O paulistano Ricardo Henrique Rao, de 51 anos, ganhou protagonismo ao promover um solitário ato de protesto em julho passado, na Espanha, contra a destrutiva política do governo Bolsonaro para os povos indígenas do Brasil.
Exonerado da Funai em 2020, decisão que ele descreve como “ilegal e persecutória”, Rao interpelou o atual presidente do órgão, Marcelo Xavier, no meio de um auditório durante um evento indígena em Madri, 46 dias após os assassinatos de Bruno Pereira e Dom Phillips.
Aos gritos, ele responsabilizou Xavier pelas mortes. O gesto humilhou o delegado federal – deixou a sala amuado – perante uma plateia internacional e ajudou a propagar a situação brasileira na Europa, gesto que, na lente do governo civil-militar e da militância bolsonarista, é chamado de “globalismo”.
“Estou em dúvida se a Funai tem salvação. Não sei se a metástase é operável. O melhor para o indigenismo brasileiro seria acabar com ela e criar uma outra coisa, a nível ministerial, uma espécie de Ministério dos Povos Indígenas. Deve ser feito um expurgo. Bolsonaro emporcalhou a Funai, virou uma marca podre”, criticou o indigenista em entrevista ao Intercept, no final de agosto.
Dias depois, o candidato à Presidência Luiz Inácio Lula da Silva iria anunciar a proposta da criação da pasta, ideia que já circulava entre os conhecedores da área. A perspectiva de mudança na política da Funai vale, claro, somente em caso de eleição de Lula. Se Bolsonaro for reeleito, a sua antipolítica deve se aprofundar.
Ricardo Rao deixou o Brasil em novembro de 2019, após entregar à Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados um dossiê sobre as ameaças e perseguições que sofreu no Maranhão. Ele se exilou na Noruega, onde ficou até se mudar para Roma em março deste ano, encontrando abrigo na maior ocupação da cidade, gerida por imigrantes da África, da América Latina, da Ásia e por alguns italianos.
Além das ameaças de morte, inclusive de policiais, Rao denunciou perseguições internas do próprio aparato estatal – uma realidade da gestão de Xavier documentada por vários outros servidores – e externas, quase sempre de pistoleiros. Um cenário de empoderamento do crime que encontra espaço no discurso oficial do governo federal.
O estopim para Rao abandonar o país foi o assassinato, no Maranhão, do guardião da floresta Paulo Paulino Guajajara em 1º de novembro de 2019. O governo Bolsonaro não havia nem sequer completado o primeiro ano. Paulo Paulino fiscalizava a terra indígena Araribóia e era parte de um grupo de autoproteção, mais ou menos como o desenvolvido pelo indigenista Bruno Pereira no Amazonas. “O maior risco que corremos é com a infiltração de milicianos nos órgãos do estado”, disse.
Rao concedeu a entrevista na ocupação em que vive há seis meses, um prédio de oito andares que outrora foi sede de um órgão público italiano e que abriga atualmente cerca de 450 pessoas de diversas nacionalidades. De lá, gravou para TVs italianas depoimentos sobre sua trajetória e a política que resultou no assassinato de Bruno Pereira e Dom Phillips e deu entrevistas para veículos brasileiros — em um deles, aparece caminhando pelas ruas da Cidade Eterna como um turista.
Sem receber um salário (na Noruega, Rao ganhava uma contribuição do estado, o que não acontece na Itália, já que tem passaporte italiano e não vive como asilado), afirmou sobreviver com ajuda da mãe, uma servidora aposentada da Funai. Por incentivo dela, fez concurso para a fundação em 2010 e entrou no mesmo ano que Bruno Pereira.
No órgão, Rao atuou no Mato Grosso do Sul, Pará e Maranhão, o que lhe permitiu conhecer as diferentes realidades da Amazônia Legal. No Centro-Oeste, contou, o inimigo é o fazendeiro que quer plantar soja e criar gado. Na Amazônia ocidental, o garimpeiro. Na oriental, os madeireiros.
Entre os colegas “funaieiros”, é conhecido como “lobo solitário”, tendo tido atritos com outros servidores, mas é citado – mesmo por quem não nutre simpatia por ele – como “bem-intencionado”.
Suas críticas à gestão de Marcelo Xavier encontram eco num dos melhores dossiês já feitos sobre a Funai, o “Fundação Anti-indígena – um retrato da Funai sob o governo Bolsonaro”, elaborado por uma organização de servidores da casa fundada em 2017 e batizada de Indigenistas Associados, a INA.
Divulgado em junho, mês dos assassinatos de Bruno e Dom, o balanço cita como uma das tragédias da Funai a “perseguição a servidores de carreira e a sua substituição por profissionais sem experiência” com a política indígena.
As 39 coordenações regionais foram lotadas por 17 militares, três PMs, dois policiais federais e outros seis profissionais sem qualquer vínculo anterior com a administração pública.
“O presidente da Funai, Marcelo Xavier, trocou todos os cargos DAS 4 existentes no órgão, nomeando, também aqui, militares e policiais para grande parte deles. O impacto dessas nomeações na rotina dos servidores que insistiam em suas posições técnicas foi absurdo: retirados de suas atribuições sem acesso a processos nos quais estavam envolvidos, passaram por deslocamento de funções e lotações à revelia, algumas com mudança de cidade”, destaca um trecho do documento.
Em termos mais diretos, Rao considera Xavier um “jagunço” de Nabhan Garcia, que, por sua vez, é apontado como o porta-bandeira da antipolítica indigenista de Bolsonaro, e responde como titular de Assuntos Fundiários do governo federal.
Procurado, Marcelo Xavier não se manifestou. A Funai disse em nota que segue a legislação vigente e informou que a exoneração de Rao “se deu em razão de inabilitação em estágio probatório”, o que o indigenista contesta, alegando que teve cargos de chefia após os três anos de estágio probatório previsto em lei.
Diante de tanta exposição, ele não sabe se voltará a viver no Brasil, nem mesmo se seu candidato sair vitorioso na eleição.
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