Documento da Coca-Cola nos EUA lista Guia Alimentar para a População Brasileira como ameaça

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Relatório afirma que o guia é “punitivo” para açúcar e refrigerantes, e aponta o Brasil como grande risco para a corporação em termos de políticas públicas.

Documento da Coca-Cola nos EUA lista Guia Alimentar para a População Brasileira como ameaça

Um documento produzido para a Coca-Cola dos EUA coloca o Guia Alimentar para a População Brasileira na lista de problemas para a corporação. A análise de riscos da consultoria Sancroft descreve a diretriz oficial do Ministério da Saúde como “punitiva para o açúcar e para nossas bebidas, classificando-as como alimentos ‘ultraprocessados’”.

Em linhas gerais, o documento de 155 páginas aponta o Brasil como um dos maiores riscos para a empresa em termos de políticas públicas. Ao todo, são apresentados seis “mapas de calor” que dividem os países entre os que não têm qualquer perspectiva de regulação do setor, os que têm “potencial” e os que têm uma chance “alta-severa”. O Brasil aparece como ameaça à Coca-Cola em cinco dos mapas.

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Publicado em novembro de 2014, o Guia Alimentar foi o primeiro do mundo a separar os alimentos de acordo com o grau e a finalidade do processamento, como aumentar o prazo de validade, por exemplo. Além disso, o guia é pioneiro em declarar enfaticamente a necessidade de evitar ultraprocessados. Ele dedica um capítulo inteiro à questão, definindo uma regra de ouro: “Prefira sempre alimentos in natura ou minimamente processados e preparações culinárias a alimentos ultraprocessados”. Desde então, esteve sob pressão da indústria antes mesmo do lançamento e, sete anos depois, permanece sob ameaça constante por parte de ruralistas e lobistas de ultraprocessados.

Várias iniciativas foram tentadas para enfraquecer o documento do Ministério da Saúde. O ex-ministro Arthur Chioro relatou ao Joio como foi pressionado pela Associação Brasileira da Indústria de Alimentos, a Abia, para que não permitisse sequer sua publicação. No ano passado, a ofensiva ganhou novos contornos com a pressão direta do Ministério da Agricultura pela revogação do documento.

A Coca-Cola Brasil foi procurada pela reportagem para comentar o dossiê da Sancroft, mas preferiu não se manifestar.

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O relatório “Principais questões regulatórias” foi formulado por encomenda da Coca-Cola em abril de 2016. Ele está numa base de dados da Universidade da Califórnia, nos Estados Unidos, e foi localizado em julho deste ano pela pesquisadora Camila Maranha, professora adjunta da Faculdade de Nutrição da UFF, a Universidade Federal Fluminense. Para ela, o documento é  “valioso” por “mapear a agenda regulatória no mundo todo, o que mostra uma estratégia global bem articulada”.

Como o dossiê vazado integra uma troca de e-mails entre funcionários da Coca-Cola, é possível ver que, em  7 de maio de 2016, um sábado, às 23h15, o documento foi encaminhado à equipe de Assuntos Regulatórios e Científicos da Coca-Cola pela vice-presidente global desse setor, Wamwari Waichungo. Na mensagem, ela destaca que, diferentemente de documentos anteriores, o dossiê continha o que ela chama de “panorama competitivo”: basicamente, uma comparação entre as políticas adotadas por concorrentes, redes de supermercado e cadeias de restaurante em relação aos tópicos centrais discutidos no documento, como açúcar, cafeína, corantes, transgênicos e rotulagem.

No dia seguinte, um domingo, às 17h35, o então vice-presidente internacional para Relações Governamentais e Relações Públicas da companhia, Michael Goltzman, repassou o documento aos integrantes de sua equipe.

O relatório faz parte de uma série de documentos que vieram à tona nos últimos anos, no que ficou conhecido como Coca Leaks. Entre outras coisas, os vazamentos expuseram como a fabricante de refrigerantes se envolveu na produção de evidências científicas que buscaram apresentar o sedentarismo, e não os alimentos, como principal causa de obesidade e doenças crônicas.

As “Principais questões regulatórias” elencadas pela Sancroft divide os problemas em seis tópicos principais:

De todos esses, o Brasil só não figura como um risco “alto-severo” no primeiro tópico, bisphenol A. A única proibição do país a esse composto é o uso em mamadeiras. Conforme indica o próprio relatório vazado, o bisphenol já foi associado ao desenvolvimento de câncer de próstata e ao amadurecimento sexual precoce em mulheres, quando absorvido em grandes quantidades.

Europa e Estados Unidos eram as principais preocupações da empresa quanto ao composto. O dossiê lembra que, àquela altura, todos os países da União Europeia e o Canadá já haviam passado leis proibindo a utilização de bisphenol na fabricação de alimentos voltados a crianças.

Embora açúcares e adoçantes compreendam apenas o último capítulo, fica claro que esse é o principal ponto de preocupação da empresa – são 24 páginas dedicadas ao problema.

A Sancroft lembra que a atenção crescente às doenças crônicas colocou o açúcar no centro das discussões, em paralelo a uma também crescente aversão por ingredientes artificiais, com destaque para os adoçantes. Com isso, os governos estavam agindo no sentido de criar novos impostos, formular rótulos mais claros e restringir a comercialização, como em cantinas escolares.

“Muitas das políticas propostas são discriminatórias ou punitivas, mirando ingredientes específicos ou categorias de produtos”, escreveu a empresa de consultoria. “Muitas destas políticas afetam negativamente o portfólio da Coca-Cola, em particular as bebidas gaseificadas e as que contêm adoçantes”.

O mapa de calor relativo a esse assunto coloca Brasil, Chile, Bolívia, Equador e México entre os países de risco “severo-alto”. No caso chileno, a projeção era de que 50% do portfólio da Coca seria afetado pela adoção de alertas na parte frontal da embalagem.

Mapa

Em mapa sobre açúcares e adoçantes presente no relatório, lê-se: ‘Brasil: Diretrizes dietéticas nacionais negativas. Mistura de açúcar e adoçantes permitida’.

No caso brasileiro, o mapa indica “diretrizes dietéticas negativas” e explica que a empresa considera o Guia Alimentar lançado em 2014 (os autores falam erroneamente em 2015) como “punitivo” a seus produtos.

Daniela Canella, professora da UFRJ, a Universidade do Estado do Rio de Janeiro, e uma das integrantes do grupo de pesquisadores que formulou o texto-base do guia, lembra que “a literatura sobre os malefícios à saúde relacionados ao consumo dos ultraprocessados é extensa, incluindo obesidade, hipertensão, diabetes, câncer”, motivo pelo qual se recomenda expressamente evitar o consumo destes alimentos. Recentemente, um compêndio elaborado pelo Global Food Research Program, da Universidade da Carolina do Norte, nos EUA, reuniu mais de duzentos trabalhos científicos que demonstram os efeitos negativos dos ultraprocessados sobre a saúde humana.

Canella não acredita, entretanto, que isso faça a diretriz brasileira ser considerada punitiva. O que acontece é que “a prática das recomendações do Guia, pela população, pode impactar o volume de vendas” de uma empresa de ultraprocessados como a Coca-Cola. “Isso seria puni-la?”, indaga.

Adiante, a Sancroft menciona o Pacto Nacional pela Alimentação Saudável, instituído em 2015, nos seguintes termos: “[o Pacto] prevê a redução gradual da presença de açúcar, gorduras e sódio nos alimentos processados e ultraprocessados, de forma a encorajar o consumo de alimentos saudáveis nas escolas e regular a publicidade de alimentos e bebidas nestes locais”.

O relatório cita ainda um estudo do think tank Center for Science in the Public Interest que identifica o Brasil como um exemplo do uso de personagens infantis e posicionamento de marcas em programas de televisão para promover o consumo de bebidas açucaradas entre crianças e adolescentes – detalhe: na época, já havia um acordo voluntário no qual algumas corporações se comprometiam, em tese, a não fazer publicidade de seus produtos para menores de 12 anos.

Tem que manter isso daí

Visto à luz de 2021, o documento mostra como as corporações do agronegócio e de alimentos conseguiram neutralizar, no Brasil, alguns dos principais riscos apontados no documento.

O dossiê menciona uma ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público Federal em março de 2014, pedindo que a Anvisa concluísse a revisão toxicológica do glifosato, em curso desde 2008. Um ano depois, o herbicida foi classificado como “provavelmente cancerígeno” pela Organização Mundial de Saúde, a OMS.

Nada feito. Passados mais cinco anos, a permissão de utilização do agrotóxico foi mantida pelo órgão, com algumas restrições, mesmo que países como Áustria, Alemanha e México estejam a caminho de bani-lo. Em 2018, o Intercept revelou que, no município de Uruçuí, a 459km da capital do Piauí, o glifosato provoca abortos espontâneos em uma a cada quatro grávidas, além de contaminar o leite materno.

No campo dos organismos geneticamente modificados (GMOs na sigla em inglês), também abordado no documento, ganharam destaque o banimento de sementes transgênicas em diversos países da América Latina, como Peru, Venezuela e Equador, e a multa que algumas fabricantes de ultraprocessados com sede no Brasil, como a Nestlé e a PepsiCo, receberam por esconder a presença de transgênicos em seus produtos.

De lá para cá, essa preocupação desapareceu do horizonte. Há anos, a bancada ruralista no Congresso Nacional ameaça revogar a obrigação de identificar a presença de transgênicos com um T maiúsculo que emula uma placa de trânsito.

O Guia Alimentar, porém, segue a ser uma pedra no sapato das fabricantes de ultraprocessados.

Um continente problemático

No geral, fica claro que a América Latina, que tem alguns dos maiores consumidores de refrigerantes do mundo, é um foco de preocupação para a empresa. Àquela altura, o Chile havia definido um modelo de rotulagem contra o qual Coca-Cola, Nestlé e companhia têm se debatido nos últimos anos: a colocação de alertas na parte frontal da embalagem para informar sobre o excesso de sal, gorduras e açúcares.

A rotulagem é uma questão tão relevante que ganha um capítulo inteiro e apresenta um dos mapas de calor mais preocupantes aos interesses da multinacional. Já naquele momento, a empresa estava lançando uma ofensiva para neutralizar o perigo do modelo chileno. Desde então, as corporações vêm defendendo que um sistema de semáforo, parecido ao que foi adotado no Reino Unido em 2007, é o melhor de todos.

Naquele momento a Anvisa estava discutindo a adoção de um novo sistema para a rotulagem frontal, que não preocupava a empresa. Em 2017, porém, o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor, o Idec, defendeu um modelo de alertas inspirado no caso chileno. Embora, num primeiro momento, a Anvisa tenha chegado a declarar que esse era o melhor modelo, acabou retrocedendo até atropelar as evidências científicas, encampando um sistema semelhante ao canadense.

Um ponto que chamava muito mais atenção nesse capítulo era a recente criação de um novo perfil de nutrientes pela Organização Panamericana de Saúde, a Opas. De forma resumida, a organização definiu parâmetros para ajudar os governos nacionais a formularem políticas públicas que desestimulem o consumo de ultraprocessados. Entre todos os sistemas criados pelas integrantes da OMS, esse é o único a adotar a separação dos alimentos pelo grau e propósito de processamento.

O perfil de nutrientes da Opas pode ser adotado para definir se um alimento processado ou ultraprocessado é “alto em” gorduras, sal e açúcar, além de sugerir que os governos adotem alertas para a presença de adoçantes e cafeína, medidas pensadas para a proteção da saúde de crianças.

“Os padrões de ingestão calórica e nutricional da Opas são os mais restritivos já elaborados”, avalia o documento elaborado pela Sancroft. “A Opas recomenda que os governos das Américas usem o perfil de nutrientes na elaboração de políticas públicas, com ampla aplicação em: restrições ao marketing, alimentação escolar, alertas nos rótulos, taxação, subsídios agrícolas e programas de assistência alimentar”.

Ingredientes e aditivos também figuram entre as preocupações claras da empresa, com destaque para a cafeína. Nesse caso, não apenas o refrigerante Coca-Cola, mas os energéticos promovidos pela empresa poderiam se tornar um problema, uma vez que a OMS alertou sobre o consumo excessivo e alguns países até baniram esses produtos. No Brasil, os energéticos são regulamentados pela Anvisa na condição de “suplementos de atletas”, com um limite de 420 miligramas por porção.

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