Federal realizasse operações como a que prendeu Rodrigo da Rocha Loures, assessor de Michel Temer, com uma mala de dinheiro em São Paulo.
Nas memórias de Janot, contudo, é João Roberto Marinho quem lhe telefona primeiro, enquanto o ex-procurador estava em reunião no STF. Janot tentou retornar a chamada, sem sucesso. Mais tarde, naquele dia, Marinho ligou novamente para informar que o jornal decidira “soltar alguma coisinha”. “Tive que desligar o telefone para não cruzar o marco civilizatório que deve presidir qualquer conversa entre dois adultos, mesmo que um deles, no caso eu, esteja espumando de raiva”, ele escreveu, na página 191.
Em 18 de maio de 2017, dois dias após a assessora de Rodrigo Janot pedir o contato a Deltan Dallagnol, o procurador Ângelo Goulart Villela foi preso por ordem do ministro Luiz Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal, a pedido do próprio procurador-geral da República.
Soube-se, então, que a delação premiada de Joesley Batista não mandou pelos ares apenas Michel Temer e seu projeto de reeleição: revelou também que Villela recebera propina para passar informações sigilosas da operação Greenfield, que investigava fraudes em fundos de pensão de estatais. Villela foi denunciado e responde por esse caso no Tribunal Regional Federal da 1ª Região, o TRF1, desde dezembro de 2019. Em maio de 2020, o Conselho Superior do Ministério Público Federal aprovou a demissão do procurador.
Por ironia, ele era, à época, diretor de Assuntos Legislativos da Associação Nacional dos Procuradores da República e, em junho de 2016, fora à Câmara dos Deputados defender as dez medidas contra a corrupção. Um dano considerável ao projeto de Dallagnol.
A boa relação de Dallagnol com a Globo desanuviou o ambiente. Naquela noite, ele acionou Janot pelo Telegram, propondo uma solução: uma reportagem favorável no Fantástico, mostrando um Ministério Público disposto a cortar na carne: “A ascom aqui também acha que seria bem positiva uma entrevista sua. Fica para Vc avaliar”.
Pela manhã, Janot deu o aval: “Ok fala pra ela entrar em contato”.
A reportagem foi ao ar na edição seguinte do Fantástico, no dia 21 de maio. E cumpriu o prometido, limitando o problema a Villela. “Os investigadores da corrupção tinham um traidor entre eles”, abria a narração.
O dano de imagem estava contornado.
Após a publicação da Vaza Jato, diversos órgãos de imprensa que por anos apoiaram a Lava Jato, como a Folha de S.Paulo e a Veja, reavaliaram essa adesão quase incondicional à operação. E reconheceram uma falha em manter a distância jornalística esperada.
No dia 6 de outubro de 2019, a ombudsman da Folha de S. Paulo publicou uma análise sobre a cobertura da Lava Jato pelo jornal, com críticas por parte do diretor de redação, Sergio Dávila. O maior erro, segundo a própria Folha, foi ter publicado repetidamente vazamentos de trechos das delações premiadas firmadas pela Lava Jato.
Mesmo sendo a principal defensora de Moro na imprensa tradicional, a revista Veja escreveu um editorial crítico ao ex-juiz quando publicou diálogos da Lava Jato em julho de 2019. “Poucos veículos de mídia celebraram tanto o trabalho do ex-juiz na luta contra a corrupção”, dizia o texto. “Mas, ao contrário daqueles que fomentam o ódio ou se aproveitam dele, nossos compromissos não são com pessoas ou partidos. São com princípios e valores. Fomos implacáveis com os crimes cometidos por Lula e pelo PT, dedicando dezenas de capas ao assunto. No momento em que seu algoz cruzou a linha, não vamos fingir que não vimos”, concluiu a revista.
Dois meses antes das revelações da Vaza Jato chegarem a público, João Roberto Marinho fez um discurso na cerimônia de entrega de um prêmio em que dizia que o papel da imprensa é ser fiscal das instituições. “A crítica nos questiona, muitas vezes nos agride. E na maior parte das vezes nos aprimora. A crítica mais frequente é que sempre buscamos o lado negativo do dia a dia. Isso decorre do papel que nos cabe de fiscal das instituições do Estado. É nosso papel revelar o que anda errado do dia a dia do governo, dos estados e das cidades”, discursou o presidente dos conselhos Editorial e Institucional do Grupo Globo, em 27 de março de 2019.
Mesmo depois da série de reportagens publicada pelo Intercept e seus parceiros, a Globo seguiu defendendo a operação originada em Curitiba e jamais fez autocrítica pública sobre sua cobertura.
Outro lado
Vladimir Netto
Não. Não reconheço esses diálogos. Eles não aconteceram, não são verdadeiros. Nunca prestei ‘consultoria informal’ à Lava Jato ou a qualquer fonte. Não mantenho relação de amizade nem tenho ‘intimidade’ com nenhuma fonte. Sempre pautei minha atuação pela ética e profissionalismo.
É espantoso que o Intercept se ache no direito de violar o sigilo do que poderia ser uma relação entre jornalista e fonte. Os diálogos são falsos, mas se fossem verdadeiros, divulgá-los seria uma violação do sigilo de fonte, princípio constitucional caro ao jornalismo.
Globo
João Roberto Marinho é presidente do Conselho Editorial do Grupo Globo, função que exige dele ouvir os segmentos da sociedade sobre os temas em debate. Nada mais natural do que um encontro entre ele e um procurador da República que, naquele ano, percorreu o país em defesa do projeto. E que anteriormente já havia discutido o mesmo tema com a direção dos principais veículos de imprensa, como é público. A Globo é e será sempre contra a corrupção, não há surpresa nisso para ninguém. Essa postura não impediu que o jornal O Globo publicasse, em 2016, ao lado de editoriais seus a favor do projeto do MP, artigos de personalidades que eram contrárias àquelas ideias. Na cobertura da Lava Jato, a Globo não foi privilegiada. Nas milhares de reportagens que publicou sobre o tema, baseou-se em documentos públicos e, se deu furos, deve isso a uma equipe de profissionais ágeis, éticos, corretos, com fontes em todas as esferas de poder, no mundo jurídico (público e privado), e em todos os setores da sociedade. A Globo pratica o bom jornalismo. E se surpreende com o fato de o Intercept considerar natural fazer ilações falsas sobre outros veículos, numa ação que pode ser entendida como uma tentativa de quebrar um dos direitos mais fundamentais na democracia, garantido pela Constituição: o sigilo da fonte. Sobre as referências ao repórter Vladimir Netto, a Globo não tem por que duvidar da palavra do profissional, que diz que os diálogos não existiram. Por último, uma correção: para que uma informação correta entre no Jornal Nacional, basta que o telejornal esteja no ar.
Lava Jato
É importante registrar que o Intercept, distante das melhores práticas de jornalismo, não encaminhou as supostas mensagens em que se baseia a reportagem, o que prejudica a compreensão das questões enviadas, o direito de resposta e a qualidade das informações a que o leitor tem acesso.
Registra-se ainda que tais mensagens, obtidas de forma criminosa, foram descontextualizadas ou alteradas ao longo dos últimos meses para produzir falsas acusações, que não correspondem à realidade, no contexto de um jornalismo de militância ou de teses que busca atacar a operação e seus integrantes.
De todo modo, em relação aos questionamentos apresentados, os procuradores que atuam na operação Lava Jato informam que tiveram, ao longo dos seis anos da operação, reuniões com integrantes do corpo editorial de diversos veículos de comunicação, que com frequência inclui um ou mais de seus sócios ou donos. Os encontros objetivaram promover a causa anticorrupção, o estímulo à cidadania e esclarecer dúvidas sobre os trabalhos da operação.
Do mesmo modo, os procuradores que atuam na operação tiveram contato por centenas de vezes com repórteres e colunistas dos mais variados veículos para prestar declarações, esclarecimentos e dirimir dúvidas, o que sempre ocorreu segundo as regras legais e éticas que regem a conduta de integrantes do Ministério Público.
A tese já externada por integrantes do Intercept de que a Lava Jato controlava a grande imprensa é de ingenuidade inadmissível diante da independência da grande imprensa e dos múltiplos fatores que influenciam suas posições, compreendendo-se apenas a partir do propósito intencional e militante de atacar a operação e de tentar minar seu apoio.
Tréplica do Intercept Brasil à Globo e a Vladimir Netto
Agradecemos pelas respostas, que são mais uma evidência da autenticidade dos diálogos ao tratarem do encontro de João Roberto Marinho com o procurador Deltan Dallagnol em 2015, exatamente como relatado no arquivo da Vaza Jato.
Gostaríamos, no entanto, de apresentar alguns fatos para fins de clareza e respeito com a verdade:
- A autenticidade dos diálogos publicados desde junho de 2019 pelo Intercept e por veículos parceiros (Folha de S. Paulo, UOL, El País, Reinaldo Azevedo, revista Veja, Agência Pública e BuzzFeed News) foi cuidadosamente verificada antes da publicação pela checagem de metadados e pelo confronto delas com fatos privados de conhecimento apenas dos envolvidos (por exemplo, comentários sobre pedidos de jornalistas do Intercept à força-tarefa de Curitiba ou dos procuradores a respeito de matérias publicadas por nossos repórteres e de veículos parceiros).
- Após a publicação, a autenticidade dos diálogos foi ratificada por procuradores da República, inclusive integrantes da Lava Jato, pelo ex-procurador-geral da República, Rodrigo Janot, pelo ex-presidente Michel Temer, pelo apresentador Fausto Silva, da TV Globo, e até mesmo pelo ex-juiz Sergio Moro. A resposta enviada ao Intercept pela Rede Globo, confirmando o encontro com o procurador Dallagnol, é mais uma prova da veracidade dos diálogos.
- A força-tarefa da Lava Jato no Ministério Público Federal do Paraná jamais questionou a autenticidade dos diálogos. Pelo contrário, em uma das notas que divulgaram no dia da publicação das primeiras reportagens, 9 de junho de 2019, os procuradores afirmaram que suas mensagens haviam sido hackeadas e que “mantiveram, ao longo dos últimos cinco anos, discussões em grupos de mensagens, sobre diversos temas, alguns complexos”. E disseram mais: “foram obtidas cópias de mensagens e arquivos trocados em relações privadas e de trabalho”. Ou seja: atestaram que o material da Vaza Jato é autêntico. O portal UOL, que à época ainda não era parceiro nas reportagens, registrou.
- Na única vez em que uma procuradora da República (Monique Cheker) tentou negar a autenticidade de uma mensagem, o Intercept provou cabalmente como a havia identificado nos chats. Desmentida, a procuradora se calou.
- A Polícia Federal prendeu suspeitos de hackearem telefones celulares de autoridades na operação Spoofing, e eles foram indiciados e denunciados à justiça sob essa acusação. O principal acusado, Walter Delgatti Neto, disse à Polícia Federal e à Folha de S.Paulo que não modificou, adulterou ou editou mensagens a que teve acesso. À PF, inclusive, ele afirmou, em depoimento que faz parte do inquérito, acreditar “não ser possível fazer a edição das mensagens do Telegram em razão do formato utilizado pelo aplicativo”.
- Os arquivos que a Polícia Federal diz ter apreendido com alguns dos acusados estão custodiados na justiça, sob os cuidados do STF e da 10ª Vara Federal de Brasília. Recentemente, o procurador da República Diogo Castor de Mattos, ex-integrante da força-tarefa, pediu e obteve acesso às mensagens para inclusão em um processo judicial dele. Uma perícia realizada pela Polícia Federal confirmou a Castor que as mensagens foram obtidas do telefone dele mesmo.
- Todo esse conjunto de evidências afasta de uma vez por todas a possibilidade de acusar nossos jornalistas — e jornalistas de outras sete redações brasileiras e estrangeiras — de estarem forjando conversas. A discussão sobre a autenticidade dos diálogos, decorrido mais de um ano do início da série de reportagens, está superada.
- Sobre o direito ao sigilo de fonte: ele é sagrado para o exercício do jornalismo e ordenado pela Constituição Federal, promulgada em 1988 sob as lembranças vívidas dos arbítrios da ditadura militar. O inciso XIV do artigo 5º da Constituição diz que é “resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional”. O Intercept é defensor intransigente desse direito e dele se vale para jamais revelar suas fontes em situações em que isso se faz necessário — como no caso das mensagens da Vaza Jato.
- Cabe, porém, entender de que se trata esse direito. Ele dá ao jornalista o direito de não revelar, quando pressionado por autoridades, quem lhe abasteceu com informações. Ou seja: o jornalista tem direito de manter em sigilo as próprias fontes. Mas não há obrigação de manter em sigilo as fontes de terceiros quando isso for de relevante interesse público. Caso um jornalista detecte relação antiética ou até mesmo ilegal de um colega com sua fonte, é dever desse jornalista levar essa informação a público.
- O arquivo com as conversas de Telegram entregues ao Intercept, analisado por seus jornalistas e por jornalistas de veículos parceiros, contém dezenas de chats entre procuradores e repórteres. Trata-se, habitualmente, de conversas absolutamente pertinentes ao exercício do bom jornalismo — e que, justamente por isso, jamais serão trazidas a público por nossa redação. Em alguns casos, porém, a relação foi além disso e revela como setores da mídia cooperaram com uma operação que deveriam não apenas noticiar como também fiscalizar — como é o caso do site O Antagonista, já objeto de reportagem. São casos que o público tem direito de conhecer, não abarcados por sigilo de fonte, posto que a relação dos jornalistas com os procuradores nada tinha a ver com o exercício ético da profissão, mas com outra coisa.
- Destacamos, por fim, que o repórter Vladimir Netto manteve pelo Telegram conversas com o procurador Deltan Dallagnol ao longo de anos, e que elas somam dezenas de laudas A4. A imensa maioria delas jamais virá a público, pois trata do exercício da profissão de repórter. Porém, quando um jornalista da mais importante emissora de televisão do país aceita editar uma nota à imprensa da operação que cobria (que caberia ser confeccionada e editada apenas pelos próprios procuradores e seus assessores), consideramos estar diante de material de visível interesse público.
Correção: 11 de fevereiro de 2021, 14h30
Uma versão anterior deste texto informava, incorretamente, que Rodrigo Janot afirma em seu livro de memórias ter entrado armado no Supremo Tribunal Federal com a intenção de assassinar o ministro Gilmar Mendes.
No livro, o ex-procurador-geral diz que botou “uma pistola carregada na cintura [qu]e por muito pouco não descarreguei na cabeça de uma autoridade de língua ferina”, mas sem precisar a quem se referia ou quando e onde o episódio ocorreu.
Na verdade, a menção a Mendes e ao Supremo está numa entrevista de Janot à revista Veja.
Também estava errada a informação de que foi o ex-procurador-geral quem disse que o episódio ocorreu num dia em que ele não estava em Brasília. Na data mencionada na Veja, Janot de fato estava fora da capital. Mas o conteúdo da reportagem da revista não permite concluir que foi ele quem precisou a data.
O parágrafo incorreto foi apagado neste post. A informação também será corrigida numa eventual segunda edição do livro sobre a Vaza Jato.
Correção: 9 de fevereiro, 14h58
Em uma versão anterior deste texto, a mensagem “De nada! Fico feliz em ajudar. Já soltaram a nota? Ainda dá tempo de sair no JN”, enviada por Vladimir Netto a Deltan Dallagnol em chat privado no dia 5 de março de 2016, havia sido erroneamente alocada no chat de 9 de setembro de 2016 entre Dallagnol e Diogo Castor de Mattos. O erro, já corrigido, ocorreu durante a transposição dos diálogos da versão impressa para o site. A versão do livro está correta.
JÁ ESTÁ ACONTECENDO
Quando o assunto é a ascensão da extrema direita no Brasil, muitos acham que essa é uma preocupação só para anos eleitorais. Mas o projeto de poder bolsonarista nunca dorme.
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