Este texto foi publicado originalmente na newsletter quinzenal de Carla Jimenez no Intercept. Assine. É de graça e chega direto na sua caixa de e-mails.
Numa eleição pautada pela fome e a carestia, há pouco espaço para assuntos que ainda estão revestidos pelo preconceito e o desconhecimento. Que existem pessoas na fila para comprar ossos ou revirando o lixo atrás de comida é um fato concreto, e livrar-se dessa chaga é um consenso entre os que têm coração. Já temas tabus, como a liberação da maconha ou aborto, tornam-se armadilhas para os candidatos. Entre os potenciais eleitores sobram palpites enviesados, imaginação fértil e medo de apoiar o que sempre foi vinculado ao crime. Falta coragem para assumir publicamente, durante uma campanha, que tanto o aborto quanto a maconha são questões de saúde pública, que afetam principalmente as pessoas mais vulneráveis socialmente.
Foi nesse campo minado que o candidato a governador do Rio de Janeiro Marcelo Freixo recuou de sua posição histórica de apoio à liberação da maconha. “Não sou mais a favor. Não acho que isso vai, neste momento, nos ajudar no Brasil. O que a gente precisa é avançar nas políticas de saúde e na eficiência da polícia”, disse Freixo, durante um debate na TV Record. Um dia depois, o candidato do PSB ainda admitiu que estava fugindo da cilada da polarização. “Sou contra, porque o Brasil mudou. O Brasil hoje é um Brasil da fome. Nenhum tema que divida a sociedade pode ser um tema prioritário nesse momento”, afirmou.
A explicação de Freixo tem lógica. O problema é que, enquanto um progressista recua, um conservador extremado reforça o preconceito moralista. No debate da Band, o presidente Jair Bolsonaro fez questão de frisar em três momentos que seu governo é contra a liberação das drogas . “Eu tenho certeza, uma grande parte das mulheres do Brasil me amam, [sabem] que eu defendo a família, eu sou contra a liberação das drogas”, disse o presidente, vinculando a droga à ideia de destruição do núcleo familiar. “Tem muita gente aqui que é favorável à liberação das drogas. Essas pessoas não sabem o que é uma mãe ter um filho em casa drogado”, continuou Bolsonaro.
As posições tão moralistas quanto incoerentes são uma de suas marcas. Um presidente preocupado com a família não faria campanha para liberar armas, não colocaria um negro racista numa organização que visa defender os negros, nem deixaria o crime correr solto na Amazônia. Em suma, não deixaria o ódio corroer as relações numa sociedade.
A maconha já é assunto familiar para muitos brasileiros que buscam proteger a saúde dos filhos com o óleo de canabidiol, o CBD. Cresce o número de decisões favoráveis na justiça para quem precisa do caríssimo óleo no tratamento médico de algum parente e solicita autorização para o plantio doméstico de maconha. Em 2021, um casal evangélico de Mogi das Cruzes foi o primeiro a garantir a produção do óleo em casa para o tratamento das filhas, que têm autismo, paralisia cerebral e epilepsia.
Neste ano, outra mãe, no Ceará, também conseguiu o direito ao plantio medicinal para cuidar da filha, de seis anos, que tem fibrose cística, doença que provoca secreções em diversos órgãos e crises de tosse, informou reportagem do G1. O óleo da maconha ameniza os sintomas e garante qualidade de vida à menina.
Enquanto isso, ao tentar vincular Lula a coisas negativas no debate, Bolsonaro lembrou que o petista apoia o presidente Gustavo Petro, da Colômbia: “Medidas dele [de Petro]: liberação de drogas, liberação de presos”. Petro é do partido de esquerda Colômbia Humana. Mas seu antecessor, Ivan Duque, de direita, fez um anúncio entusiasmado à nação sobre a exportação da maconha colombiana, em setembro do ano passado.
Os políticos moralistas querem continuar com um discurso arcaico sobre a maconha, quando ela já faz parte de um debate sobre saúde, segurança e… negócios bilionários. Estamos falando de um mercado que movimentou 37,4 bilhões de dólares em 2021 no mundo, e que pode chegar a 105 bilhões de dólares em 2026, segundo o Relatório Global de Cannabis, da Prohibition Partners. Os dados desse setor vêm sendo monitorados de perto por multinacionais que já projetam, inclusive, um mercado capaz de superar as cifras movimentadas pela cerveja, por exemplo.
“A discussão já não é mais quem vai legalizar, mas quem vai vender”, diz o advogado André Barros, candidato a deputado federal pelo Psol no Rio de Janeiro. É essa guerra de interesses invisível que está atravancando os fatos. Cabe agora a deputados, como Barros, atuar no Legislativo para pressionar pela liberação da maconha. Como ele, há outros candidatos a deputado federal, como Dario, em Minas Gerais, e a deputado estadual, como o comerciante Marcos Smoke, de Pernambuco. É um ensaio para uma “bancada da maconha”.
Uma das metas desse grupo é fazer avançar as leis a favor da liberação do uso da erva, medicinal e recreativo. No Congresso, há o projeto de lei 399/2015, que ficou parado na Câmara. Em entrevista à jornalista Anita Krepp para o jornal O Estado de S. Paulo, o presidente da Câmara, Arthur Lira, do PL de Alagoas, disse que não quis enviar o projeto para votação em plenário para que ele não corresse o risco de ser barrado pelos deputados mais conservadores. “Como a gente votou muitas matérias no primeiro semestre e os grupos conservadores se fecharam muito para pautas polêmicas, eu não quis desperdiçar essa matéria”, afirmou. “Por prudência, acho melhor esperar para quando tiver condições”, disse Lira.
Tudo indica que o assunto vai ficar para depois das eleições, focado no uso medicinal ou em produtos derivados do cânhamo. O uso recreativo, já liberado em diversos países, como o vizinho Uruguai, pode vir a reboque.
Correção: 6 de setembro, 14h03
Uma versão anterior deste texto afirmava que Dario concorre a deputado federal por São Paulo. Na verdade, a candidatura é de Minas Gerais.
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