Fabiana Moraes

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Champanhe, preconceito e dedo na cara: reagente, a baladeira covideira tá na pista

Nascida num Brasil orgulhoso da própria arrogância, a baladeira covideira não admite que interfiram na sua liberdade, inclusive a de espalhar o vírus.

Champanhe, preconceito e dedo na cara: reagente, a baladeira covideira tá na pista

Champanhe, preconceito e dedo na cara: reagente, a baladeira covideira tá na pista

Ilustração: Amanda Jungles/The Intercept Brasil

Vai pra balada
Dança bate-estaca
Com a sua tribo
Até de madrugada
(Burguesinha, Seu Jorge)

Ela não perde uma festa, um freje, um tum-tum-tum. É eclética: curte disco, house, pop, adora um axé romântico e se joga no sertanejo (“‘Cê’ tá solteira/hasthag baladeira/e cai na bebedeira”). É super de boas e acredita na liberdade individual de ir e vir. Repleta desta máxima, ela se joga no fim de semana e segue para uma baladinha VIP divulgada em circuito fechado sempre cumprindo todos os protocolos: saltão, cabelão, bocão e post nos Stories. Se aglomera com centenas de outras pessoas em local fechado, ferve no show ao vivo, sacode até o chão, a tacinha de rosé firme na mão.

A vida é para ser vivida – e a baladeira covideira, como diria a música, just wanna have fun.

Mas se algo atrapalhar o direito de celebrar dessa nova personagem nascida em um Brasil orgulhoso da própria arrogância, sai de baixo. A baladeira covideira (CB) é extremamente reagente (perdão pelo trocadilho), e não admite que interfiram na sua liberdade, inclusive a de espalhar o coronavírus. Aqueles que o fizeram – policiais e agentes de saúde, por exemplo – foram recebidos assim:

– Vai tomar no cu! Vai tomar conta de quem torra! Vai para favela, caralho!

ou assim:

– Eu, como médica e vacinada, vou para onde eu quiser (…) você para mim não vale nada.

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Se for possível já realizar, no quente, uma análise sócio-cultural deste fenômeno contemporâneo, é preciso dar alguns poucos passos atrás e ir até o fim de abril de 2020. Fazia quase dois meses que o país, em pânico, havia entrado no circuito da pandemia quando a influenciadora fitness Gabriela Pugliesi realizou, no dia 25, uma festinha “para poucos e bons” em seu apartamento. Queria comemorar a volta da amiga Mari Gonzalez, que há pouco saíra do BBB. Diferentemente das covidalites (covid + socialite, também peço perdão por isso) que apareceriam nas redes ofendendo policiais, imprensa e agentes de saúde, Pugliesi foi, digamos, mais holística. Ela não focou seus imperativos neste ou naquele grupo e, através do onipresente Stories, mandou essa:

– Foda-se a vida!

A influenciadora, que já contraíra o coronavírus na festa de casamento da sua irmã no início de março daquele ano em Itacaré, na Bahia, dava a largada para toda uma sorte de aparições futuras que seriam talhadas invariavelmente pelo recorte de classe, o “você sabe com quem está falando?”, e, subjacente a isto, o racismo.

O espetáculo realizado por Liziane Gutierrez, a bebê do “vai tomar no cu” e desde já rainha das covideiras baladeiras, é sem dúvida um dos mais ruidosos e significativos. Não exatamente pelo ataque da moça aos policiais que acabaram com a festa clandestina na qual estavam ela e cerca de 500 pessoas na região dos Jardins, em SP, em 11 de julho. Naquele dia, ferida em seu direito de exibir o look bafônico, ela ainda chamou os agentes de “merda”. É justamente a ausência de qualquer atitude da PM frente ao explícito desacato a mais eloquente questão daquela botocada performance. Tanto que, dias depois, a própria covidalite, o rosto inchado por um novo procedimento cirúrgico, comentou a respeito: “não tenho culpa de não ter sido presa”.

Liziane está coberta de razão: se os policiais estivessem na favela e fossem ofendidos como no dia da festa na Rua Canadá, o roteiro seria outro. Certamente alguma prisão, algum tiro, quiçá alguma morte. Mais: dificilmente voltariam humilhados para casa após serem lembrados que ali não era lugar para eles. Afinal, a modelo, atriz e traveller estava em uma festa na qual somente o ingresso custava R$ 1,6 mil, sem contar os custos das tacinhas de champanhe e todos os mimos necessários. De acordo com o 15º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, a média salarial de um PM é de R$ 5.655,87 por mês (os valores mudam significativamente a depender do estado). Atualmente, a chamada de um concurso para PM em Alagoas anuncia salário inicial de R$ 4.250,06. No país, a renda média de mais da metade das trabalhadoras e dos trabalhadores está abaixo de um salário mínimo (dados do IBGE).

O valor da entrada, é verdade, era uma mixaria perto de outro rega-bofe que seria realizado uma semana depois também em São Paulo, bairro Santo Amaro, zona sul. Ali, na madrugada de 18 de julho, acontecia a Festa do Bryan, uma “balada de alto padrão” na qual os ingressos chegavam a R$ 18 mil (valor do camarote). Lá dentro, 1,5 mil pessoas, segundo a polícia, celebravam a liberdade de ir e vir próprias de quem tem saldo positivo na conta-corrente, plano de saúde e a certeza de que não vai levar lapada da polícia se for abordado.

Foi o caso da Médica Loura Misteriosa, cuja ausência do nome no noticiário é tão significativa quanto a falta de ação da polícia no desacato de Liziane Gutierrez: é um tratamento VIP, coisa de gente protegida, que tem dinheiro e contatos sociais suficientes para evitar os constrangimentos vivenciados pela ralé. Tipo aquele povo pobre e constrangido que aparece nos programas policiais vespertinos, e a gente acha muito engraçado, sabe?

Conectada às últimas tendências da moda e usando um pretinho básico coordenado às delicadas joias, a covideira baladeira ficou P-A-S-S-A-D-A quando a polícia desligou o som eletrônico da festa de Bryan e, mais ainda, quando foi abordada por uma equipe de reportagem.

Ao se ver prestes a ser eternizada pela câmera, a moça se irritou: aparentemente, ela não estava pronta o close, sr. DeMille. Ato contínuo, a CB deixou logo bem claro quem era quem naquele petit comité: “Eu não vou nem falar com você, sabe por quê? Porque você, para mim, não vale nada. Câmera, para mim, não vale nada”, disse, se dirigindo ao cinegrafista.

O classismo (ou aporofobia, raiva de pobre) coordenado a um look básico, mas atemporal, continuou: com a máscara cobrindo apenas a boca, a CB informou que era médica, que salvava vidas e questionou o que o cinegrafista estava fazendo. Magnânimo perante o óbvio, ele respondeu: “Trabalhando”. “Trabalhando como? Você fica mudo, não tem fala, porque você não sabe o que fala.”

Percebam: temos uma mulher que se declara médica, a máscara caindo do rosto, em uma festa fechada ilegal com 1,5 mil pessoas na maior pandemia do século, dizendo a outra pessoa que ela não sabe o que fala. Não é fascinante esse mix de joias delicadas, pretinho básico e truculência? Será a covideira baladeira apenas uma versão festiva de outro tipo do Brasil patriótico, o macho desgovernado?

(Em tempo: nesse ínterim, ainda houve espaço para uma espécie de carteirada da saudade, quando a autodeclarada médica mostrou um documento do Hospital Geral do Grajaú. Procurada, a direção do local avisou que a Médica Loura Misteriosa não trabalha por lá há mais de um ano).

Energético na aldeia indígena

Assim como a pandemia, a justaposição entre falta de noção, balada e covid-19 é heterogênea e global: ela caracteriza ainda homens de várias idades e pessoas de diferentes nacionalidades, como vimos no caso do já histórico cruzeiro Amazon Immersion. Em abril deste ano, as embarcações de luxo do festival receberam cerca de 70 pessoas, entre estrangeiros e brasileiros, para participarem de uma super balada e de “uma jornada em direção a novas experiências”, com muita “cultura, natureza, música, gastronomia, autoconhecimento e amizades”. Sentiu um cheirinho do eau de parfum da direita gratiluz? Eu também.

A “imersão” contou com muito drinque energético e covideiros baladeiros vestidos com cocares (sim, cocares) e acessórios luminosos enquanto ferviam na pista dos barcos que subiam o rio enquanto realizavam paradas em comunidades ribeirinhas e indígenas. Nos vídeos, a trupe festeira aparece batendo na boca e imitando indígenas (norte-americanos, no caso). É a cereja do bolo desse grande mico criminoso que custou entre 1,1 mil a 2,1 mil dólares, o equivalente a R$ 6.100 e R$ 11.700.

A comunidade do Cipiá, no baixo rio Negro, foi visitada. Ali, onde vivem povos das etnias Dessana, Tukano, Tuyuka, Cubeo e Bará, os turistas passaram a noite, dançaram e participaram de um ritual. Não deixaram espelhinhos, mas pagaram R$ 20 por pessoa, conforme contou o cacique Domingos Sávio Veloso Vaz na ótima matéria do Amazônia Real feita por Leanderson Lima. Cerca de 50 turistas do Immersion estiveram na balada. Até o fim de abril, 43 indígenas da comunidade contraíram o coronavírus. Poucos meses antes, em janeiro, o Amazonas viveu um colapso no sistema de saúde, com fila de espera por vagas em hospitais e várias pessoas morrendo por falta de oxigênio nas unidades de saúde.

O cruzeiro foi denunciado através do perfil no Instagram Brasil Fede Covid, criado para denunciar festas ilegais durante a pandemia. Por conta disso, a imersão amazônica, iniciada em 2 de abril, terminou no dia 6, após a interceptação dos policiais do Departamento de Repressão ao Crime Organizado, e da Força Especial de Resgate e Assalto, Grupo Fera. Das 44 pessoas detidas, 18 eram estrangeiras e vinham da Grécia, Canadá, Israel, Suécia, México, Eslováquia, Polônia, Alemanha, Marrocos, Luxemburgo, Itália, Estados Unidos e França. Durante a operação, parte dos turistas protestou contra a interceptação, mas desta vez a atitude se diferenciou do caso da festa em Higienópolis: foi todo mundo para a delegacia.

Poucas semanas depois, apesar da repercussão do cruzeiro, foi realizada outra Covid Party de alta toalete, agora no Copacabana Palace (então é outra festa/é outra sexta-feira/que se dane o futuro/você tem a vida inteira). Em comemoração ao aniversário do bicheiro Adilson Coutinho de Oliveira, 500 pessoas ocuparam um dos salões do local com devida anuência da prefeitura carioca, que, só após as críticas nas redes, resolveu multar o hotel com pouco mais de R$ 15 mil.

No salão fechado, muita pirotecnia e os shows de Ludmilla, Gusttavo Lima e Alexandre Pires levaram as tacinhas de rosé para a pista e redes sociais. Diferentemente dos outros rega-bofes citados aqui, não teve polícia na porta – o Rio de Janeiro continua lindo –, e a festa durou até raiar o dia. Assim, não se ouviu nenhum “você sabe com quem está falando” nem qualquer dedão na cara de ninguém.


Para quem quiser adentrar mais o assunto, uma boa análise etnográfica sobre distinção social e a juventude baladeira está na pesquisa Jovens, festas e luxo: uma etnografia de um circuito de lazer de elite em Florianópolis/SC, de Thais Henriques Ramos 

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