Amazonas gastou R$ 16,5 milhões em leitos inúteis no pico da pandemia

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Amazonas gastou R$ 16,5 milhões em leitos inúteis no pico da pandemia

Enquanto a taxa de ocupação das UTIs na capital passava de 90%, as Unidades de Cuidados Intermediários tinham entre 50 e 100 vagas ociosas.

Amazonas gastou R$ 16,5 milhões em leitos inúteis no pico da pandemia

A crise do coronavírus

Parte 157


A segunda onda da covid-19 ainda nem tinha começado no Amazonas quando o governo do estado alardeou, em outubro, que era o único do Brasil a contar com Unidades de Cuidados Intermediários, as UCIs, em todos os municípios. Três meses depois, outra notícia aparentemente boa foi divulgada no site oficial do governo: “o Amazonas elevou em 576% a quantidade de UCIs”.

O que não foi dito é que o estado investiu mais de R$ 16,5 milhões em 2020 em leitos que ficam ociosos a maior parte do tempo. Mais equipadas do que os leitos clínicos, as UCIs são um meio termo entre a enfermaria e uma Unidade de Terapia Intensiva – servem para tratar pacientes em estado pouco grave, sem risco de morte imediato, mas que precisam de aparelhos específicos e monitoramento 24h por dia. Enquanto a ocupação das UTIs em Manaus chegou a 96% no pico da segunda onda da pandemia do estado, em janeiro e fevereiro, a ocupação das UCIs no interior em nenhum momento passou dos 64%, apesar de todo o restante do sistema de saúde do estado ter colapsado.

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As informações sobre os gastos foram repassadas no dia 16 de março pelo governador Wilson Lima, do PSC, em resposta a um pedido de informações da Defensoria Pública do Estado ao qual tive acesso. Entre 25 de janeiro e 18 de fevereiro, os boletins epidemiológicos divulgados diariamente pelo governo mostravam que a fila de espera dos pacientes de covid-19 no interior do estado havia ultrapassado o número de 100 pessoas todos os dias. Eles aguardavam uma vaga em leito clínico ou UTI, mas todas as unidades de saúde públicas da capital estavam com taxa de ocupação próxima ou acima de 90%. Já as UCIs, que em tese deveriam ajudar a cobrir esse rombo, tinham entre 50 e 100 leitos vazios.

A maior fila de espera foi registrada em 1º de fevereiro, quando a taxa de ocupação de leitos na rede pública destinados a pacientes com a covid-19 ficou acima de 95% – eram 154 pessoas somente no interior do estado esperando por uma vaga. Nessa mesma data, a taxa de ocupação nas UCIs era de 54% – apenas 79 pacientes utilizavam os leitos, enquanto outros 67 estavam livres.

Médicos e defensores públicos com quem conversei, que acompanham de perto a pandemia no estado, estranham a informação de que há UCIs em todos os municípios. Eles afirmam que, ainda que o governo tenha investido na compra de equipamentos, só isso não garante a assistência aos pacientes – não há estrutura nem recursos humanos para as unidades de tratamento propagandeadas pelo governo, principalmente nas cidades menores e de acesso mais difícil. O próprio Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde, o Cnes, mostra apenas 103 UCIs no estado, contra os 190 leitos de UCI informados pelo governo do Amazonas. Destinados especificamente a pacientes com a covid-19, existem 135 leitos de “suporte ventilatório pulmonar” – unidades que atendem uma quantidade menor de pacientes para tratamento com oxigênio e possuem aparelhos como ventilador mecânico e monitor. A habilitação desse tipo de leito foi autorizada pelo Ministério da Saúde em dezembro de 2020, em caráter temporário por até seis meses, devido à situação de emergência provocada pela pandemia.

O médico Daniel Tanaka, que ajudou a montar uma UCI em Parintins, diz que em vários municípios do interior do Amazonas não há profissionais de saúde especializados e nem equipamentos adequados para atender pacientes nesse tipo de unidade. “É importante entender o que o governo chama de UCI. É um leito qualquer que dispõe de monitor e respirador de transporte, com um médico clínico sem especialização? Isso não significa estruturar uma Unidade de Cuidados Intermediários”.

O defensor público Lucas Matos, de Tefé, município apontado no Plano de Contingência Estadual da pandemia como local de referência para atender pacientes de cidades vizinhas, também estranha a informação. “Nesse segundo pico de casos, a maioria dos pacientes exigia cuidados além da capacidade técnica das unidades hospitalares do interior. O que o governo pode ter feito é ter comprado respirador e colocado em cada hospital municipal. Mas isso não transforma o local em UCI”, diz. É enganosa, portanto, a propaganda que o governo faz de que há UCIs em todos os municípios quando, na verdade, o que existe é uma estrutura mínima e insuficiente para tratar pacientes com covid-19 – o que explicaria o fato de haver leitos vazios e uma enorme fila de espera.

Em maio de 2020, a Defensoria Pública moveu uma ação para obrigar o estado a adquirir 20 tanques de oxigênio e 20 respiradores para o hospital regional de Tefé, que naquela ocasião só possuía dois leitos de UCI. Em janeiro, a Procuradoria-Geral do Município informou aos defensores públicos que o hospital contava com dez respiradores, mas somente sete funcionavam. O ofício não especificava o número de leitos de UCI.

Naquele mesmo mês, 18 pacientes morreram no hospital à espera de transferência para a capital. A fila de espera por um leito clínico ou de UTI em todos os municípios do interior, incluindo aqueles destinados a quem tinha outras doenças que não a covid-19, chegou a 557 pessoas em janeiro, o pico da pandemia, segundo o defensor Matos.

De acordo com o ofício enviado pelo governador Wilson Lima para a Defensoria Pública, o governo gastou, de março a dezembro de 2020, R$ 16.523.507,97 com o pagamento de fornecedores para as UCIs. Mas não é possível saber o que exatamente as empresas forneceram. O documento também não explica se o total gasto com “investimento em UCI” refere-se apenas aos medicamentos e insumos hospitalares necessários aos atendimentos e à manutenção dos leitos ou se também foram comprados equipamentos para montar as UCIs, como os respiradores.

Segundo dados do Portal da Transparência, a pandemia custou ao estado do Amazonas R$ 581 milhões em 2020 e R$ 237,2 milhões somente de janeiro a março de 2021. As informações sobre esses gastos, incluindo os R$ 16,5 milhões com as UCIs, foram usadas pela Defensoria Pública do Estado do Amazonas e pela Defensoria Pública da União em uma ação civil pública que pede à justiça para obrigar o governo do estado e o governo federal a comprarem doses de vacina suficientes para imunizar 70% da população com mais de 18 anos de Manaus, Manacapuru, Tefé, Iranduba, Itacoatiara, Parintins, Coari e Tabatinga, cidades com maior incidência de covid-19 no estado.

O argumento é que “os gastos extraordinários e não planejados” seriam desnecessários se a vacinação coletiva fosse a estratégia adotada pelo poder público. O defensor Rafael Barbosa, um dos autores da ação, diz que “a opção preventiva é mais barata e efetiva do que tratar as pessoas doentes”. De acordo com uma lei aprovada em março, estados e municípios estão autorizados a comprar vacinas. O Ceará já assinou contrato para adquirir doses da Sputnik V. Outros estados estão se movimentando para comprar em conjunto. No Amazonas, a justiça concedeu uma liminar obrigando o estado a usar R$ 150 milhões com a “aquisição urgente, prioritária e essencial de vacinas”, mas o governo recorreu e a liminar foi suspensa. O processo segue em andamento.

Perguntei ao governo e à Secretaria de Saúde do Amazonas por que havia tantas pessoas na fila de espera por um leito, enquanto as UCIs permaneciam com cerca de metade das vagas ociosas. Por meio da assessoria de imprensa, eles responderam que “o sistema é dinâmico, pois ao mesmo tempo em que os chamados são atendidos, outros vão entrando”.

Uma resolução do Conselho Federal de Medicina, o CFM, publicada em abril de 2020, define os critérios para funcionamento das Unidades de Terapia Intensiva e das Unidades de Cuidados Intermediários e indica em que situação um paciente deve ser encaminhado para uma ou outra. Enquanto as UTIs oferecem suporte de alta complexidade para alguém em estado grave, incluindo a intubação, as UCIs são voltadas para quem necessita de monitoramento especializado, mas que não tem risco de morte iminente. É nessas unidades que são usados os respiradores não-invasivos, por exemplo.

Em uma entrevista no dia 28 de março, o secretário executivo de Assistência do Interior da Secretaria Estadual de Saúde, Cássio Espírito Santo, deu às UCIs uma nova característica que sequer está prevista pela resolução do CFM: a de leito temporário. Segundo ele, no Amazonas, as UCIs não seriam usadas “como ponto fixo de tratamento dos pacientes do interior”. Serviriam apenas para ganhar tempo antes de transferir os pacientes para Manaus. O problema, como mostram os boletins epidemiológicos, é que não haveria para onde transferir os doentes no período mais crítico da pandemia no estado – os hospitais da capital também não tinham mais vagas. Além disso, essa estratégia de investir em leitos que são usados apenas enquanto se espera transferência está custando caro.

Com o dinheiro gasto nas UCIs, seria possível manter mais de 20 leitos de UTI durante o mesmo período em que o governo gastou com as UCIs – dez meses. Segundo estudo feito em 12 hospitais brasileiros em 2020, uma UTI de covid pode custar quase R$ 2.500 por leito por dia. Isso, claro, sem considerar as dificuldades que o governo enfrenta para encontrar profissionais de saúde especializados no atendimento de alta complexidade.

Desde o início da pandemia, quase 369 mil pessoas foram diagnosticadas com a covid-19 no Amazonas e 12.562 morreram. Embora 54% dos casos tenham sido registrados em moradores do interior, quase 70% das mortes ocorreram em Manaus, justamente por causa das transferências. Atualmente, 60% das vagas destinadas a pacientes com a covid-19 na rede pública na capital estão ocupadas. Já no interior, quase 94% dos leitos de UCI estão vagos.

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