Morador do subúrbio carioca, o antropólogo, podcaster e streamer Orlando Calheiros aprendeu cedo que política não se faz apenas reclamando nas redes sociais – sobretudo para disputar e vencer o bolsonarismo. É preciso “botar a mão na massa”, “criar redes” e ter “estratégia de ocupação e de comunicação”, defendeu. E é isso que ele vem fazendo ao menos desde 2015, quando começou a monitorar grupos que futuramente seriam cooptados pelo bolsonarismo.
Usando seus conhecimentos em antropologia e as próprias vivências, Calheiros acompanhou de perto essa eleição e viu a campanha bolsonarista entrar em curto-circuito ao ser obrigada a tomar posições. “Como Bolsonaro atua em um campo muito contraditório, não pode fazer isso sem perder alguma coisa”, avaliou.
O antropólogo também viu as estratégias de figuras como Janones e Felipe Neto fazendo efeito e, por isso, acredita que as coisas poderiam ter sido diferentes sem a atuação deles. Janones esvaziou as táticas bolsonaristas e impediu que a máquina de fake news avançasse mais. Já Felipe Neto, com enorme influência entre a juventude, atrapalhou a estratégia de “remissão e supressão de votos” e ajudou a fidelizar esse eleitorado à esquerda.
Nessa entrevista, Calheiros ainda manda um recado para os políticos do campo progressista: eles precisam fortalecer os produtores de conteúdo independentes e se articular com lideranças locais. Já os militantes devem entender que “política não é fazer o que você acha legal” – é preciso estar mais disposto a fortalecer o movimento do que a “reagir à última merda que o Bolsonaro falou”. Confira a entrevista na íntegra.
Intercept – Bolsonaro fez tudo que podia – e que não podia – para ganhar essa eleição, mas Lula ganhou. Como se explica isso?
Orlando Calheiros – São várias questões envolvidas. Bolsonaro nunca se recuperou da CPI da Covid, que atraiu muita atenção. E não tem como [o eleitor] ignorar que o seu avô não está mais na mesa de jantar. A segunda questão é a memória. Os governos Lula são muito recentes. Muita gente virou adulta nessa época e viveu isso. Acredito que, mesmo com a pandemia, se o candidato não fosse Lula, a gente nem teria ido para o segundo turno.
Outra coisa fundamental foi o exército antibolsonarista, entre os quais eu me incluo. Na CPI da Covid, fomos fundamentais com o material que produzimos.
Qual foi o impacto de figuras como Janones e Felipe Neto na campanha petista? Mudaria algo se eles não tivessem se engajado?
Eu realmente acho que sim. O Janones foi responsável por virar votos? Não sei. Mas, com certeza, ele teve um papel crucial nessa campanha que foi esvaziar as táticas bolsonaristas e impedir que essa máquina [de fake news], provavelmente o maior golpe eleitoral da história recente do Brasil, avançasse ainda mais. Um exemplo: o bolsonarismo estava avançando nessa narrativa de censura da Jovem Pan. O Janones foi lá e disse que também estava sendo censurado, gerou um movimento de contragolpe.
Felipe Neto, por sua vez, influenciou a formação da juventude e de crianças no Brasil. Então, ele se colocar nessa posição [contra Bolsonaro] é muito importante. Em termos estratégicos, de virada de voto, realmente acho que ele tem uma influência muito grande em determinado nicho.
‘O bolsonarismo entra em crise todas as vezes que é forçado a assumir uma posição’.
O ecossistema bolsonarista não funciona apenas virando voto para o Bolsonaro, mas também para promover remissão e supressão de votos. Algumas das estratégias de remissão de votos é identificar grupos que estavam mais ou menos inclinados a votarem em candidatos de esquerda e convencer a não votarem em ninguém. O Felipe Neto assumindo uma posição, mantém o eleitorado fidelizado à esquerda.
Você disse que a campanha de Bolsonaro entrou em curto-circuito. Em que momento isso aconteceu?
Uma das grandes questões do bolsonarismo é justamente sua multiplicidade. Eles não têm medo algum de serem contraditório. No mesmo dia se vende o Bolsonaro que é a favor da família e o Bolsonaro que prega esterilização de mulheres pobres. Portanto, o bolsonarismo entra em crise todas as vezes que é forçado a assumir uma posição. Nessa eleição – isso foi um feito do PT, da militância virtual e do jornalismo – Bolsonaro foi forçado a assumir posições em diversos momentos. Mas, como ele atua em um campo muito contraditório, não pode assumir posições sem perder alguma coisa. No caso do Roberto Jefferson, por exemplo, ele comprou uma briga com os intervencionistas ao fazer aquele vídeo chamando [o aliado] de criminoso. Ao mesmo tempo, demorou muito para fazer isso e alienou o eleitorado dele das forças de segurança. Ele perdeu em um lado, sem ter um ganho efetivo no outro.
Quais são as características dos grupos bolsonaristas que você monitora?
Muitos deles comecei a monitorar a partir de 2015, quando trabalhei na Comissão Nacional da Verdade. Fui criando uma metodologia, dividindo os grupos por tipos. Os grupos de controle são os mais estruturados, mais coordenados. Eles que vão transmitir informações para outros grupos. No geral, produzem e também recebem muito material pronto, de grupos que estão acima deles, como o gabinete do ódio.
Outros são os que chamo de grupos médios, a exemplo daqueles de notícias de bairro, grupos de igreja, de condomínios. Esses têm uma relação com a pauta bolsonarista de acordo com seus interesses específicos. Por exemplo, os grupos de bairro se aproximam da questão da segurança. Os grupos de pais de aluno, com a educação. Os evangélicos, com as pautas morais. Esses grupos foram cooptados em 2018 pelos bolsonaristas.
‘Política é estratégia, não é voluntarismo’.
Hoje em dia, minha análise está muito orientada para monitoramento de grupos evangélicos, que atuam na periferia do subúrbio do Rio de Janeiro. São os grupos que mais apoiam o Bolsonaro e ao mesmo tempo os que menos apoiam, porque são extremamente críticos a boa parte das pautas dele, como pena de morte e redução da maioridade penal. É uma dicotomia.
Então, o que sustenta esse apoio majoritário?
Existem múltiplos Bolsonaros – o dos grupos evangélicos não é o mesmo dos grupos intervencionistas, que por sua vez não é o mesmo Bolsonaro que as esquerdas veem. Nos grupos evangélicos, as notícias que chegam nunca vão ser Bolsonaro falando de violência ou fazendo piada com pessoas doentes. Você vê o Bolsonaro preocupado com a família e com questões morais. Você vai ver muito a Michelle. Quando você confronta esse grupo com notícias do Bolsonaro intervencionista, ele [o evangélico] condena a atitude, fala que não sabia, ou apenas duvida da informação.
O que vai acontecer com esses grupos agora?
Há quem diga que eles vão se tornar acéfalos, porque vão perder as coordenações. Assim, se tornarão territórios de disputa mais livre. Eu não acho que isso vai acontecer. Muitos grupos vão continuar ativos especialmente em algumas pautas, vão continuar produzindo a mesma coisa, só não vão ter mais o Bolsonaro como referência. Os valores continuarão os mesmos.
Qual deve ser o trabalho dos políticos de esquerda agora para superar o bolsonarismo?
Eles deveriam fazer uma coisa que o bolsonarismo faz muito bem. Bolsonaro dá entrevista para qualquer canal de YouTube que apoia ele. Rapidamente, esse canal ganha 20 mil, 30 mil inscritos. Esse produtor de conteúdo de direita vai ter mais dinheiro e se transforma em um militante. Nós, produtores de conteúdo da esquerda, tomamos perdido de assessoria de vereador. Imagine conseguir falar com Lula, com Haddad. É muito difícil a gente ter contato com as pessoas do nosso próprio lado.
A segunda coisa é que os partidos e os sindicatos que apoiam os políticos [de esquerda] devem começar a investir e apoiar produtores e veículos independentes. A gente não pode mais ficar contando com a boa vontade do Estadão ou da Globo. Eles têm uma posição política. Se tudo que a gente pode fazer é ficar esperando que falem bem do Lula, está tudo errado. A gente precisa ter uma rede de comunicação que seja capaz de criar uma imunidade a eventuais distorções que a direita promover.
Também precisa promover a ocupação das redes sociais. Não dá para criar discurso apenas para sua base no Twitter. Vamos para o Facebook. O Janones faz muito isso. Outra coisa que acho importante é que os políticos se articulem com gente das comunidades. Assim, você cria uma comunicação com capilaridade, cria uma presença local.
O que as pessoas comuns do campo progressista podem fazer no nosso dia a dia para vencer o bolsonarismo a partir de agora?
A gente adora repetir que tudo é política, mas diz isso para ficar no Twitter ou postando story que ninguém vai ver. Política é estratégia, não é voluntarismo. A política não é você fazer o que você acha legal. A primeira coisa, portanto, é entender estratégia de divulgação e de ocupação. Para isso acontecer, você tem que ter ou relação com algum partido ou com um coletivo – relação com pessoas. E essa estratégia de ocupação e de comunicação não pode ser só reclamar com as pessoas. Vejo isso acontecer com a Marcelle no Twitter. Ela é uma mulher negra, mãe de sete filhos, moradora de favela do Rio de Janeiro e evangélica, que votou no Bolsonaro em 2018. As pessoas, quando descobriram isso, começaram a xingá-la, mas ela não vota mais. Qual a eficácia do discurso político de uma pessoa que está muito mais interessada em xingar outra do que em entender a razão desse voto e mostrar alternativas? A esquerda da internet está muito mais disposta a reagir a última merda que o Bolsonaro falou do que de fato fortalecer o movimento.
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