Eu tinha 19 anos quando, pela primeira vez, alguém me disse que eu não existia. Eu estava na faculdade, perto de uma exposição sobre a morte de civis na Faixa de Gaza ocupada, durante um ataque israelense. Não consigo me lembrar do rosto do aluno que me abordou, embora me lembre do escárnio em suas vozes, a maneira como aquilo atingiu meu peito desprevenido. Eu não estava preparada para ser apagada.
“Palestinos não existem”, disseram eles. Com o tempo, esse momento se confundia, mas não desaparecia, misturando-se a inúmeras interações nas quais estranhos também me informavam sobre minha não-existência. Naquele momento, porém, foi uma experiência totalmente nova. Senti o breve lampejo de um sorriso antes que o sentimento de indignação tomasse conta das minhas entranhas. Antes que eu pudesse encontrar as palavras para responder, o acusador havia ido embora.
Que estranho dizer na cara de um ser humano que vive e respira, que eles são “irreais”. E qual seria a defesa adequada? Como responder a um delírio?
Claro, não é verdade que eu não existo: tenho um corpo feito de carne e osso. No entanto, em muitos aspectos, aquele estranho estava certo.
Porque algo acontece quando essa palavra é mencionada – palestino. No momento em que é pronunciada, torno-me algo mais, e muito menos, do que um ser humano.
PALESTINOS, como um povo, são visíveis, mas raramente são levados em conta. Não “existimos” como os outros; não temos um país formal, nem qualquer poder econômico ou militar para ser considerado. Temos uma história e uma cultura, mas essas são cada vez mais corroídas e apropriadas a cada ano que passa. Sobretudo, somos ofuscados coletivamente pelo que as pessoas pensam que sabem, pelo que pensam que somos: ameaças, criadores de problemas, terroristas.
É assim que podemos estar em tantas manchetes e, ainda assim, seguir morrendo tanto. Morremos, em parte, porque é isso que o mundo espera de nós. Nosso nome é invocado apenas em relação à brutalidade e ao conflito, que são apresentados como inevitáveis, como sendo nosso estado natural. Os noticiários parecem boletins meteorológicos: o “clima” “esquenta” e “transborda” para “outra onda de violência”. Nossas baixas são como as estações – uma safra de mortos de anos em anos, geralmente em Gaza.
Nossas imagens públicas revelam um mundo de poeira, tanques e soldados. Essas ruas desoladas e ameaçadoras se misturam na imaginação ocidental com o filtro cor de areia das imagens de outras mortes – afegãos, iraquianos, sírios – ofuscando ainda mais a todos nós. Os clichês envolvem tragédias individuais em uma repetição genérica, um arquivo infinito do que não é lembrado.
Tudo isso porque estamos entre as pessoas descartáveis do mundo. O que nos mata não é apenas a violência do Estado israelense, mas o fracasso coletivo da comunidade internacional em nos imaginar como seres humanos. É o mesmo fracasso que permitiu que tantos corpos negros fossem assassinados em plena luz do dia e se transformassem em vídeos virais, com tão pouca mudança sistêmica. Como Elizabeth Alexander escreveu: “Corpos negros sofrendo para consumo público têm sido um espetáculo nacional americano há séculos”. Com uma memória coletiva tão violenta, não é de se admirar que os americanos brancos tenham sido tão lentos e ambíguos na resposta à violência contra os negros. Pois quem é mais visível nos Estados Unidos do que uma pessoa negra? No entanto, quem é tão pouco levado em conta?
Esta é a contradição letal que gerações de intelectuais e ativistas negros trabalharam para desmantelar. O “problema das linhas de cor”, como W.E.B. DuBois chamou, só será resolvido quando os Estados Unidos, como um todo, compreenderem a humanidade plena do povo negro, que tem sido sistematicamente desumanizado. Não pode haver progresso, em suma, até que os Estados Unidos internalizem a verdade mais básica de que as Vidas Negras Importam.
Desta forma, os Estados Unidos e Israel enfrentam um fracasso moral semelhante: anos de privação intencional, abuso e roubo de um povo em nome da supremacia de outro grupo – em um caso, sob a bandeira da branquitude, e do outro, a do sionismo. Ambos apostaram em sua capacidade de suprimir os esforços dessas pessoas para resistir à opressão, por meio de encarceramento em massa, violência estatal e discriminação legal. E ambos viram que mesmo as repressões mais brutais não podem esmagar o espírito humano para sempre.
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QUANDO EU estava no último ano da faculdade, depois de perder a noção das vezes que me disseram que eu não existia, tive um encontro especialmente ameaçador com um estranho bêbado, que por acaso sabia que eu era palestina. Ele agarrou meu braço, forçando-me para junto de um círculo de seus amigos, e começou a me insultar por minha crença de que “árabes e judeus são iguais” e que “os palestinos devem ter direitos”. Seu assédio se transformou em ameaças sexuais, todas as quais seus amigos pareciam achar hilárias. No entanto, depois que eu finalmente escapei de suas garras, o que mais me assombrou foi o quão silenciosa eu tinha ficado durante seu discurso. Por que eu sempre congelava?
Há um efeito particular e paralisante que surge quando a humanidade é completamente negada. Nesse instante, as particularidades de uma vida – os amores, medos e ambições, as histórias familiares e as esperanças secretas – são apagadas. Isso é capaz de deixar uma pessoa sem palavras, abalada, sem controle sobre sua sensação de poder. Os bêbados que me interpelaram não pediram para debater políticas; eles questionaram a própria legitimidade de minha existência. Aquele momento foi direto à questão oculta do “conflito” israelense-palestino: a vida dos palestinos importa?
A declaração de que as “Vidas Negras Importam” nasceu na esteira dos protestos na cidade Ferguson e da resposta brutal da polícia – eventos que, para Angela Davis, lembravam as ruas de Gaza. A ideia – de que as vidas dos negros têm valor – é poderosa porque parece óbvia, mas nos obriga a confrontar todas as realidades materiais que a contradizem. Se a vida dos negros importa, por que os homens negros têm 6 vezes mais probabilidade de ser encarcerados do que homens brancos, e 3 vezes mais probabilidade de serem mortos pela polícia? Se as vidas dos negros importam, por que as grandes disparidades raciais em recursos, riqueza e saúde? Desta forma, essa simples afirmação ousa desmascarar as forças da anti-negritude e da supremacia branca que se encontram nos fundamentos desta nação.
Da mesma forma, a realidade material dos palestinos deixa claro que o Estado israelense dá pouco valor às suas vidas. Seria preferível que nem estivéssemos lá. A própria nação foi fundada no deslocamento violento de centenas de milhares de palestinos em 1948, incluindo minha família, e se expandiu por meio das guerras subsequentes e das atuais desapropriações e assentamentos em áreas como a Cisjordânia e Jerusalém. Os que permanecem têm sua existência negada diariamente, por meio de encontros intencionalmente desumanizadores com o estado israelense, de postos de controle arbitrários à violência extrajudicial, à exclusão econômica e a um complexo industrial prisional que captura milhares de palestinos, incluindo menores, a cada ano.
AS RECENTES “ESCALADAS” em Jerusalém apenas confirmam a irrealidade do meu povo. Os meios de comunicação relatam os eventos com um tom de contabilidade exata, sem se deixar afetar pelas grandes incongruências de feridos e mortos (na manhã de quinta-feira – o primeiro dia do Eid, feriado sagrado – mais de mil palestinos feridos e pelo menos 83 mortos, incluindo pelo menos 17 crianças, com sete mortes israelenses). Comentaristas atuando como locutores esportivos, apostando no próximo movimento do Hamas, Thomas Friedman falando sobre a juventude palestina e o TikTok. Jovens atirando pedras e forças militares letais retratados como adversários iguais, ou pior, um Davi e Golias ao contrário, os civilizados contra uma multidão raivosa de pele morena.
Eles nunca vão conseguir explicar como cada um de nós quebra e sangra de forma única, o quão específico é o sofrimento e a resiliência de cada indivíduo. Você nunca ouvirá, como ouvi ao telefone falando com Jerusalém esta semana, os detalhes que tornam este drama tão humano. Uma família de Sheikh Jarrah que não quer perder seu jardim, enchendo meu chat no WhatsApp com fotos de árvores e suas raízes fixadas décadas atrás. Outro jovem que não conseguia esquecer do que viu na mesquita de Al Aqsa: não o derramamento de sangue ou seus companheiros que ficaram cegos, mas todas aquelas botas de soldados, pisoteando o solo sagrado. Suas botas, suas botas, ele lamentava. Suas botas sujas.
OS NEGROS AMERICANOS têm nos mostrado, repetidamente, que não vão permitir que os tornem irreais – e neste último ano, muito mais pessoas pareceram ouvir. Para os negros americanos que enfrentam a violência do Estado em sua rotina, o assassinato de George Floyd foi trágico e nada surpreendente. No entanto, essa morte em particular pareceu aderir ao imaginário mais amplo da população americana, conseguindo, de alguma forma, atravessar a bolha de indiferença com sua força visceral, sua especificidade. Floyd era visto como um indivíduo, um ser humano, e seu nome tornou-se um movimento. “Vidas Negras Importam” ressurgiu, em parte graças ao súbito reconhecimento pelos americanos brancos de uma vida negra e sua morte em particular.
Os palestinos responderam rapidamente ao movimento George Floyd, protestando em solidariedade, traçando paralelos entre suas próprias experiências de encarceramento em massa, aplicação da lei militarizada, discriminação legal, joelhos no pescoço de civis. O rosto de Floyd decorou trechos da barreira israelense, ao lado de murais de palestinos mortos por policiais e soldados israelenses, incluindo Iyad Hallaq, um homem com autismo, desarmado, baleado no caminho da escola para casa. A morte de Floyd também gerou discussões nas comunidades palestinas e árabes sobre sua própria anti-negritude. Esse internacionalismo não é novo: por anos, os ativistas palestinos buscaram inspiração no movimento americano pelos direitos civis, na luta sul-africana contra o apartheid e em outros cenários. Eles também ofereceram sua solidariedade e apoio a movimentos no exterior, incluindo os protestos de Standing Rock e outros esforços pelos direitos indígenas.
Os palestinos aproveitaram essas experiências nas semanas que antecederam as recentes “escaladas” dos conflitos. Na presença de turbas gritando “Morte aos árabes”, violência policial nos solos sagrados da mesquita de Al Aqsa e a invasão flagrante de colonos em Sheikh Jarrah, os protestos palestinos permaneceram “em grande parte pacíficos”, conforme a Anistia Internacional. Este longo sofrimento foi ofuscado pelos “confrontos” cada vez mais brutais em torno da Mesquita de Al Aqsa, em que as forças armadas israelenses lançaram granadas de concussão e balas com ponta de borracha contra os fiéis, ferindo mais de mil, incluindo 170 em uma única oração de sexta-feira durante o mês sagrado do Ramadã .
Agora, com o envolvimento do Hamas fornecendo justificativa para Israel liberar seu arsenal de nível internacional, os riscos morais específicos dos eventos se dissolvem na narrativa familiar e genérica: Israel se defende, palestinos morrem. As manchetes, para a maioria dos leitores, serão reaproveitadas; o número de mortos será empacotado na linguagem higienista dos cálculos militares e do jargão diplomático.
Enquanto isso, os defensores do direito dos palestinos de resistir serão inundados com questionamentos sobre isso e aquilo, e pedidos para que a violência seja denunciada – questões às quais os militares israelenses, infinitamente mais poderosos, nunca estarão sujeitos. Pelo contrário, o primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu avisou esta semana de que a matança em Gaza foi “apenas o começo”. “Vamos atingi-los como eles nunca sonharam ser possível”.
Enquanto isso, os detratores usarão quaisquer baixas ou danos à propriedade do lado israelense para desacreditar todo o movimento, assim como os rótulos de “agitadores” e “desordeiros” foram usados para desacreditar os ativistas negros dos anos 1960 até hoje. A ilegalidade fundamental da ocupação não será mencionada. Negociadores e jornalistas exigirão que os palestinos se comprometam com a não violência, nunca reconhecendo os anos de resistência pacífica que mantiveram, apesar de todas as dificuldades.
Enquanto os comentaristas reciclam a retórica do “ambos os lados”, o número de mortos irá, como sempre, aumentar exponencialmente de um lado. A destruição de Gaza será desculpada como necessária para parar o “terrorismo”, apesar da aniquilação de dezenas de civis, incluindo crianças. Eventualmente, surgirão conversas sobre “condições” para um cessar-fogo – uma pausa na morte palestina deve sempre ter condições. Ninguém vai pressupor que as vidas palestinas, como vidas, simplesmente importam.
Talvez, desta vez, algo seja diferente. Com o recente ceticismo em relação às forças da lei e encarceramento, forjado pelo movimento de protestos por George Floyd, muitos progressistas woke parecem ter encontrado ressonância com as cenas de protestos de civis palestinos em todos os territórios e em Israel, lançando suas próprias marchas em todo o mundo. Talvez, depois de um ano em que as palavras “descolonização” e “interseccionalidade” tenham se tornado memes, nas quais as redes sociais tenham se tornado uma via capaz de canalizar a indignação e a mobilização, esse “choque” seja finalmente reconhecido pelo que é: uma luta pelo direito dos palestinos serem humanos.
Tal mudança seria um avanço: assim como os Estados Unidos vão seguir assombrados até que as vidas dos negros sejam total, verdadeira e igualmente valorizadas, não pode haver paz entre Israel e Palestina até que todas as vidas envolvidas sejam consideradas humanas. É compreensível que este cálculo seja aterrorizante para as nações construídas sobre a negação sistemática de certas humanidades, mas não há outra maneira. E se o ano passado nos ensinou alguma coisa, é que nada é capaz de superar a busca do indivíduo por sua dignidade.
“Os mitos dos ‘dois lados’ e da autodefesa” – de Israel – “estão se tornando cada vez mais permeáveis”, disse Mohammed el-Kurd, cuja família está sofrendo o deslocamento forçado de sua casa em Sheikh Jarrah, durante uma entrevista à CNN esta semana. “As pessoas estão conseguindo enxergar através desses mitos e chamar uma ocupação pelo que ela é, e um agressor pelo que ele é.”
E talvez, também, comecem a nos levar em conta.
Tradução: Antenor Savoldi Jr.
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