No primeiro turno dessas eleições, o bairro mais populoso do Brasil foi também o local onde Bolsonaro obteve seu maior êxito eleitoral na cidade do Rio de Janeiro. Em Campo Grande, Zona Oeste, foram 58,24% de votos para o atual presidente, contra 33,42% de Lula.
Em números gerais, a disputa foi mais equilibrada nas urnas cariocas, com 47% x 43,47% pró-Bolsonaro. Campo Grande, no entanto, tem características muito próprias que explicam a ampla vantagem: é um dos berços da milícia, além de ter uma grande concentração de igrejas evangélicas, com destaque para a Universal e a Assembleia de Deus.
No último sábado, 16 de outubro, em uma ofensiva para reverter o quadro eleitoral neste segundo turno, foi realizada uma plenária com lideranças de esquerda, preparando terreno para a visita que Lula fará à região nesta quinta-feira, dia 20. Lindbergh Faria, Chico Alencar e Jandira Feghali, deputados eleitos por PT, Psol e PCdoB, respectivamente, compareceram ao encontro, que teve baixa adesão de público, sobretudo entre os mais jovens.
Durante os discursos, foi pontuada a necessidade de reforçar o diálogo e focar no eleitor indeciso. Porém, o que mais chamou atenção foi o reconhecimento dos progressistas de que a derrota é praticamente inevitável no bairro (com mais de 280 mil eleitores) e o que deve ser feito é garantir o máximo de votos para brecar o favoritismo de Bolsonaro na contagem final. Embora a estratégia flerte com o pragmatismo, é insuficiente para atender os anseios dos moradores da Zona Oeste. Quem faz essa avaliação é o ativista cultural Kawan Lopes, nascido e criado em Campo Grande.
Com apenas 23 anos, Kawan enfrentou, em 2022, sua segunda disputa eleitoral. A primeira havia sido em 2020, quando concorreu a vereador pelo Psol, defendendo o legado de Marielle Franco, com quem teve proximidade e abertura para o primeiro contato com a política partidária. Este ano, ele concorreu a deputado estadual pelo PT e, apesar de jogar em campo adverso e não ter se elegido, obteve quase 3 mil votos.
Intercept – Quando olhamos os mapas dos resultados do primeiro turno, percebemos que muitas capitais brasileiras votaram em Lula. No Rio de Janeiro, essa movimentação ficou mais limitada aos bairros mais ricos, da Zona Sul. Como você avalia isso?
Kawan Lopes – Isso é o reflexo da desigualdade social. A gente sabe que a Zona Oeste concentra quase 48% da população carioca. E, de fato, no meu recorte enquanto agente cultural, consigo entender que a oferta de cultura na Zona Sul é feita de uma maneira muito exemplar. Mas, quando a gente faz um recorte da Zona Norte, da Baixada Fluminense e da Zona Oeste, a gente não tem, de fato, equipamento cultural que promova a emancipação social. Porque ir ao teatro é um ato político. A arte é transversal. Ela entra no emocional, no subconsciente.
Se a gente tem ausência de investimento cultural e educacional nas periferias, nas favelas da Zona Oeste, isso vai ter reflexos também na formação de analfabetos funcionais. Pessoas que não se conhecem, não leem, não têm a possibilidade de ir ao cinema, ao teatro… A lógica aqui é sair do ensino médio e ir para um balcão de supermercado. Óbvio que o balcão de supermercado, o estoquista de uma loja têm sua relevância, mas a gente não pode só ofertar isso para essa juventude que, hoje, ou não estuda, ou não trabalha.
‘Quando eu era do Psol, as reuniões eram pela Zona Sul. A gente tinha que se deslocar do nosso território’.
A eleição do primeiro turno é a evidência histórica de como estão sendo ofertadas as políticas públicas no território da Zona Oeste. Quando, por exemplo, trem e metrô não chegam, é o acesso à cidade que está sendo impedido. Se você não acessa a cidade, você não acessa a escola, não acessa o teatro, não acessa o hospital, não acessa o mercado. Você não se encontra com seus amigos para debater política, então se cerceia um direito que é básico, que é o acesso à cidade.
Se você não consegue transitar, você não consegue ter acesso às ferramentas públicas que promovam a emancipação social. Isso é uma lógica muito perversa. Desse jeito, a vivência dessas crianças vai ser marcada pela ponta do fuzil. Pela bala, pelo barulho do helicóptero.
A visão geral da Zona Oeste é caricata como “a região tomada pela milícia”? E além disso, você acredita que a esquerda enxerga os moradores da Zona Oeste desse jeito preconceituoso?
Quando eu era do Psol, as reuniões sempre eram pela Zona Sul e pelo Centro. A gente tinha sempre que se deslocar do nosso território. Então, isso é uma construção de qual é a centralidade de uma reunião. Onde o debate é, não podemos fazer na Zona Oeste, porque isso compromete a questão da nossa segurança, de nossos companheiros…
Mas como a gente está desconstruindo essa lógica? Como é que está sendo desconstruída a possibilidade de a gente, enfim, entrar no território para construir um diálogo mínimo com as pessoas, sobre renda, sobre família?
A possibilidade de a gente desconstruir a concepção de milícia, a partir também do reconhecimento, de como eu me reconheço no território, ou como esse território é consolidado. De fato, a construção estabelecida das milícias no estado do Rio de Janeiro é colonialista, porque, quando a gente traça o pertencimento da Zona Oeste na sua época colonial, na época de laranjal, de cana de açúcar, na época dos jesuítas, na época do Palacete da Princesa Isabel, a enxergamos como refúgio turístico e também como calabouço de escravos.
É a história que a história não conta. A gente precisa mergulhar fundo e fazer de fato uma constatação de como os contexto daqui são consolidados. E aí é uma dificuldade muito grande. Isso tem reflexos também nos dias de hoje.
No contexto da segurança, acho que vamos entender que o debate da guerra às drogas não é um debate de teologia, mas de saúde pública, de economia, de segurança. Então, a gente precisa debater com muito cuidado. E é uma pauta que custa muito caro. A gente entende que quem está no poder não quer custear essa pauta, porque, de fato, mexe no bolso dos poderosos.
A gente precisa entender como consegue se consolidar e se organizar enquanto juventude, enquanto mais velhos, mais novos, para atravessar primeiro a possibilidade de fazer uma emancipação social de favela. E eu acho que isso é continuarmos na entrega de cestas básicas, nos cursos pré- vestibulares, nas construções domiciliares de diálogo, de reflexões.
Isso não só no período das eleições, mas cotidianamente, para que a gente consiga fazer uma construção de reconhecimento social. Quem eu sou? Onde eu estou? Que pertencimento é esse que eu preciso construir? Isso vai atravessar desde a senhora de 65 anos até dona Maria, de 32 ou de 46, que é empregada doméstica, ou desde o João, de 17 anos, que é do grêmio estudantil ou do ensino médio do Ciep João Vitta, no Cesarão, por exemplo.
É uma tarefa muito grande da esquerda, dos partidos, de romperem a bolha. Se a gente construir uma narrativa para nós mesmos, vamos atravessar a maré. Ou não. A gente não sabe. Mas é possível fazer com que essa construção seja feita de maneira transversal, para que chegue de fato na favela, nas periferias da Zona Oeste e no subúrbio.
Os três bairros com maior concentração de milícias são aqueles onde houve o maior aumento de votos para Bolsonaro. Como a esquerda pode retomar a presença nessa região e quais ferramentas efetivas de comunicação podem usar para ter chance de vitória?
Minha primeira campanha [para vereador, em 2020] teve quase 1.000 votos. Esse ano triplicou. Isso reafirma que a gente teve muito voto em Santa Cruz, em Campo Grande. Fomos votados em 67 dos 80 municípios do estado. Isso mostra que a gente, de pouquinho em pouquinho, vai rompendo a bolha. Para além disso, a gente precisa se esforçar para ser uma referência em nosso território. Para que outros jovens se sintam capacitados a sair de suas casas, sair de suas escolas e se organizarem politicamente.
Sobre as milícias, é muito difícil. Não consigo responder, porque a gente lida muito com as pessoas que estão passando fome. Então, como mudar o nosso território, se as pessoas não tem nem água na geladeira? Temos que construir um projeto de governo para que as pessoas tenham o mínimo de possibilidade, sentar na mesa para debater política, porque hoje elas estão com fome. Esse é o nosso maior desafio.
Mesmo sendo composta em sua grande maioria por grandes bairros, e não favelas, a Zona Oeste ocupa um papel periférico na cidade. Essa percepção está presente na consciência dos moradores?
Na sua totalidade, não. Essa é uma dificuldade, a começar dentro da sala de aula. A noção de pertencimento começa ali, a partir da matéria de geografia. Por isso, a relevância dos profissionais da educação. Acho que precisamos criar o pertencimento sobre o que é ser suburbano, sobre o que é periférico, sobre o que é ser favelado. É trazer o reconhecimento de como que a gente se coloca geograficamente no município do Rio de Janeiro. É um plano político pedagógico, que deveria estar inserido – mas não está – na Secretaria de Educação, tanto no município nem na do estado.
São poucos jovens, poucas crianças que furam essa bolha. A partir da emancipação social, que chega por um pré-vestibular social, um curso da Ser Cidadão [projeto educacional] ou por meio de uma imersão política já dentro da família. Quando se reivindica [essa emancipação], eu me reivindico enquanto favelado. Eu acredito que o Cesarão é uma favela, o Aço, o Antares, porque também tem ali dentro da favela a periferia. A periferia dentro da favela.
‘Como mudar o nosso território, se as pessoas não tem nem água na geladeira?’
Se está no plano de morro, é favela. Se está no plano térreo, é periferia. Tem partes do Cesarão que são favela, tem partes do Cesarão que são periferia. Tem partes do Aço que são favela, tem partes do Aço que são periferia. Então, vai se entrelaçando. Eu me intitulo favelado, porque acho que a cultura da favela percorreu muito a minha trajetória de vida e foi muito marcante soltar pipa ou jogar bolinha de gude, ouvir funk e até mesmo a marginalidade, as manifestações marginais, isso foi muito presente na minha vida.
Então, mesmo dentro desse recorte periférico, também há recortes de favela. Sobre essa questão de as pessoas se autointitularem, eu acho que a gente perde muito enquanto sociedade civil [quando isso não acontece], porque a gente fica imerso em meio às obrigações. É trabalhar para sobreviver, então não tem como fazer esse recorte sobre onde eu estou, quem eu sou, porque, de fato, o lugar capitalista que a gente vive não nos dá a possibilidade de sonhar ou, principalmente, de reconhecer quem nós somos.
Os BRTs são os novos navios negreiros, dos corpos imprensados. Os trens também. Ou as pessoas saem mais cedo para sobreviver ou elas não terão comida na mesa. Não tem como a gente exigir que essas pessoas tenham um recorte ou entendimento do que elas são. Elas são o proletariado, então elas são periféricas. É o recorte que nós temos, porque nós temos a possibilidade de refletir sobre o território. Mas pensando nessas pessoas que não têm essa possibilidade, cabe a nós a responsabilidade de trazer essa narrativa e essa realidade a eles.
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