“Quem deve estar aqui não é o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra. É o Exército brasileiro”, vociferou o próprio Ustra, o odioso torturador de presos políticos – reconhecido como tal pela justiça e pelo estado brasileiro –, em depoimento à Comissão da Verdade em 2013.
Ustra se defendia dos crimes que cometeu alegando ter cumprido “ordens legais, nenhuma ordem ilegal” dadas pelo presidente da República da época (um ditador, na verdade) ao Exército para “combater o terrorismo”. Missão dada, missão cumprida.
Nesta terça, 27, uma outra comissão criada para (se funcionar a contento) descobrir fatos e culpados pelo morticínio de quase 400 mil brasileiros começa a trabalhar. Como na do começo deste texto, há um Brilhante Ustra a postos para expiar uma culpa que não é só dele: o general de três estrelas do Exército Eduardo Pazuello, ainda oficial da ativa e ministro da Saúde entre maio de 2020 e março de 2021. E que passará à história como o ministro da montanha de mortos por covid-19.
Como Ustra, Pazuello vai sentar provavelmente sozinho no banco dos investigados. Mas não devia ser o único a vestir verde-oliva. Falo dos generais da reserva que atuam como conselheiros dele e gostam de ser tratados pelas patentes militares no dia-a-dia político do Palácio do Planalto. E de pelo menos um outro, da ativa, que até há poucos dias se sentava na principal cadeira do Forte Caxias, o quartel-general do Exército em Brasília: Edson Leal Pujol.
Saudado pelo jornalismo embevecido como o homem que preferiu deixar o comando do Exército a permitir a politização dos quartéis, Pujol não é esse exemplo bem acabado de democrata que tentam nos empurrar. Faz parte do seleto grupo de altos oficiais que leu previamente e deu aval à ameaça pouco velada que Eduardo Villas Bôas, seu antecessor, tirou do armário para intimidar o Supremo Tribunal Federal caso o resultado de um julgamento não lhe agradasse.
Villas Bôas, como reconheceu o próprio Bolsonaro, é um dos responsáveis pelo indisciplinado capitão da reserva transmutado em político do baixo-clero ter chegado a presidente da República. O general da reserva, acometido por uma pavorosa doença degenerativa, prometeu em sua espécie de autobiografia levar detalhes sobre a tal ajuda pela qual Bolsonaro lhe é grato para o túmulo.
Mas é não preciso ser um gênio da investigação para saber a que Bolsonaro se refere. Sua campanha presidencial – e seu governo – são um consórcio com o Exército. A força abraçou o então deputado federal e lhe franqueou acesso a instalações militares para fazer campanha por ali já em fins de 2014, quando Dilma Rousseff recém havia sido reeleita. Um passo e tanto para alguém que saiu da força pela porta dos fundos e tinha que entrar escondido em quartéis da Praia Vermelha, no Rio, para espalhar santinhos nos tempos de vereador no Rio, como ficamos sabendo no episódio quatro do podcast “Retrato Narrado“.
Eleito, Bolsonaro se cercou de militares. Como se fosse pouco, cada baixa era vista como chance de trazer mais um fardado para a Esplanada dos Ministérios. Assim, quando Luiz Henrique Mandetta percebeu que ganharia mais dando no pé e se vendendo como a voz da razão que o presidente não quis escutar, os ministros-generais palacianos buscaram um dos seus.
É possível que tenha sido Walter Braga Netto, à época recém-nomeado ministro-chefe da Casa Civil, a se lembrar do general atarracado e acima do peso com quem trabalhou durante as Olimpíadas do Rio. Ou Luiz Eduardo Ramos, que então estava na Secretaria de Governo e comandava a 1ª Divisão de Exército, também na capital fluminense, durante os jogos. Ou Augusto Heleno, do Gabinete de Segurança Institucional, ex-comandante militar da Amazônia. Ou o vice-presidente Hamilton Mourão, outro general da reserva. Ou o próprio Bolsonaro. Seja como for, mandaram buscar Eduardo Pazuello.
‘Não sabia o que é o SUS’
“A hierarquia e a disciplina são a base institucional das Forças Armadas. A autoridade e a responsabilidade crescem com o grau hierárquico”, afirma o artigo 14 do Estatuto dos Militares. Em seguida, completa: “A disciplina e o respeito à hierarquia devem ser mantidos em todas as circunstâncias da vida entre militares da ativa, da reserva remunerada e reformados”.
Outro regulamento, o R-50, que disciplina transferências de praças e oficiais do Exército, é bem claro: eles só podem ser colocados “à disposição de organizações não pertencentes ao Ministério do Exército [atualmente, o da Defesa]” se houver autorização do comandante da força.
Quer dizer o seguinte: o general Pazuello – que havia apenas alguns meses havia assumido o comando da 12ª Região Militar, em Manaus, após ter liderado a Operação Acolhida, que organizou a entrada no Brasil de refugiados venezuelanos na fronteira com Roraima – não poderia aceitar o convite para ser secretário executivo e, mais tarde, ministro da Saúde, sem o aval de Pujol.
Não estou aqui a defender, óbvio, que o comandante do Exército negasse uma nomeação feita pelo presidente da República. O ponto não é esse, mas como o Exército – e seus oficiais – passaram a se sentir tão à vontade para ocupar qualquer posto no governo a que fossem convocados, mesmo sem o preparo necessário. E fizeram isso com a conivência do comando da força. Afinal, quem resiste a um carguinho?
‘Um desastre federal – e também verde-oliva graças à soberba e ao pouco caso de militares da reserva e da ativa’.
Vamos relembrar: há seis mil militares em cargos de nomeação política no governo. Há generais que ainda estavam na ativa quando foram correndo se sentar ao lado do mau militar no Planalto: Braga Netto e Ramos. E há um general que foi ministro por quase um ano sem jamais passar para a reserva: Pazuello. Este é um governo que é militar em sua essência.
A CPI da Covid pode querer saber: Pujol examinou o currículo de Pazuello? Fez a ele perguntas sobre sua aptidão para o cargo que ele estava louco para aceitar? Heleno, Braga Netto ou Ramos fizeram isso? Bolsonaro fez isso? Eu arrisco: ninguém fez. Tivessem feito, talvez percebessem que ia dar merda ao ouvir Pazuello confessar que sequer sabia o que era o Sistema Único de Saúde – coisa que ele fez, meses depois, diante de câmeras e microfones.
O resto da história é conhecido. Pazuello e o Exército compraram a panaceia de Bolsonaro: a cloroquina. O ministro implantou um protocolo de tratamento precoce que incluía a droga, enquanto a força se dedicou a fabricá-la. Já em junho de 2020, a Repórter Brasil dava conta de que o Exército havia gasto R$ 1,5 milhão para ampliar em inacreditáveis 100 vezes a produção da cloroquina em seus laboratórios. Fez isso sem qualquer evidência sólida de que o dinheiro seria bem gasto.
Meses depois, ficaríamos sabendo que o negócio está cercado de suspeitas. E, como a cloroquina é inútil contra a covid-19, a força acabou com um estoque suficiente para o uso correto dela – contra a malária – por 18 anos. É claro que boa parte do medicamento irá vencer antes disso e acabar no lixo.
Enquanto isso, as mortes causadas pelo coronavírus saíram do controle, o ministro foi desautorizado pelo presidente quando tentou comprar vacinas, e sua propalada especialização em logística de nada serviu para evitar que pessoas morressem em Manaus por falta de oxigênio. Foi um desastre federal – e também verde-oliva graças à soberba e ao pouco caso de militares da reserva e da ativa.
‘Pessoas físicas’ não
Com suas digitais por toda a parte na tragédia e a CPI da Covid crescendo no horizonte, parece estar em curso uma operação para blindar o Exército e sua já combalida imagem dos danos causados pela inépcia de Pazuello – e de quem o colocou no ministério. Não por acaso, dois generais da reserva soaram como disco riscado em suas respostas ao colunista Chico Alves, do UOL.
“As instituições não têm nada a ver com o convite para que algum de seus membros desempenhe função pública de caráter político, nem com a aceitação por parte da pessoa e nem com o desempenho na função”, disse Carlos Alberto dos Santos Cruz, bolsonarista de primeira hora, ex-ministro e uma espécie de oposição consentida dos militares de pijama ao governo.
“Os generais-ministros são pessoas físicas que aceitaram um convite pessoal para integrar o governo”, fez coro Francisco Mamede Brito, que ocupou cargo no Ministério da Educação. Santos Cruz, vamos recordar, é o sujeito que em 2018 disse que Fernando Haddad “representa fascismo, nazismo, racismo” por ser do PT, partido que ele abomina. Já Pazuello, militar da ativa, nada tem que ver com o Exército. Claro, general. Claro.
Ontem, segunda, foi a vez do vice-presidente Mourão tentar desvincular o general da ativa Pazuello do Exército. “A gente não pode tomar uma instituição por um dos seus integrantes”, argumentou, em live do jornal Valor Econômico. É curiosa a tese dos três: se não devemos tomar Pazuello pelos valores, tradições, condutas e visão do mundo da instituição que o formou, então por quem devemos tomar o Exército?
Mais crível e sincera parece a história que relata Ancelmo Góis, de O Globo. “Pazuello, quando o Bolsonaro lhe proibiu de comprar vacinas, você deveria ter pedido demissão. Obedecendo, você se ferrou e nos ferrou junto”, teria dito Pujol ao ex-ministro da Saúde.
Pazuello não ferrou o Exército, Pujol. Ferrou o país com colaboração ativa do Exército. Vamos repisar para ficar bem claro: a força abraçou Bolsonaro, abriu suas portas para ele fazer campanha e se tornou sócia do governo. E a imagem do Exército não é nada perto do custo da inépcia que ceifou – até agora – quase 400 mil vidas.
A CPI da Covid tem a chance de tirar a história a limpo. Mas para isso precisa chamar para depor os generais do Planalto, o ex-ministro Azevedo e Silva, o ex-comandante Pujol. São eles que podem esclarecer ao país que credenciais enxergaram em Eduardo Pazuello para tirá-lo da caserna e colocá-lo para gerir o combate à pandemia.
Pujol também pode responder sobre os armazéns abarrotados de cloroquina fabricada à toa com dinheiro público. Qual a explicação para isso? Quem mandou fabricar o remédio? Quem assinou a ordem? Alguém ganhou dinheiro fácil com o negócio? Quem?
Por vaidade ou coisa muito pior, políticos que gostam de ser chamados de general e oficiais que ainda vestem farda fizeram do Exército um protagonista da tragédia da covid-19. Não são os únicos, claro. A lista é imensa, e inclui de donos e editores de sites de fake news ao presidente da República, passando pelo comando do Conselho Federal de Medicina. Mas a CPI não pode se furtar a investigar o papel que militares desempenharam nessa tragédia.
As famílias enlutadas de quase 400 mil brasileiros mortos merecem uma investigação séria. Não pode ficar para uma próxima comissão da verdade.
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