“Tu é o canalha que tá perseguindo os de direita? Esquerdopata. Amante de ditador”. “Você é a puta do Alexandre de Moraes”. “Vagabundo, anda caguetando os canais conservadores”. “Seu dia está próximo”. Desde março deste ano, são mensagens assim que lotam as redes sociais do pesquisador e programador paulistano Guilherme Felitti.
O motivo? Há alguns anos, ele se dedica a monitorar canais de extrema direita no YouTube e, recentemente, divulgou uma informação: youtubers que criticaram insistentemente o Tribunal Superior Eleitoral, o TSE, e o Supremo Tribunal Federal, o STF, estão fazendo uma limpa em seus canais e apagando os vídeos com as críticas da plataforma. Fazem isso por medo de problemas com a Justiça Eleitoral, já que esses mesmos youtubers estão anunciando suas pré-candidaturas nas eleições de outubro.
Felitti, que já trabalhou como jornalista em grandes redações, abandonou a carreira e se tornou programador em 2016 para criar a Novelo Data, uma empresa de dados digitais. Ao mesmo tempo, ele resolveu fazer do YouTube seu objeto de estudo pessoal, com foco nos canais de extrema direita. “O Brasil ama TV e o YouTube é, basicamente, a nossa TV online. Então, comecei por hobby a criar robôs que tabulavam informações que o Google oferece gratuitamente”, conta.
Em 2018, o pesquisador criou um robô específico para mapear vídeos publicados por bolsonaristas e que ganhavam relevância na plataforma e para coletar dados a partir dali. Em 2020, o inquérito das fake news levou a Polícia Federal até a casa do blogueiro Allan dos Santos, atualmente foragido, para fazer busca e apreensão de computadores e celulares.
Na ocasião, Felitti tirou uma carta da manga. Ele mostrou que, no dia seguinte à ação policial, o Terça Livre, canal mantido pelo blogueiro, havia tirado do ar 272 vídeos – a maioria deles pedindo pelo fechamento do STF e por um golpe militar. O pesquisador conta que a repercussão do levantamento chegou a render até uma entrevista para o Jornal Nacional, mas nada que provocasse ataques de ódio e ameaças de morte em suas redes sociais como agora.
No Intercept, os dados da Novelo já abasteceram uma série de reportagens. Uma, por exemplo, mostra que os youtubers de extrema direita explodiram nas eleições de 2018 com ajuda do YouTube. Outra, que essa rede extremista criou suas próprias táticas para burlar as punições da plataforma.
Desta vez, os robôs programados por Felitti mostraram que youtubers bolsonaristas como Gustavo Gayer, Fernando Lisboa e Fred Rodrigues apelaram repentinamente para a faxina virtual no YouTube. “Comecei a notar que estava rolando uma limpeza muito específica nesses canais. Eles estavam tirando do ar conteúdos que atacavam o TSE, o Supremo e seus ministros, principalmente Alexandre de Moraes e [Luís Roberto] Barroso, além de conteúdos que enalteciam o [deputado federal] Daniel Silveira”.
Felitti publicou essas informações no Twitter e as repassou a alguns jornalistas. Logo surgiram os ataques, que vieram dos youtubers e de seus seguidores. “O Fernando Lisboa me ameaçou de processo e eu respondi: ‘Boa sorte’. Porque, basicamente, o que estamos fazendo é a análise de dados gratuitos e abertos. Qualquer um pode fazer. Já o Gustavo Gayer mudou títulos de vídeos dele para fazer ameaças jurídicas contra mim”, relata o pesquisador, que enviou prints ao Intercept. Os títulos dos vídeos tirados do ar são “Fiscal de vídeos deletados será processado” e “Só um jornalista frustrado pra ficar perseguindo quem del…” – não é possível ver o restante da frase.
De professor flopado a pré-candidato
Gustavo Gayer tem mais de 800 mil seguidores no YouTube. De acordo com a planilha de monitoramento, só no dia 7 de abril ele deletou mais de 50 vídeos. A maioria continha mentiras e críticas duras ao STF. Os vídeos removidos tinham títulos como “Militância LGBT quer acabar com os termos ‘pai’ e ‘mãe’ no Brasil no STF”, “Senador admite que o STF governa o Brasil” e “Depois de Daniel Silveira, Bia Kicis entra na mira do STF por falar a verdade”.
Dono de uma escola de idiomas em Goiânia, sua cidade natal, Gayer é uma das principais vozes bolsonaristas no YouTube, hoje. Ele começou na plataforma timidamente, ainda em 2016, dando aulas de inglês. Por anos, seus vídeos não ultrapassavam as 200 visualizações. Até que, em 2020, ao se tornar candidato a prefeito de Goiânia pelo partido Democracia Cristã, resolveu publicar o trecho de um debate online de que participou.
O vídeo alcançou mais de 125 mil visualizações e foi definitivo para que ele transformasse seu canal em um palanque de apoio a Jair Bolsonaro – por quem afirma ter feito campanha voluntariamente, além de votar. A carreira política, entretanto, não engrenou. Gayer recebeu 45.928 votos dos goianos, ou 7,62% do total, e ficou em quarto lugar, não indo sequer ao segundo turno. Mas acabou se tornando uma voz da extrema direita brasileira e amigo de deputados como Carla Zambelli, do PL paulista, e Daniel Silveira, do PTB fluminense, que defende com unhas, dentes e vídeos (agora deletados).
Em 31 de março deste ano, Gayer anunciou nas redes sociais que é pré-candidato a deputado federal pelo PL de Goiás. “Me filiei ao partido do presidente e seja o que Deus quiser. Vai ser difícil. Não vou usar fundo eleitoral, não sei fazer campanha”, jurou, em vídeo. Campanha eleitoral pode não ser a especialidade do youtuber, mas espalhar inverdades e fazer dinheiro na plataforma é uma coisa que ele aprendeu a fazer de maneira rápida.
Em um relatório entregue pelo Google à CPI da Covid em junho do ano passado, Gustavo Gayer era apontado como o segundo youtuber que mais lucrou publicando notícias falsas sobre a pandemia na plataforma. Segundo o Google, ele faturou R$ 40 mil, atrás apenas do jornalista Alexandre Garcia, que embolsou R$ 70 mil.
Depois das revelações de Felitti, Gayer publicou um vídeo em seu canal com o título: “Urgente! O Globo prepara uma matéria para me destruir”. Nele, o youtuber falou de uma reportagem baseada nos dados fornecidos pela Novelo Data e passou a se defender. “Eu apaguei alguns vídeos, sim, que mencionavam o STF, mas não porque eu tinha cometido algum crime ali, não de acordo com a Constituição. Mas porque talvez eu tenha cometido o crime de mostrar a minha indignação quando o Lula é liberado para concorrer à presidência, de falar que nós estamos vendo jornalistas sendo presos, manifestantes sendo presos, inquéritos ilegais sendo abertos, um ataque constante à nossa liberdade de expressão”, falou. “Para me proteger, eu apaguei vários vídeos”.
A repercussão fez com que outros youtubers da extrema direita passassem a produzir conteúdos sobre Felitti, além de divulgar dados da sua empresa, como endereço e telefone – prática de ataque virtual conhecida como doxxing, usada para intimidar adversários.
Um vídeo feito pelo youtuber bolsonarista Ed Raposo, pré-candidato a deputado federal pelo PTB do Rio de Janeiro, traz uma chamada que se refere ao pesquisador como “Profissão X9”, expressão usada para se referir a quem dedura outras pessoas. “Acho que é muito emblemático o bolsonarismo classificar uma análise de dados com uma terminologia miliciana”, rebate Felitti. “Esses caras fizeram uma campanha de assédio direcionado, de linchamento online, em que usam a minha imagem e o meu nome”.
Segundo a política da plataforma, isso já configura violação de regras. “Não é permitido publicar no YouTube conteúdo que ameace pessoas”, estipula o texto do Google. “Se os vídeos estiverem monetizados, o YouTube está ganhando dinheiro com o meu linchamento”, fala Felitti, que apesar de lamentar os acontecimentos recentes, deixa um recado: “O monitoramento não vai parar”.
Atualização: 26 de abril, 10h15
O texto foi alterado para tornar mais precisa uma declaração de Guilherme Felitti sobre os vídeos que contêm ameaças e agressões contra ele.
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