Autodeclarada “líder empenhada num futuro sustentável”, a fabricante norueguesa Norsk Hydro agora responde formalmente a um processo na Corte de Roterdã, na Holanda, sob a acusação de despejar toneladas de rejeitos químicos tóxicos em rios que sustentam comunidades tradicionais na região de Barcarena, no Pará.
O tribunal aceitou, no último 19 de outubro, julgar a ação proposta pela Associação dos Caboclos, Indígenas e Quilombolas da Amazônia, a Cainquiama, e outras nove pessoas. As vítimas pedem reparação financeira por ao menos 10 grandes derramamentos de “lama vermelha”, um caldo tóxico composto por argila, sílica e sobras metálicas do refino da bauxita, minério que dá origem ao alumínio. Os rejeitos são despejados pela Alunorte e pela Albrás, empresas coligadas e subsidiárias da Hydro no Brasil. Seis de suas subsidiárias com sede em Roterdã estão arroladas no processo.
A Albrás, instalada na região em 1985, é responsável pela produção do alumínio primário. Já a Alunorte, inaugurada exatos 10 anos depois da primogênita, é considerada a maior refinaria de alumínio do mundo, com capacidade total de produção de 6 milhões de toneladas por ano, segundo informações da própria empresa.
As duas foram projetadas na esteira dos “grandes projetos” da Ditadura Militar brasileira, quando o estado passou a firmar acordo com outros países e a conceder incentivos fiscais para que companhias nacionais e transnacionais se enfiassem na Amazônia para explorá-la comercialmente, no fim da década de 1960.
A Norsk Hydro passou a ter participação nas empresas no ano 2000, após assinar acordo com a Vale do Rio Doce, então gestora de ambas. Em 2010, o grupo norueguês pagou 4,9 bilhões de dólares para assumir o controle das duas empresas. Desde então, os despejos de resíduos por parte da Alunorte e da Albrás nos rios têm sido frequentes e, segundo a Cainquiama, contaminaram a população com chumbo, cromo e mercúrio presentes na água, além do alumínio.
A tentativa de responsabilizar a multinacional em território holandês é a última cartada de quem praticamente desistiu de ter algum tipo de reparação na justiça brasileira. Por aqui, tramitam cinco ações coletivas, iniciadas em fevereiro de 2018, sem nenhuma resposta efetiva às comunidades tradicionais. A principal barreira é o poder financeiro da Hydro, que recorre das decisões e emperra os processos.
Um exemplo é quando, em uma das ações civis públicas, na 5ª Vara da Fazenda Pública do Pará, a Cainquiama pediu que exames fossem feitos a partir do cabelo de moradores da região para medir o nível de contaminação por metais pesados. O juiz de primeira instância aceitou o pedido e ordenou a coleta das amostras, ainda em 2018. Desde então, nenhum laudo chegou à mesa do judiciário, porque a multinacional empilha recursos para barrar a ação.
“O juiz mandou primeiro fazer por amostragem, em 300 pessoas da associação Cainquiama, por meio do Instituto Evandro Chagas. O instituto apresentou os critérios e o custo dos exames, mas a Hydro recorre há quatro anos para que eles não sejam feitos, porque sabe que eles vão evidenciar o que ela está fazendo”, relatou o advogado brasileiro Ismael Moraes, representante da associação no Pará.
A Hydro diz que a alegação não procede e que o judiciário brasileiro é “acessível” e tem “fortes garantias” para um julgamento justo. “Os recursos previstos na legislação existem para que possam garantir a melhor defesa de todos os envolvidos nos processos”, disse a empresa, em nota.
Outra ação cobra a revogação dos licenciamentos ambientais concedidos à Hydro pela Secretaria de Meio Ambiente do Pará, a Semas. Segundo o advogado, há uma série de irregularidades, como o fato de as bacias de rejeitos terem sido construídas em uma reserva ecológica protegida por lei, além da ausência de estudos de impacto à saúde humana na área de mineração da bauxita da companhia, que fica em Paragominas, a 280 quilômetros de Barcarena.
“Cada parcela de licenciamento, em si, tem uma dose de fraude. Ela [a Hydro] está tratando com produtos geoquímicos e não existe um estudo de geoquímica para saber quais são os efeitos desses produtos que são lançados no meio ambiente”, reclamou Moraes.
‘Sentença de morte’
Embora os exames continuem inexistentes, eles não são necessários para diagnosticar a dor de quem já sofre com a contaminação há muito tempo. Maria do Socorro Costa, a Socorro do Burajuba, presidente da Cainquiama, contou que o marido morreu “de tristeza” em 2021, depois de passar os últimos anos muito doente. Ele estava contaminado por chumbo e outros metais, de acordo com um exame particular feito em 2014.
“Meu marido morreu sem ter a oportunidade de se curar. Tinha dor de estômago, ele sentia muita dor. Ele não podia comer, não enxergava, e a dor não passava mais. O jeito de viver do povo da floresta é igual a um vício: você não deixa de fumar do dia para noite. Com a contaminação, meu marido não pôde mais pescar, mais fazer farinha, plantar roça. Tudo ficou ruim depois isso”, narrou Socorro.
Instalados à beira dos rios Murucupi e Pará, os moradores da região vivem em contato direto com a água contaminada: é com ela que eles preenchem seus poços “amazonas” (um poço raso, geralmente com até 20 metros de profundidade, perfurado à mão). É nela que se banham e cozinham, em uma culinária baseada em pescados e no cultivo de mandioca e milho.
‘Não podemos mais pescar, porque o rio virou esgoto da Hydro. O pouco que dá fede a amônia’.
A chegada da Alunorte, porém, fez tudo mudar. “Nós não podemos mais pescar, porque o rio está envenenado, virou esgoto da Hydro. É um sangrador. Não tem peixe, não tem camarão. O pouco que ainda dá, em alguns pontos, fede a detergente, fede a amônia, eu não sei o que é. É alguma coisa muito forte. Quando você pesca, coloca os peixes para fora d’água, os olhos deles brilham e ficam duros que nem uma peteca”, relatou Socorro.
As frutas também não nascem como antes. “Nós sabemos quando a água está doente. Quem nos conta são os passarinhos. Nossa manga, nossa goiaba, o caju não prestam mais, porque o passarinho não está comendo. Elas caem amarelas, não caem mais roídas. É um aviso do passarinho de que tem algo estranho no nosso corpo, que faz doer nossos olhos e nossos ossos”, disse a moradora.
Socorro transforma a dor em apelo. “Nós não queremos morrer. Nós nunca prejudicamos ninguém fora do Brasil e agora essas empresas vêm para o nosso país e, além de tirar nossas riquezas, ainda nos matam? Eu não vou descansar, não vou desistir da luta. Porque, se me matarem hoje, só vão completar o assassinato. Porque já assinaram nossa sentença da nossa morte”.
O rio quase morto também adoeceu a família da dona de casa Damiana Oliveira dos Santos Silva, moradora de Barcarena há quase 40 anos. Ela contou que a filha, Rebeca, então com 4 anos, começou a perder tufos e tufos de cabelo após beber a água contaminada em 2018.
“Quando minha filha amanheceu, eu pensei que ela tinha raspado a cabeça com prestobarba ou algo do tipo. Quando fomos ver, tinha um buraco na cabeça dela, sem cabelo já. Depois, foi ficando cheio de ferida, piorando, piorando e caindo todo o cabelo. Ela ficou com coceira, manchas na pele”, relembrou.
Ao procurar ajuda em uma farmácia, a dona de casa afirma ter conseguido uma receita de remédio para evitar a queda de cabelo e amenizar as feridas da filha. O valor, contudo, era inviável para quem sobrevivia com a venda de frutas do quintal e não tinha nenhuma renda fixa à época: R$ 1.200. O jeito foi bater à porta de um canal de tevê de Belém e pedir ajuda. “Pedi o remédio dela. Tinha que ser de 12 em 12 horas. Eu não tinha dinheiro. Graças a Deus, eles me deram e ela melhorou”.
Pouco tempo depois, a própria Damiana também começou a perder cabelo e foi obrigada a raspar a cabeça. “Eu fiquei muito triste. Ficava mexendo no cabelo, chorei muito. Quando eu cheguei careca, todo mundo chorou na rua de casa, na igreja. Onde eu passava, as pessoas diziam: que pena que você está com câncer. Eu explicava que não era, mas era uma situação muito delicada”.
Jorge Luiz da Silva, marido de Damiana, também apontou efeitos da água contaminada no corpo. “Sentia uma dor muito grande. Eu ia defecar e caía dentro do banheiro de dor. Quando eu parei de tomar a água, parou a dor. Era uma pontada no fígado, no coração, sei lá, bem no meio do peito. Eu caía, não aguentava”.
Hoje em dia, para evitar mais sintomas, Damiana e Jorge compram água mineral engarrafada – gastam nisso algo próximo de R$ 200 por mês, ambos estão sem emprego. Segundo o casal, uma indenização poderia compensar ao menos o prejuízo com a água que bebem. No entanto, nunca ninguém da Hydro pisou na vizinhança para oferecer ajuda ou nem sequer dar satisfação.
A Norsk Hydro afirma, porém, que firmou acordo com o Ministério Público, em setembro de 2018, para distribuir aos contaminados um “benefício temporário dos cartões alimentação”, o que foi finalizado no primeiro semestre de 2022.
Comprovação científica e disfarce
A pesquisadora Simone de Fátima Pinheiro Pereira, doutora em química pela Universidade Federal da Bahia, analisa as águas da região desde a década de 1980 e diz que, desde então, sempre houve vazamentos diários das empresas de alumínio. Ela coordenou uma série de pesquisas feitas pelo Laboratório de Química Analítica e Ambiental, da Universidade Federal do Pará, que comprovou cientificamente a contaminação dos rios da região por metais pesados, principalmente por chumbo.
Segundo ela, as empresas não fazem nenhum tratamento para retirar os elementos químicos dos rejeitos que acabam nos rios, apenas controle de pH e turbidez. “Eles colocam lá em uma estação de tratamento, adicionam ácido para neutralizar o hidróxido de sódio que é usado no processo, por isso a lama vermelha tem pH elevado, em torno de 12, 13. Isso é altamente corrosivo. A água natural de rio tem um pH entre 6 e 9. Na Amazônia, entre 6 e 7. Quando esse material chega no rio, há grande mortandade de peixes, porque o pH do rio inviabiliza o uso da água para qualquer coisa”, explicou a pesquisadora.
A Alunorte diz que mantém uma estação de tratamento, onde monitora e analisa todos os rejeitos lançados nos rios e córregos de sua “área de influência direta”. A empresa garante que todos os parâmetros da região estão em conformidade com os limites previstos em lei.
Ela afirmou que, nos últimos anos, analisou a água de 26 comunidades. Destas, 24 tinham níveis elevados de contaminação por chumbo, o que pode causar doenças graves. “O chumbo é cancerígeno e causa uma doença chamada saturnismo, que provoca a não eliminação do ácido úrico. Isso vai causar a gota. Também afeta as articulações e o sistema nervoso central. A pessoa começa a ficar irritada, a ter alucinações. Isso pode levar à loucura e até mesmo à morte”.
‘Eu ia defecar e caía no banheiro de dor. Quando parei de tomar a água, a dor passou’.
A professora afirmou que, quando questionada pelos pesquisadores, a empresa defendeu-se dizendo que não usa chumbo no processo industrial e, portanto, não seria a responsável pela presença do elemento na água. No entanto, não é bem assim. “São pérolas da desinformação. Eles esquecem que esse chumbo e esse bário está associado ao minério com que eles trabalham. Não precisam adicionar nada. Está no minério que eles trituram, que eles moem, que eles colocam soda cáustica. Se você analisar a composição da bauxita, o chumbo aparece lá em níveis de partes por milhão [de gramas], o que, para nós, são concentrações elevadas”.
Pereira contou que, em uma das análises, feita logo após um vazamento de lama vermelha no rio Murucupi, em 2009, descobriu que a Alunorte estava jogando ácido clorídrico na água para disfarçar a contaminação. A empresa nega.
“Na sonda que eu usava, começaram a aparecer valores de cloreto muito, muito elevados. À medida que a gente se aproximava da área da fábrica, esse cloreto disparou, chegou a 900 [miligramas por litro]. O cloreto estava saindo da fábrica. Mas eles não usam nada com cloreto no processo, o que significa que estavam tentando ocultar os vazamentos, colocando coisas no rio para parecer que não houve vazamento nenhum. O problema é que nós, da universidade, não lidamos com achismo. A gente tem ciência, tem maneiras de explicar por que eu afirmo que eles jogaram ácido clorídrico no rio”.
Segundo Pereira, o índice de cloreto identificado naquele momento é parecido com o que se encontra em áreas de estuário, quando as águas do rio e do oceano se misturam. “É muito cloreto. Para se ter uma ideia, o cloreto natural do rio Murucupi é de dois a 10 miligramas por litro”.
Contaminação premeditada
O último grande despejo de poluentes foi em 2018, quando, depois de fortes chuvas, resíduos químicos dos dois depósitos daAlunorte (chamados de DRS1 e DRS2) se espalharam pelo Rio Pará, córregos e também pelo solo da região de Barcarena.
Inicialmente, acreditou-se que se tratava de um transbordamento em razão do volume de água que caiu na região ou de um vazamento acidental. Uma investigação do Ministério Público do Pará, no entanto, comprovou que a empresa construiu uma rede de tubulações para lançar a lama vermelha propositalmente nas águas. A perícia identificou que os rejeitos da Alunorte desembocavam diretamente nos rios, sem qualquer tratamento. Segundo o MP, tratava-se de um canal com 60 metros de largura e 20 metros de profundidade que, três vezes por semana, tinha as comportas abertas para liberar todo o resíduo diretamente no Rio Pará.
“Na ocasião foi constatada a existência do referido canal, denominado pelos funcionários como ‘canal antigo’ ou ‘canal reserva’, o qual não teria licença ambiental e que se constituiria num ‘bypass’ com a função de desviar parte dos efluentes que deveriam ser submetidos à tratamento e direcioná-los diretamente ao Rio Pará, sem qualquer tratamento”, descreveu a promotora Eliane Cristina Pinto Moreira, em ofício remetido ao Ministério Público Federal em março de 2018.
Um relatório do Grupo de Apoio Técnico Interdisciplinar do MP do Pará, o Gati, anexado pela promotora ao ofício, também apontou que a estrutura irregular tinha sinais de manutenção constante. “Observamos que o parafuso da comporta apresenta características de manutenção recente, possivelmente indicando indícios de uso recente. Outro aspecto observado é que as paredes do canal, mais especificamente na borda da comporta, apresentam sinais de utilização de algum artifício de apoio para manuseá-lo”, descreveu a área técnica do Ministério Público.
A Hydro afirma que “nunca existiu estrutura irregular” e que, à época, lançou no rio apenas água da chuva coletada em “bacias de contenção” da refinaria, “sem contato algum com a área de resíduos”.
Não é o que diz o relatório do Gati, reproduzido pela promotora no ofício: “Os técnicos aferiram que a caixa de mistura [parte do canal] receberia efluentes com e sem resíduos de bauxita, posto que possui um cano que realizaria a comunicação entre os dois destinos, o que resultaria no fato de que os efluentes, em tese sem resíduos de bauxita denominados de “resíduos de área branca”, na realidade sofreriam uma mistura com os “resíduos de área vermelha”.
Próximos passos
O processo em Roterdã agora segue para a fase de mérito – ou seja, para a análise judicial do pedido de reparação financeira com base em provas e argumentos de defesa das partes. A associação é representada no processo pelo escritório britânico Pogust Goodhead – o mesmo que defende os atingidos pelo rompimento da barragem do Fundão, em Mariana –, pelo advogado brasileiro Ismael Moraes e pelo escritório holandês Lemstra van der Korst.
“Temos uma esperança muito grande e confiança de que a Justiça holandesa enfim decidirá por uma reparação para essas pessoas, que estão sofrendo há décadas. A aceitação de jurisdição, por si só, já representa um marco em direção à justiça para os afetados, o que infelizmente não conseguimos no Brasil”, afirmou Moraes.
Segundo o advogado, caso haja uma sentença indenizatória, o dinheiro será recebido em uma conta na Holanda e depois transferido legalmente ao Brasil.
A Hydro afirmou que “apresentará sua defesa seguindo os trâmites legais na justiça holandesa”. A empresa “nega veementemente as alegações apresentadas pelos autores da ação” e disse que “está comprometida em ser um bom vizinho, agindo com responsabilidade e colocando saúde, meio ambiente e segurança em primeiro lugar onde quer que opere”.
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