O processo de demarcação das terras do povo indígena Terena entre o Cerrado e o Pantanal do Mato Grosso do Sul se arrasta há pelo menos 40 anos. Mas o registro de uma estância luxuosa no mesmo local, pedido pela Caiman Agropecuária, ligada à família Klabin – fundadora de uma das maiores fabricantes de papel do continente –, foi aprovado em um piscar de olhos. Bastaram dois meses entre o requerimento e o aval do cartório responsável, tudo com a benção do governo federal. A Caiman tem como sócio Roberto Luiz Leme Klabin, um dos herdeiros e também conselheiro da holding que controla a gigante do papel – que ainda atua como vice presidente da Fundação SOS Mata Atlântica e do Instituto SOS Pantanal.
A rapidez para a regularização de 7,6 mil hectares da estância Caiman – área equivalente a quase 50 parques do Ibirapuera somados – só foi possível graças a uma canetada do presidente da Funai, o ex-delegado federal Marcelo Xavier. Por meio da Instrução Normativa nº 9, de 2020, ele mudou as regras para o reconhecimento dos territórios indígenas nos mapas do governo, abrindo a porteira de uma área maior que o estado de Pernambuco formada só por reservas em demarcação.
Veio breve e simples o registro de uma das duas parcelas que compõem a estância Caiman, um santuário ecológico maior que 50 mil estádios do Maracanã ao todo, entre os municípios de Aquidauana e Miranda, Mato Grosso do Sul. Por meio de sua empresa, Klabin pediu a regularização das terras no dia 13 de novembro do ano passado, sete meses após a Funai ter mudado as regras. Em janeiro deste ano, tudo estava ok no Sistema de Gestão Fundiária do governo.
Mas parte deste latifúndio, em Miranda, invade terras reclamadas por quase 8 mil indígenas. Para a própria Funai, cerca de 1,8 mil hectares da estância Caiman pertencem aos Terena – a demarcação plena de sua Terra Indígena Cachoeirinha é um processo que se arrasta há décadas. Um relatório produzido a partir de dados georreferenciados do próprio governo federal, obtido pelo Intercept, confirma a sobreposição da estância às terras reclamadas pelos indígenas.
“Para nós, nossa terra nunca foi demarcada, porque há mais de 100 anos o antigo Serviço de Proteção ao Índio fechou uma área pequenininha e disse ‘aqui vão ficar os índios’. Mas a gente vivia sem fronteira por aqui”, me disse uma das lideranças Terena, que pediu anonimato por medo de retaliações.
Driblando a Justiça Federal
Por anos, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, o Incra, não legalizou a estância de Klabin e muitas outras por uma questão técnica. Até abril de 2020, o sistema fundiário do governo continha limites de todas as terras indígenas em demarcação, regularizadas ou não. Caso alguém abrisse um registro nelas, o bloqueio era automático.
Desde a canetada do presidente da Funai, porém, apenas territórios regularizados constam como válidos no sistema do Incra. Com as novas regras, supostos proprietários ganham certificados e registros oficiais, utilizados na obtenção de liminares para reintegrações de posse, por exemplo.
Ou seja: com a publicação da normativa nº 9, Marcelo Xavier liberou quase 10 milhões de hectares sob demarcação – incluindo a reserva Cachoeirinha – para fazendeiros e ruralistas dos mais variados.
Em junho do ano passado, dois meses depois da canetada da Funai, havia pouco mais de 1,1 mil invasões em territórios indígenas mapeadas, segundo dados obtidos pelo Intercept por meio da Lei de Acesso à Informação. Mas a Funai se recusou a detalhar quantas delas foram regularizadas desde então. A fundação diz apenas que analisou um “total de 192 processos” de regularização até 3 de janeiro de 2021, sem dizer onde ficam estas fazendas.
Um relatório feito pela consultoria GeoPrecisa, especializada no sistema do Incra, dá a dimensão do potencial estrago: pouco mais de 400 mil hectares. São quase quatro cidades do Rio de Janeiro só de fazendas validadas pelo governo potencialmente dentro de terras indígenas em todo o país.
A estimativa é fruto de uma sobreposição dos dados da Funai, com sua base de territórios em todos os estágios de demarcação, aos registros validados pelo Incra entre 16 de abril de 2020 e 31 de março passado. Assim, a GeoPrecisa identificou potenciais invasões em mais de 400 mil hectares.
Fazendeiros no Mato Grosso e no Mato Grosso do Sul saíram na frente – entre eles, grandes empresas, grupos estrangeiros e políticos estão entre os favorecidos até agora. Eles já legalizaram quase 230 mil hectares dentro de terras em demarcação em ambos os estados, somados, segundo a GeoPrecisa. Geralmente, com documentos do Incra em mãos, fazendeiros acessam empréstimos e financiamentos para seus agronegócios, entre outros benefícios.
Não à toa procuradores do MPF ingressaram com 29 ações em todo o país para anular os efeitos práticos da normativa nº 9 da Funai. Só no Mato Grosso do Sul, eles entraram com três processos. Para o MPF, a mudança nas regras “cria insegurança jurídica”, “abre espaço para os conflitos fundiários, para os danos ambientais, para a grilagem de terras e o grave risco do aumento dos casos de coronavírus entre os povos indígenas”.
Um dos pedidos do MPF foi aceito pela Justiça Federal em novembro do ano passado, cinco dias antes de Klabin pedir registro de sua estância em solo Terena. Na decisão, a juíza Janete Lima Miguel proibiu regularizações – os novos registros “poderão, à primeira vista, ser considerados nulos”.
Para Miguel, as mudanças da Funai podem provocar “aumento de conflitos fundiários nos territórios”, “com a desproteção territorial dos grupos indígenas”. O MPF no Mato Grosso do Sul confirmou o recebimento das informações sobre o registro da estância Caiman, garantindo que fará uma “análise da situação”.
A Funai disse que “não comenta decisões judiciais”. O órgão alega que a normativa nº 9 “é respaldada por estudos técnicos e jurídicos” e que está “promovendo segurança jurídica no campo e respeitando o direito de propriedade”.
‘Propriedade privada e elitista’
A estância de Roberto Klabin – que, além de herdeiro da indústria do papel é também fundador da Fundação SOS Mata Atlântica – se apresenta como um refúgio para espécies ameaçadas de extinção como araras-azuis e onças-pintadas, típicas de uma deslumbrante paisagem ora alagada, ora seca, no oeste do Mato Grosso do Sul. Um recanto turístico feito sob medida para hóspedes de alto nível, como o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, do PSDB, que ali se hospedou durante o Natal de 2001, como narrou a Folha de São Paulo. “Aqui é uma propriedade privada e elitista, pois eu quero manter um certo padrão”, afirmou Klabin ao jornalista Jorge Fernando Santos anos atrás.
Ao Intercept, Klabin confirmou: “buscamos menos turistas pagando mais, ao invés de mais turistas pagando menos”. “É uma área de alto custo, somente um turismo de observação da natureza poderia trazer os recursos necessários para a mantermos protegida”, afirmou.
Advogado de formação, ele tem trânsito com ambientalistas graças à SOS Mata Atlântica e outras de suas organizações, como o Instituto SOS Pantanal. Seu lado empresarial não ganha tanto destaque, resumido em uma linha e meia no site do grupo Klabin. É por meio da Caiman Agropecuária Ltda., dona da estância que ocupa parte do solo Terena, que Roberto Klabin controla um patrimônio de quase R$ 44 milhões, que inclui tanto as terras quanto os rebanhos de gado nela criados.
A Caiman Agropecuária é responsável por ao menos dez processos na justiça, emperrando a demarcação de Cachoeirinha. Em um deles, a empresa de Klabin até pediu ao Tribunal Regional da 3ª Região que impedisse o acesso de técnicos da Funai às terras, atravancando a demarcação física da área, mas o desembargador responsável negou o pedido. “Aqui eu criei um projeto de pecuária extensiva de corte, de pesquisa científica, um abrigo para projetos ambientais e uma estância turística. Por que vou ceder e aceitar?”, ele me disse.
O herdeiro da Klabin afirmou ainda que seu registro não tem relação com a normativa nº 9 da Funai, alegando motivos fiscais, ligados à cobrança indevida de impostos pela prefeitura de Miranda. Esta, por outro lado, não retornou os contatos do Intercept para confirmar.
O Incra se eximiu, dizendo que a base de dados de seu sistema “é alimentada pelo Ministério do Meio Ambiente e pela Fundação Nacional do Índio (Funai)”. Disse ainda que o registro da estância Caiman “passou por análise” do “Incra em Mato Grosso do Sul e do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade”. Já a Funai não respondeu nossas perguntas específicas sobre o caso de Roberto Klabin.
Um exército de fazendeiros
Há décadas o povo Terena pede a revisão de suas terras, com pouco mais de 2,6 mil hectares regularizados no Mato Grosso do Sul, entre os municípios de Aquidauana e Miranda. O atual perímetro de Cachoeirinha se baseia em relatos do marechal Rondon, escritos há mais de um século.
Após estudos preliminares, a própria Funai avaliou que esta terra indígena deveria ser ao menos 13 vezes maior. Por isso o Ministério da Justiça determinou em 2007 sua expansão para mais de 36 mil hectares. A revisão da área causou a ira dos vizinhos, outros 55 fazendeiros além de Klabin.
“A maioria deles tem poucas terras, e já mostramos a eles como a demarcação não será ruim, como a União tem dinheiro reservado para pagar pelas terras como manda a lei. O problema são os grandes fazendeiros, que ameaçam os pequenos dizendo que, ‘se aceitarem acordo, vão ficar sozinhos, não terão ajuda dos advogados’ importantes deles”, me disse uma das lideranças Terena.
Em uma ação unificada contra estes 55 fazendeiros, a Funai os acusa de apresentarem “resistência injustificada ao ingresso dos técnicos e à continuidade dos trabalhos de demarcação”. Na decisão mais recente, a Justiça Federal ordenou a retomada da demarcação. Mas o MPF no Mato Grosso do Sul diz que, “após essa decisão, os réus (os fazendeiros) entraram com embargos de declaração, que têm efeito suspensivo”. “Para nós tá tudo igual, tudo parado”, diz a mesma liderança Terena.
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