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Michelle Bolsonaro: a voz doce do ódio

Campanha aposta na primeira-dama para gerar 'emotividade', mas discurso dela é o velho ódio bolsonarista embalado em voz tranquila e roupagem bíblica.

Michelle Bolsonaro: a voz doce do ódio

Eleições 2022

Parte 3


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Eram por volta de 12h30 da terça-feira passada quando Jair Bolsonaro, encarando a pequena multidão reunida num trecho de menos de 100 metros de extensão do calçadão da rua Halfeld, centro de Juiz de Fora, disparou: “Vamos deixar ela falar? As pessoas mais importantes falam por último, e a regra vai ser respeitada. A pessoa mais importante deste momento não é o presidente ou o candidato: é a senhora Michelle Bolsonaro”.

Todos os olhos se concentraram na esposa dele. Carismática, Michelle já enviava acenos em resposta a apoiadores enquanto o marido e candidato discursava.

Até ali, o evento que marcava o lançamento da candidatura à reeleição de Bolsonaro corria morno. Havia, segundo vários juiz-foranos com quem conversamos, menos gente que em 6 de setembro de 2018. Naquele dia, o candidato a presidente surfava nas costas de uma multidão quando foi golpeado no abdome pela faca empunhada por Adélio Bispo da Silva. Lançar na cidade mineira a busca pela reeleição era uma tentativa óbvia de recriar a comoção causada pelo atentado. Mas a voz cansada e o discurso desanimado traíram a decepção presidencial com o público relativamente pequeno e a organização confusa do evento.

“Nós sabemos que o inimigo, ele só quer roubar, matar e destruir, e manter as pessoas em cativeiros, cegas, mas nós pedimos para Deus essa libertação para nossa nação”, Michelle disparou. “É um país rico, um país próspero, que precisa ser liberto, que precisa sair dessas amarras de mentira, de mendigagem. A nossa terra é uma terra próspera, produtiva, abençoada. E nós não aceitamos mais esse espírito de miséria no nosso Brasil”.

‘Bem contra o mal’

Até há alguns anos, “inimigo” era um termo inaceitável num discurso político. Na democracia, em tese a política é campo de disputa de grupos adversários, com ideias opostas. Só que não é mais assim. A onda de extrema direita que varre o mundo e se materializou no Brasil em Jair Bolsonaro naturalizou o ódio e a hostilidade com ferramentas para a guerra – e não mais a disputa de ideias – da política.


Em 2018, a repulsa à política fomentada pelos cruzados fanáticos da Lava Jato bastou para que Jair Bolsonaro, sem disfarces, vencesse a mais improvável eleição presidencial da história brasileira. Em 2022, o presidente de extrema direita e seus novos-velhos aliados do Centrão sabem que não será assim.

Na mansão no Lago Sul em que se reúne em Brasília, a coordenação da campanha de Jair Bolsonaro decidiu que era hora de tirar das sombras a esposa do presidente, uma mulher nascida e criada em Ceilândia, uma das cidades mais pobres do Distrito Federal, e evangélica batista como Deltan Dallagnol. Como nos disse um participante das decisões que norteiam a campanha bolsonarista – todos homens, como o senador e filho 01 Flávio Bolsonaro, o ministro da Casa Civil Ciro Nogueira e o marqueteiro Duda Lima –, Michelle é uma aposta para gerar “emotividade” e conseguir criar alguma conexão com as mulheres, algo que o marido-presidente misógino e machista é incapaz de fazer.

Em Juiz de Fora, a estratégia se provou acertada. No aeroclube, enquanto esperávamos que Bolsonaro e seu grupo desembarcassem para dar início à motociata que os levariam ao centro da cidade, ouvimos a seguinte conversa: “Uma coisa é verdade, a Michelle tem ajudado muito. Ela fala bem, é bonita, bem mais moça do que ele”, disse um apoiador do presidente, vestido com a camisa da seleção brasileira de futebol, a um amigo.

Realmente ajudou. Não na motociata, uma constrangedora demonstração de macho power em que homens geralmente barrigudos aceleram motos importadas até o limite dos motores de forma a intimidar quem está por perto. Já no caminhão-palanque da rua Halfeld, a primeira-dama pegou o microfone das mãos do marido e, falando de improviso, reanimou os apoiadores após a fala morna de Bolsonaro. Com a habilidade de quem dá testemunhos nos cultos evangélicos, Michelle discursou em tom manso e pausado enquanto caminhava pelo palco do trio elétrico.

A voz é tão doce que quase faz esquecer as palavras que carrega. “Que Deus dê sabedoria e discernimento ao nosso povo brasileiro, para que não entregue o nosso país, a nossa nação tão amada por Deus, nas mãos dos nossos inimigos. Nesse momento, vamos rezar o Pai Nosso, que é a oração universal. Vocês concordam?”

Ao contrário do marido, Michelle não havia recebido da campanha nenhuma orientação sobre o que ou como falar em Juiz de Fora. A equipe que cerca Bolsonaro sabe que a presença dela é fundamental para a reeleição. Mas também que convencê-la disso é algo que cabe estritamente a Bolsonaro. Nem mesmo Flávio se dispõe a abordá-la para pedir que atue como cabo eleitoral do marido. Para quem atua na campanha, está claro que a relação entre Michelle e a reeleição se mistura ao relacionamento de ambos como casal. Ninguém mais se mete, para o bem ou para o mal.

Isso ajuda a entender por que a fala dela em Juiz de Fora foi recebida com tanta alegria e alívio pela campanha, que tenta a todo custo suavizar a imagem de Bolsonaro e, assim, buscar os votos de que ele precisa para além da bolha de fanáticos que o idolatra.

Até mesmo parte da imprensa parece ter se encantado. Para a Folha de S.Paulo, por exemplo, Michelle “roubou a cena e foi ovacionada em Juiz de Fora”. Não que esteja errada a leitura – os aplausos, que se seguiram à oração do Pai Nosso, foram muitos, de fato. O problema é que Michelle, apesar da voz melíflua e da fala tranquila, no fundo repete o que o marido diz há décadas, ainda que embalado numa roupagem bíblica.

“Não negociem com o mal. Essa luta não é contra homens e mulheres, é contra potestades e principados”, ela falou, em julho, para finalizar o discurso de mais de 10 minutos com que abriu o grande momento da convenção nacional do PL, no Maracanãzinho, no Rio de Janeiro. Principados e potestades, na Bíblia, são termos usados para se referir a reis, governantes e demônios. E, se o seu adversário político (aliás, inimigo) é o próprio cramulhão, que mal há em mandar fuzilá-lo?

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