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Conversamos com Mayara Balestro, historiadora que foi perseguida e ameaçada por pesquisar a produtora.

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Por R$ 99 ao mês, o assinante da plataforma de streaming Brasil Paralelo pode assistir a séries, filmes e fazer cursos como “Aborto: quem é a verdadeira vítima?” ou “Feminismo e marxismo”, este último apresentado pela deputada estadual bolsonarista Ana Campagnolo, do PSL – aquela que confessou destinar uma emenda parlamentar de quase R$ 250 mil para seu advogado e amigo. São conteúdos assim que conquistaram quase 300 mil assinantes de 2016 para cá, quando a empresa foi fundada.

Em um dos documentários originais da produtora, o sócio-fundador Filipe Valerim fala olhando para a câmera: “A Brasil Paralelo é uma organização 100% privada. Nosso objetivo é reverter as mazelas feitas na nossa cultura nos últimos anos”. Para levar esse lema adiante, a empresa parece estar disposta a muita coisa, inclusive amedrontar e tentar calar pesquisadores que resolvem torná-la seu objeto de estudo.

É o caso da historiadora paulista Mayara Balestro, de 26 anos, que tem sofrido uma série de ataques. Ainda em 2020, ela e um colega receberam uma notificação extrajudicial após a publicação de um e-book sobre a produtora. Intitulada “Nova direita, bolsonarismo e fascismo: reflexões sobre o Brasil contemporâneo”, a publicação chamou a atenção da BP. Por meio de seus advogados, a empresa pediu uma retratação, justificando que nada tinha a ver com o bolsonarismo ou o olavismo – o que é uma mentira.

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O astrólogo de extrema direita Olavo de Carvalho é um dos entrevistados do documentário “1964: o Brasil entre armas e livros”.

Imagem: Reprodução/Brasil Paralelo

Em vídeo, um dos fundadores da produtora fala como Olavo de Carvalho foi fundamental na estruturação da empresa. “A gente teve uma conversa com o professor Olavo, e ele falou: ‘Você não podem perder a questão da militância. Vocês estão cumprindo um papel para o país, vocês estão prestando um serviço para a causa'”, contou, orgulhoso, Henrique Viana em uma palestra publicada no YouTube. O astrólogo e ex-guru de Jair Bolsonaro também é um dos entrevistados do documentário “1964: o Brasil entre armas e livros”, que foi disponibilizado pela BP no YouTube e soma quase 10 milhões de visualizações.

Balestro não está sozinha. Em dezembro, o Intercept revelou casos de outros pesquisadores que também foram alvos da ofensiva judicial da BP, que não quer seu nome vinculado a Jair Bolsonaro ou à extrema direita.

Na semana em que a historiadora defenderia sua dissertação de mestrado intitulada “Agenda conservadora, ultraliberalismo e ‘guerra cultural’: ‘Brasil Paralelo’ e a hegemonia das direitas no Brasil contemporâneo” pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná, ela conta que seu Facebook foi invadido e o link para a exibição da defesa foi hackeado e derrubado. Mas ela não desistiu. A defesa foi feita e recebeu nota máxima.

Tempos depois, veio a segunda onda de ataques: Leandro Ruschel, empresário bolsonarista e membro do conselho da BP, publicou fotos pessoais de Mayara dizendo ter sido caluniado por ela na dissertação de mestrado apresentada, despertando a fúria de seus quase um milhão de seguidores no Twitter, que foram atacá-la – obviamente.

O empresário bolsonarista e membro do conselho da BP Leandro Ruschel levou a dissertação de Mayara Balestro para o Twitter.

O empresário bolsonarista e membro do conselho da BP Leandro Ruschel levou a dissertação de Mayara Balestro para o Twitter.

Mayara recebeu uma enxurrada de críticas nas redes sociais e ficou preocupada com a situação. “Sou uma pesquisadora jovem, estou começando agora a carreira”, contou em entrevista para o Intercept. Leia abaixo nossa conversa.

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Intercept – Como foi seu primeiro contato com a Brasil Paralelo?

Mayara Balestro – Há alguns anos, um amigo me indicou um dos vídeos mais famosos deles, que é “Brasil: a última cruzada”, feito em 2017. Ele disse que havia alguns problemas historiográficos e que talvez eu me interessasse em tentar entender esses grupos de extrema direita, da nova direita. Na época, eu já estava fazendo um projeto para compreender a atuação desses grupos em ascensão no Brasil contemporâneo.

Quando você assistiu a esse vídeo, o que achou?

Sou historiadora de formação e há alguns problemas de tentar reviver esse passado melancólico, monárquico, essa história vista de cima. É uma análise da escola metódica. Existem vários problemas historiográficos quanto a isso, principalmente a tentativa de apagar e silenciar as minorias, a participação das mulheres, dos negros, e tentar reescrever essa história vista de cima.

Quando você começou a pesquisar a Brasil Paralelo, o que mais chamou sua atenção?
A organização deles com grupos do empresariado. Por exemplo, em 2017, eles participaram do Fórum da Liberdade. Me chamou a atenção essa articulação da empresa Brasil Paralelo, dos sócios-fundadores, com o empresariado brasileiro, para além dos conteúdos produzidos. Acho que limita muito entender só o conteúdo produzido pela BP, mesmo que seja a forma principal que eles têm de tentar reescrever a história e seu modus operandi. Eles se organizavam em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, onde a BP foi fundada, mas não se limitavam a essa área. Tanto que foram para São Paulo e Rio de Janeiro. Eles sempre se organizavam e davam palestras com outras pessoas do grande empresariado para poder atuar e exibir esses materiais produzidos.

E como é essa articulação?

É a projeção deles em outros espaços para além da BP. O Hélio Beltrão, presidente do Instituto Mises, é uma das figuras chaves para compreender a BP. O Mises representa a ideologia da Brasil Paralelo e ressalta todo o discurso “meritocrático”. Em 2019, o Hélio Beltrão foi convidado por eles para ministrar uma palestra intitulado Fórum A Última Cruzada, em São Paulo. Nesse evento, ele ressaltou a importância das ideias do Mises Brasil.

‘Outra pesquisadora também ficou com medo e parou de pesquisar a BP. Ela acabou tomando outro rumo.’

Eles também cooptam empresários a participar dos vídeos deles. Para além disso, em 2019, eles realizaram um encontro em São Paulo dando palestras e se articulando com esse empresariado. O evento teve participação do Hélio Beltrão novamente, do Luiz Philippe de Orleans e Bragança [deputado federal pelo PL] e do Alexandre Borges [comentarista político]. É uma forma de legitimar o conteúdo que estão produzindo, as pautas e os discursos que eles estão puxando.

E quais são essas pautas? 

São sempre temas polêmicos e históricos. É uma forma de tentar reescrever a história. Eles estão buscando bastante pautas identitárias também. Recentemente, eles publicaram “O fim da beleza” [na verdade, é ‘A face oculta do feminismo’, que fala sobre o antifeminismo e que gera identificação na mulher que se diz antifeminista.

Quem é o público-alvo da BP?

No meu mapeamento, consegui identificar que são principalmente jovens entre seus 14 e 20 anos, e também educadores, sejam das ciências humanas ou das ciências exatas, na faixa dos 30 a 40 anos. O público é principalmente masculino e branco.

O que mais te incomoda nos conteúdos da BP?
Como eles querem reescrever a história silenciando as minorias. Aquele documentário, “1964”, deixa isso bem claro. Pessoas que participaram dele falam que quem pode escrever sobre a história da ditadura do Brasil é quem passou pela ditadura no Brasil. Isso fica bem evidente quando aparece o Olavo de Carvalho no filme dando depoimento sobre como as universidades são formadas por marxistas e que, a partir daí, a direita precisava retomar as universidades, a cultura. Aliás, em um dos vídeos, o Henrique Viana, sócio-fundador, fala: “Foi o professor Olavo de Carvalho que deu a ideia de sermos uma empresa militante. Porque, até então, a gente ia ser uma empresa normal, de entretenimento”.

A BP hoje é uma empresa rentável?

Dá um bom lucro, mas eles têm muitos gastos em anúncios. Inclusive, estou fazendo um levantamento sobre os gastos deles. A principal ferramenta deles para atrair público são os anúncios.

Anúncios daqueles que a gente vê antes de assistir um vídeo no YouTube?
Isso. Eu estou fazendo um levantamento desses anúncios por meio de uma plataforma com todas essas informações. Recentemente, eles gastaram R$ 200 mil por anúncio feito.

Quantos assinantes eles têm?

Atualmente, eles estão com quase 300 mil assinantes. Uma curiosidade é que eles também investem em anúncios em canais de esquerda. Eles investiram bastante também em grupos bolsonaristas no Telegram. Uma das estratégias é fazer uma produção deles passar no canal de um influencer bolsonarista famoso para depois poder fazer essa articulação.

A Brasil Paralelo atua fora do mundo digital?
Desde 2019, eles realizam algumas palestras em escolas e tentam fazer essa articulação em espaços públicos para poder se legitimar e se dizer apenas uma empresa de entretenimento e educação. Eles fizeram uma parceria em Paraisópolis com um líder comunitário para poder levar esse material da BP para as periferias de São Paulo.  Em 2019, vi na plataforma o comentário de uma diretora de escola dizendo que foi apresentado o documentário “1964: o Brasil entre armas e livros” na unidade que ela dirigia. Eles também já exibiram outro documentário, o “Congresso Brasil Paralelo” na Universidade Federal de Ouro Preto.

Recentemente, teve uma polêmica com o documentário “O fim da beleza” na UFPR, a Universidade Federal do Paraná, onde eles exibiram o filme. Teve pouquíssima gente assistindo. [Em março deste ano, a Brasil Paralelo foi alvo de protestos de alunos e professores ao tentar exibir a produção na universidade. A própria BP chamou o ato de “censura”.]

E como você começou a ser perseguida por pesquisar a BP?
A situação começou no final de 2020, quando eu publiquei um e-book com um colega de mestrado chamado “Nova direita, bolsonarismo, fascismo: reflexões sobre o Brasil contemporâneo”. Em fevereiro de 2021, eu participei de um evento com um colega e fomos atacados por pessoas que consumiam a BP. Foram várias formas de ataques e xingamentos. Em junho, recebi a primeira notificação extrajudicial da Brasil Paralelo. Eles enviaram a notificação para mim, para o meu amigo e também para a editora do e-book. Eles pediam uma retratação por parte da editora e dos organizadores. E, dentro dessa notificação extrajudicial, eles estavam falando que não tinham relação nenhuma com Olavo de Carvalho, com olavismo, com bolsonarismo ou com a extrema direita, sendo que dentro do documentário há várias falas do Olavo de Carvalho. O Olavo e o empresário Hélio Beltrão são os principais padrinhos da BP.

O que a notificação pedia?

Um direito de resposta dentro do e-book, que a editora acabou publicando. Eles também pediram uma retratação dos organizadores. Na época, a editora ficou com medo e um dos organizadores também ficou com medo. Um tempo depois, outro professor também foi notificado. Foi quando eu falei: “Olha, nós precisamos nos articular, criar uma rede para poder pensar em estratégias e poder lidar com essas perseguições da extrema direita”. Sou uma pesquisadora jovem, estou começando agora a carreira. A notificação extrajudicial não é nada, mas é a forma deles de tentar nos calar, nos silenciar. Eu não fui a primeira e meus colegas não foram os primeiros. Isso já estava acontecendo. Outra pesquisadora também ficou com medo e parou de pesquisar a BP. Ela acabou tomando outro rumo.

Depois de um tempo, próximo à minha defesa do mestrado, passei a ser perseguida quando participava de eventos que tinham a BP no meio. Eu sempre era atacada. Na semana da apresentação do meu mestrado, conseguiram derrubar o link da minha defesa. Tive o Facebook invadido.

Atacada e perseguida como? 

Recentemente, teve também o caso do Leandro Ruschel [empresário e membro do conselho da BP] no Twitter. Por ele ter uma rede grande de seguidores, eu recebi mensagens e xingamentos no Facebook falando da pesquisa, desqualificando a pesquisa por conta de erros ortográficos, e principalmente por conta das minhas escolhas metodológicas e referenciais teóricos de cunho marxista e gramsciano. Li entre os tuítes do Leandro Ruschel gente falando que as universidades estão tomadas de comunistas, questionando como a universidade pública financia pesquisas iguais a essa. Foram vários tipos de assédio. E principalmente no Facebook, que eu tentava bloquear, mas as pessoas iam lá e comentavam em alguma publicação minha que estava pública. E também no Messenger.

Mensagens recebidas por Mayara Balestro em seu Facebook.

Mensagens recebidas por Mayara Balestro em seu Facebook.

Teve uma mulher que comentou no Twitter do Ruschel que “uma pessoa dessa sai na rua e depois não sabe porque apanha”. Tiveram muitos comentários assim.

Acho que as pessoas precisam entender que, para além da pesquisadora Mayara Balestro, também há a filha de alguém, a amiga de alguém, existem sentimentos. Quando você vê esse tipo de ataque, entende o quanto isso é preocupante para o Brasil de hoje. O caminho é desanimador. Estou começando minha carreira acadêmica agora. Ler isso e a forma como a pesquisa foi desqualificada foi muito intenso. Foi terrível.

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Em vídeo publicado e depois apagado do YouTube, Leandro Ruschel fala que a dissertação de Mayara foi uma das maiores calúnias e difamações que ele já sofreu.

O Leandro Ruschel foi muito apelativo no Twitter. Ele mencionou sua pesquisa usando fotos pessoais suas. Qual sentimento você teve ao ver aqueles tuítes, sabendo que ele é um cara público, com muitos seguidores?
Ele tem quase um milhão de seguidores no Twitter. Fora o YouTube dele, onde fez um vídeo de quase meia hora desqualificando a pesquisa. É um sentimento horrível, né, porque você fica quase dois anos e meio fazendo uma pesquisa de que você gosta e na qual acredita. Foi um sentimento de “Que Brasil é esse? Qual rumo a gente quer para esse país?”. Eu estou fazendo ciência, não estou lendo referenciais e embasando a minha opinião. Ali tem fontes, tem horas de estudos, levantamento, discussão, embasamento científico. Então, quando você lê uma coisa assim, você fica sem rumo. É muito difícil lidar com isso.

Mas eu tive uma rede de amparo muito grande. E o que me motivou a levar em consideração o doutorado foi isso. Porque foi bem no momento em que eu iniciei o doutorado. Foi quando eu pensei: “Eu quero pesquisar isso mesmo? Qual é o limite da minha saúde mental para aguentar tudo isso?”. Eu não quero que seja um combate. É o meu objeto de estudo, e eu preciso lidar com isso.

Teve uma adolescente que veio me infernizar no Facebook falando que o professor dela de história passou o vídeo do Leandro Ruschel falando de mim na sala de aula. E essa adolescente começou a me xingar no Facebook, falando: “Você é uma professora burra”.

Leandro Ruschel postando fotos pessoais da pesquisadora no Twitter.

Leandro Ruschel postando fotos pessoais da pesquisadora no Twitter.

O Ruschel apagou os tuítes que fez sobre você. Ele também apagou o vídeo?

Parece que sim.

No seu doutorado, você vai seguir pesquisando a BP?
Sim, é a continuação do mestrado. Agora, eu vou tentar entender a articulação deles em espaços públicos e como eles atuam dentro da política de fato.

Correção: 23 de maio de 2022
O deputado Luiz Philippe de Orleans e Bragança é do PL, e não do PFL. Também foi adicionada uma nota sobre o documentário ‘A face oculta do feminismo’ em uma das respostas da historiadora.

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