Um resumão do B.O., só para começar:
- O Brasil voltou ao mesmo patamar da fome registrado há 30 anos: em 1993, eram 32 milhões de pessoas, segundo o Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada). Em 2022, já chegamos a 33 milhões de acordo com dados da Rede Penssan e Vox Populi.
- Nas escolas públicas, principalmente nas periferias urbanas e rurais, a covid-19 provocou um apagão histórico na já combalida educação de crianças e jovens. O Censo Escolar mostrou que, no fim do primeiro ano da pandemia, 2,3% de pessoas matriculadas no ensino médio deixaram a escola – já no ano passado, foram 5%. Norte e Nordeste, regiões nas quais a desigualdade social brasileira mais grita, foram as principais afetadas: a primeira teve evasão de 10,1% no ensino médio e 2,5% no ensino fundamental. A segunda, 6,3% de abandono escolar no ensino médio e 1,9% no ensino fundamental.
- Os incensados números que mostram a queda no desemprego escondem uma perversidade: não só há recorde de informalidade de trabalho no Brasil, mas há continuidade de falta de trabalho justamente entre os 5% mais pobres (cerca de 2 milhões de pessoas), faixa na qual a falta de ocupação é maior. Como mostra esta reportagem da BBC Brasil, dos 3,7 milhões de brasileiros sem emprego há mais de dois anos, 81% pertencem às classes D e E. Entre 2015 e 2021, o número de pessoas sem emprego há mais de 48 meses nessas classes sociais avançou 173%.
(…)
Eu sei que vocês provavelmente não precisavam desse refresh de Brasil real para entrar no texto, afinal estamos imersas até o pescoço no atoleiro pintado de verde e amarelo. Mas ele nos serve, pedagogicamente, de contraste necessário para olhar o cenário como um todo. Primeiro, porque não foi esse país que apareceu (e aparece) em parte significativa das perguntas feitas aos candidatos e candidatas à presidência da República nas entrevistas, debates, matérias. Segundo, porque todas essas perguntas têm cor – e elas dizem muito sobre o abismo entre o que dói na alma de parte da nossa imprensa e o que dói no couro e na lombar da maioria da população.
No primeiro caso, acompanhando tanto o cara a cara entre jornalistas e candidatos/as quanto a cobertura das últimas semanas, fica evidente que o que movimenta os seríssimos semblantes dos jornalistas não são, por exemplo, as dezenas de esqueletos de escolas abandonadas no Piauí. Antes, estão à espera de um postulante que admita, confesse ou se arrependa de algo relativo ao seu governo. Se, demonstrando a alma pesada, esse candidato lamenta episódios de corrupção. O tom é o mesmo de um sermão, e se o entrevistado expõe algum remorso e expia a culpa em praça pública, tá ótimo: os apresentadores desfazem o semblante, tocam-lhe a testa e o despacham com um “agora vá e não peque mais”.
Mas se não há declaração de autopenitência e ranger de dentes, ferrou: vão para o mesmo inferno a pedalada, o destempero, o jacaré, o palavrão, o “baixo calão”, o triplex e a conta de pelo menos 100 mil pessoas mortas pelo fato de o governo federal ter ignorado a compra da vacina contra covid-19.
São brancos os enfoques que discutem corrupção sem atrelá-la aos ônibus lotados, à imensa quantidade de agrotóxicos dentro de nossos pratos, à falta de atendimento médico gratuito.
Esse debate noticioso pautado principalmente em arrancar mea-culpa é o que tenho chamado de jornalismo genuflexório, quando entrevistadores estão principalmente interessados em fazer políticos se ajoelharem no móvel usado para orações, e não trazer para o debate questões que agora mordem efetivamente os calcanhares e os estômagos da maioria de nós (falei um bocadinho sobre o tema aqui, com o repórter Gil Luiz Mendes, da Ponte Jornalismo).
Este ano, pode-se dizer que se trata de uma espécie de “a volta dos que não foram”, a repaginada do famoso “precisa fazer autocrítica”, hit da campanha de 2018. Enquanto fome, desemprego, inflação, educação e violência aparecem como as principais preocupações das eleitoras e dos eleitores para o pleito deste ano, a questão da corrupção – e é claro que ela é extremamente importante, eu já volto a falar dela – tem espaço e tom únicos na imprensa.
Essa presença não é à toa: é a partir dela que se modula grande parte do poderoso discurso da polarização. Depois, elegem como salvadora uma pessoa supostamente equilibrada e eficiente mas, principalmente, imaculada. Este ano, a bola da vez parece ser a senadora Simone Tebet, do MDB, que comove corações outrora lava-jateiros e nacos expressivos da Faria Lima e outros setores da burguesia, inclusive cultural. Aliás, em 2018, vocês lembram, o impoluto midiático, o homem que ia salvar o Brasil, era Sergio Moro.
Ah, o tempo.
É claro que a corrupção é um tema central, e o debate político precisa obrigatoriamente incluí-la. A corrupção, aliás, é um elemento comum ao ambiente político em qualquer país, basta dar uma olhada no noticiário ao redor do mundo. É justamente por isso que existem instituições e órgãos fiscalizadores do poder, a exemplo dos Tribunais de Contas, corregedorias, Ministérios Públicos, etc.
A questão é que o debate proposto por parte da imprensa tem mais de moralismo – e de instrumentalização da opinião pública – do que uma discussão de qualidade sobre o problema. A operação segue a lógica do melodrama: elegem-se vilões e mocinhos, o “roubou” e o “não roubou”, o bem e o mal. É justamente dessa lógica simplista que Bolsonaro se alimenta, vendendo-se atualmente como “sem modos, mas honesto”, em contraposição ao seu maior adversário nestas eleições, Lula.
A história é facilmente comprada, uma vez que aprendemos, erroneamente e pedagogicamente através da TV e dos jornais, que política não é o espaço do desacordo, dissenso, acordo, rearranjos, e sim uma arena povoada entre muitos malvadões e alguns poucos cordeiros. Alguém lembra daquelas capas da Veja e da IstoÉ colocando Moro e Lula como adversários em um ringue? É sobre isso.
Perguntas brancas
É esse moralismo que torna – e aqui chego ao segundo ponto – extremamente brancas grande parte das perguntas dirigidas aos candidatos e às candidatas, assim como as coberturas. Esses dias, aliás, a Folha de S. Paulo mandou um “Propostas de presidenciáveis contra a corrupção têm termos vagos e Lava Jato esquecida”. Ao se referir à força-tarefa como se ela fosse um exemplo de idoneidade (mal = corrupção; bem = Lava Jato), me parece que o veículo é que esqueceu das ilegalidades expostas da saga lavajatista, com direito a juiz e promotores combinando operações. Deve ser saudade.
Outro momento branco no qual operou o discurso da criminalização versus santificação foi visto na famosa entrevista de Lula ao Jornal Nacional, quando Renata Vasconcellos perguntou qual seria o papel do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra, o MST, em uma possível nova administração do petista. Ali, estava embutida e mal disfarçada a demonização de uma organização social fundamental, por exemplo, na diminuição do sofrimento de milhares de pessoas durante a pandemia ao distribuir mais de 5 mil toneladas de alimentos. Era não só uma pergunta de 1989 feita para um candidato em 2022, mas a continuidade de um tom acusatório que lança estes movimentos sociais para o lugar de violência e vulnerabilidade: se são “do mal”, devem ser combatidos. E hoje, sabemos, não faltam armas de fogo patrocinadas por Bolsonaro para isso.
Enquanto a imprensa produz notícias pautadas entre céu e inferno, imaculados e maculados, a lombar da maioria – preta, pobre – vai estalando. Isso porque são brancos os enfoques que discutem corrupção sem atrelá-la aos ônibus lotados, à imensa quantidade de agrotóxicos dentro de nossos pratos, à falta de atendimento médico gratuito. Sem associá-las, por exemplo, à parceria da Polícia Federal com o terror instalado em comunidades que vivem nos falidos engenhos pernambucanos, como escreveu Alice de Souza nessa excelente reportagem para o Intercept. Às chacinas que se tornaram instrumento político em cidades como Fortaleza e Rio de Janeiro.
Como efeito, temos uma população que se escandaliza mil vezes mais com uma delação premiada do que com o assassinato em série de crianças (a maioria preta) no Brasil. Para não dizer que não falei de flores, o repórter Breno Pires, da revista piauí, fez com precisão a relação entre corrupção e pobreza nesse texto no qual mostra como o orçamento secreto centro-bolsonarista fraudou o SUS.
Essa obviedade ignorada pelo jornalismo foi tema da pesquisa “Os impactos da corrupção no desenvolvimento humano, desigualdade de renda e pobreza dos municípios brasileiros”, de Flavius Raymundo Sodré, da UFPE, que verificou os efeitos dos achaques no bem público sobre indicadores socioeconômicos. Ele enfocou em más práticas de gestões municipais e seus reflexos sobre o índice de desenvolvimento humano dos municípios (IDHM), o índice de Gini para desigualdade de renda e a pobreza dos municípios brasileiros. Como resultado, Flavius percebeu que um aumento médio de 50 irregularidades praticadas pelos municípios diminui em 4,5% o IDHM, aumenta em 6,5% a concentração de renda dos municípios, eleva em 5% a proporção de pobres e diminui a renda média desses em 7%.
Além disso, o pesquisador demonstrou que os impactos da corrupção não ocorrem de forma diferente entre as regiões brasileiras. Há ainda outro ponto a ser sublinhado aqui: estudos diversos indicam que, mais do que a corrupção, é o mau uso do dinheiro público que gera mais prejuízos para a nação. Neste texto, o presidente do Conselho Federal de Administração, Mauro Kreuz, fala como o baixo nível profissional dos gestores e das gestoras e programas de governo que preveem ganhos públicos somente de fachada promovem um ambiente frágil no qual os desvios de recursos são facilitados.
Enquanto isso, o pedido-desafio de Bolsonaro – “me chama de corrupto, porra” – segue sem ser atendido pelo jornalismo brasileiro. Mesmo quando o dinheiro público – o mesmo que falta para universidades, hospitais, presídios, etc. – é usado pelo presidente para fazer, ilegalmente, um grande comício (qual nome devemos dar a isso?). Ao contrário: enquanto cometia as infrações no 7 de setembro, Bolsonaro ganhava uma excelente cobertura dos nossos veículos – os mesmos que, ja já, vão fazer matéria ou podcast falando das dificuldades das esquerdas ganharem “as narrativas” nas redes sociais. É de lascar, minhas senhoras.
Se não qualificarmos melhor o debate sobre corrupção, mostrando como ela tem impacto em nosso cotidiano direto, nomeando-a corretamente e se atendo menos a uma perspectiva moral, continuaremos deslizando sobre a superfície da discussão. Não só: vamos contribuindo para essa apreensão moralizante usada a torto – e principalmente à direita – por grupos como o próprio clã Bolsonaro, que se batiza de santidade enquanto aponta o dedo para os outros (tendo cuidado para esconder o dinheiro vivo antes). Não adianta chorar o leite derramado e pedir depois que as pessoas acreditem em um jornalismo “democrático” que, em momentos dramáticos como este, simplesmente esquece da população mais pobre enquanto exibe ao vivo e com perfeição técnica as ilegalidades do presidente.
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