Para quem olha do alto, a impressão é de uma serpente se embrenhando na mata. Mas basta se aproximar para visualizar a estrada aberta pelos tratores, ampla o suficiente para a passagem de um caminhão. É a partir dela que os operadores de motosserra entram na floresta para derrubar as espécies mais valiosas, como o ipê e o jatobá, cujos metros cúbicos são vendidos a 3 mil e a 1,5 mil dólares no mercado internacional, respectivamente. Abatidas, as árvores são trazidas até os caminhões pelo skidder, uma máquina com um grande gancho na ponta — perfeito para pinçar e arrastar as enormes toras.
Como cupins abrindo trilhos floresta adentro, os madeireiros saquearam 45 mil caminhões carregados de toras de uma área da União localizada no município de Lábrea, no sul do Amazonas — uma região que se tornou o epicentro do desmatamento da maior floresta tropical do mundo. Colocados um atrás do outro, os veículos formariam uma fila de 450 quilômetros, o equivalente à distância entre São Paulo e Curitiba. Um saque que não aconteceu à revelia das autoridades ambientais, mas sim entre a bênção e o desinteresse de órgãos que deveriam zelar pelo meio ambiente.
O volume retirado da área pública equivale a cinco operações Handroanthus, na qual a Polícia Federal, a PF, fez a maior apreensão de madeira ilegal da história. Em 2020, ano em que a maior quantidade de madeira foi retirada da gleba (200 mil metros cúbicos, 30% do total explorado), o órgão ambiental do Amazonas, o Ipaam, já havia sido alertado das irregularidades nos planos de manejo florestal sustentável da região, os PMFS – documento que detalha quantas e quais espécies de árvores podem ser derrubadas em uma determinada propriedade. A informação estava em uma recomendação do Ministério Público Federal, o MPF, de 2018. Enquanto o Ipaam ignorava as medidas propostas pelo órgão para estancar a sangria, os madeireiros aumentavam a ferida na floresta.
“Nesse meio tempo praticamente se esgotou todo o volume que tinha para ser explorado nos planos de manejo fraudulentos e essa madeira, que é ilegal, entrou no circuito de madeira como se fosse um produto legal“, afirmou Nilo D’Avila, pesquisador sênior do Greenpeace.
Do tamanho de duas cidades de São Paulo, a João Bento é uma área não-destinada, ou gleba — como são chamadas as terras públicas que não foram convertidas em áreas indígenas e quilombolas, unidades de conservação, assentamentos, concessões florestais ou propriedades privadas — e que se tornaram o alvo número um dos grileiros, como mostramos na primeira reportagem da série Ladrões de Floresta.
A estimativa da extração na gleba federal foi feita a partir das cicatrizes deixadas na mata pelos madeireiros, visíveis nas imagens de satélite, e abrange um período de nove anos, de 2013 a 2021. O levantamento foi feito com exclusividade para o Intercept pelo Center for Climate Crime Analysis, o CCCA — uma ONG que atua para responsabilizar judicialmente empresas que colaboram para o aquecimento global — e se baseou em taxas de exploração de madeira por hectare utilizadas em planos de manejo florestal da região. Na prática, o prejuízo pode ser bem maior, já que na extração ilegal o volume explorado pode ser até duas vezes superior àquele autorizado pelos órgãos ambientais.
De mãos dadas com a grilagem de terras, a ação dos madeireiros alimentou uma máquina de desmatamento que já colocou abaixo quase metade dos 295 mil hectares da gleba, que é a última barreira antes de um vasto bloco de áreas protegidas, onde há inclusive registros de indígenas isolados — o mais recente foi descoberto em 2021 na Reserva Extrativista do Médio Purus.
“Esta região abriga os últimos grandes maciços de floresta que temos na Amazônia, porque o resto já está muito fragmentado”, afirmou Antonio Oviedo, pesquisador do Instituto Socioambiental, o ISA.
As árvores saqueadas da gleba abasteceram dezenas de serrarias instaladas ao longo da BR-364, no trecho da rodovia que liga Porto Velho a Rio Branco. A região, conhecida como Ponta do Abunã, já foi alvo de diversas operações do MPF e da PF, que revelaram desde a existência de uma associação de madeireiros ilegais, em 2011 — com direito a CNPJ, estatuto social e pedágio para controlar o acesso à área pública —, até uma vaquinha da propina, em que os madeireiros juntavam dinheiro para subornar fiscais ambientais, em 2019.
No mesmo ano, também foi preso Chaules Pozzebon, dono de mais de 120 madeireiras na região norte e condenado a 99 anos de prisão pelos crimes de organização criminosa e extorsão. Em novembro deste ano, uma nova operação da PF e do Ministério Público de Rondônia desbaratou uma quadrilha que se utilizava de milícia privada para manter as atividades dos grileiros na Ponta do Abunã.
Benção de um, desinteresse do outro
As análises do CCCA mostram que parte dessa madeira saiu da gleba de forma totalmente clandestina. Outra parcela, no entanto, foi extraída com a autorização do Ipaam, em uma fraude cuja origem está na grilagem de terras.
Provar a propriedade do imóvel é um dos pré-requisitos para a aprovação do PMFS. “Se a terra não é sua, você não pode fazer manejo florestal nem nenhuma outra atividade”, esclareceu Alexandre Saraiva, delegado da PF que coordenou a Operação Arquimedes, a maior investigação já realizada no Brasil contra o comércio ilegal de madeira. “Por isso, a grilagem de terras é o primeiro passo”.
Em teoria, nenhuma licença poderia ser emitida na gleba João Bento, área da União situada na faixa de fronteira com o norte da Bolívia, e onde os processos de regularização fundiária não foram concluídos, segundo o Incra. Mesmo assim, o Ipaam emitiu licenças no Amazonas com base em documentos auto declaratórios que não têm validade como registro de terra, como é o caso do Certificado de Cadastro do Imóvel Rural, o CCIR.
Além de emitir licenças em terras griladas, o Ipaam o fez em uma área federal, extrapolando sua competência de órgão ambiental do estado. E esse problema está longe de ser exclusivo da gleba João Bento. Em 2018, uma análise do MPF concluiu que mais da metade dos 11.423 PMFS registrados no Amazonas estavam em áreas de interesse federal: 4.479 estavam sobrepostos a glebas federais; 1.130 sobre assentamentos do Incra; 420 sobre unidades de conservação federais; 116 sobre terras indígenas e 21 sobre áreas quilombolas. “A conduta do Ipaam trouxe nulidades insanáveis aos processos, porque as licenças foram emitidas sobre uma terra que foi roubada. É terra da União”, disse Saraiva.
A constatação das irregularidades levou o MPF a recomendar, ainda em 2018, que o Ipaam tomasse medidas administrativas em relação a todos os planos de manejo em sobreposição a áreas de interesse federal. Mas o órgão só foi agir dois anos depois, no final de 2020, quando a segunda fase da Operação Arquimedes revelou um esquema de pagamento de propina a servidores do Ipaam em troca da liberação dos planos de manejo.
Nesse meio tempo, a exploração explodiu na gleba João Bento, dentro e fora dos planos de manejo aprovados pelo Ipaam. Segundo o Greenpeace, parte dessa madeira foi vendida para a Madeireira Atalaia, de Vista Alegre do Abunã, em Rondônia, e depois exportada para Portugal, Bélgica e França.
“Se o órgão gestor ambiental não dá um recado dizendo que a partir de agora a regra do jogo mudou, o sujeito vai derrubar ainda mais”, lamentou Herbert Dittmar, perito criminal federal da PF.
Com a ajuda do Greenpeace, o Intercept identificou oito PMFS sobrepostos à gleba João Bento, dos quais pelo menos três acabaram suspensos pelo Ipaam entre o final de 2020 e o início de 2021. Procurado, o Ipaam não esclareceu quantas licenças foram suspensas por recomendação do MPF do Amazonas, nem por que demorou tanto tempo para fazê-lo.
Em nota enviada ao Intercept, o MPF afirmou que o Ipaam não cumpriu na íntegra a recomendação de adotar medidas contra as licenças sobrepostas a áreas federais, levando-o a abrir uma ação civil pública contra o órgão ambiental do Amazonas, que segue em tramitação.
Enquanto o órgão ambiental estadual autorizava a retirada ilegal de madeira da gleba João Bento, o órgão federal, responsável por proteger a área, deixava o desmatamento correr solto para depois abrir mão do poder de garantir proteção efetiva ao território. Em 2020, o Ministério do Meio Ambiente desistiu da prerrogativa de destinar a área para uma unidade de conservação em uma reunião da Câmara Técnica de Destinação e Regularização Fundiária de Terras Públicas Federais Rurais, cujo objetivo é justamente destinar essas áreas.
A decisão contraria as orientações do próprio ministério, cujos estudos concluíram que parte da gleba João Bento está em uma área de prioridade extremamente alta para a conservação da Amazônia e onde deveria ser criada uma unidade de conservação de proteção integral — por decreto, o mapa das áreas prioritárias de conservação deveria orientar as decisões do órgão sobre a criação de novas áreas protegidas. Questionado por email, ainda na gestão de Jair Bolsonaro, o ministério não respondeu ao Intercept.
Para trás, os madeireiros deixam uma floresta em pé, mas mutilada pelo corte de espécies inteiras. O corte seletivo, como é chamado, é um crime menos aparente e costuma ser ignorado pela sociedade — apesar de o Brasil já ter capacidade de detectar esse tipo de exploração.
“O que a gente vê na TV normalmente é o corte raso, que é quando está tudo derrubado e queimado. Só que o corte seletivo também é gravíssimo e a população não está enxergando”, alertou Dittmar. “O tamanho da área degradada anualmente na Amazônia brasileira é igual ou maior que o tamanho da área desmatada. E essa floresta vai perdendo biodiversidade e a capacidade de prover serviços ecossistêmicos, como a absorção de carbono e a regulação dos ciclos hídricos”, completou Clarissa Gandour, coordenadora de avaliação de políticas públicas de conservação do Climate Policy Initiative, o CPI, uma organização ligada à PUC-Rio que produz dados para orientar políticas ambientais.
Pressa para faturar
Com menos de seis quilômetros quadrados de área urbana e pouco mais de quatro mil habitantes (segundo o último censo, de 2010), Vista Alegre do Abunã concentra cerca de 15 serrarias. Basta observar imagens feitas por um drone para enxergar os pátios com diversas pilhas de toras, que do alto parecem palitos de fósforos, e os montinhos de fumaça saindo das estufas onde a madeira passa pelo processo de secagem.
Aproximar-se destes estabelecimentos, no entanto, pode criar problemas, como o enfrentado por nossa equipe quando fazíamos imagens da entrada de uma das serrarias. Sem se identificar, uma funcionária começou a gravar a placa do nosso carro com o celular, nos obrigando a deixar a localidade às pressas — possivelmente, em pouco tempo, aquele vídeo estaria no Whatsapp de todos os madeireiros da região.
É neste distrito de Porto Velho, um dos quatro da Ponta do Abunã, que começa o ramal Jequitibá, como é conhecida uma das estradas de terra mais utilizadas pelos madeireiros para acessar a gleba João Bento — em 2011, os empresários chegaram a instalar ali um pedágio para controlar o acesso à área.
O avanço pela via se mostrou um passeio didático e progressivo por diferentes estágios de expropriação do patrimônio público. Próximo à BR-364, onde começa o ramal, já há algumas áreas de cultivo de soja, na borda da gleba federal. Em seguida, vêm vastas fazendas ocupadas por rebanhos bovinos e, depois, imensas áreas recém-desmatadas — algumas com o chão ainda quente da queimada mais recente. Adentrando ainda mais a área da União, já nas proximidades do bloco de unidades de conservação, observamos os túneis típicos da exploração madeireira abertos na mata.
“Esse é o processo clássico do desmatamento na Amazônia”, explicou Heron Martins, coordenador do Laboratório de Análises Geoespaciais do CCCA. “Começa com a exploração madeireira e a degradação florestal, depois o corte raso para a criação de gado e, em regiões com contexto favorável, o cultivo de soja, que empurra as atividades anteriores cada vez mais para dentro da floresta”.
Mas esse passo a passo nem sempre é seguido à risca. Vastas áreas da gleba João Bento foram convertidas diretamente em pasto, sem passar pelo processo da retirada seletiva de madeira. E, assim como em outras partes do bioma, o desmatamento nunca foi tão intenso quanto no governo Bolsonaro: dos 135 mil hectares derrubados na gleba João Bento, 68.911, o que corresponde a 51%, vieram abaixo entre 2019 e 2022. “É impressionante a velocidade de abertura da área”, constatou Martins. O Ibama, responsável pela proteção das áreas federais, não retornou nossos contatos.
A pressa em desmatar, que leva os grileiros a colocarem fogo na maior parte da madeira, está associada à expectativa de lucrar ainda mais com a venda da terra. Afinal, essa é uma das regiões do Brasil onde o hectare mais valorizou nos últimos anos. “Nesses casos, o que importa é assegurar a posse da área para então especular com a terra”, disse Martins.
Para Dittmar, a aptidão da região para a lavoura acentua ainda mais essa corrida dos grileiros. “Como o relevo é plano, as áreas não inundáveis são um convite ao plantio de soja. Esse é um dos motivos pelos quais Lábrea está sendo grilada e devastada”.
A destruição na gleba federal é apenas uma mostra do que acontece na região conhecida como Amacro, que fica na fronteira entre o sul do Amazonas, o norte de Rondônia e o leste do Acre. Dos 15 municípios da Amazônia Legal com maior incremento de derrubadas entre 2020 e 2021, sete estão nesta área. Lábrea, onde fica a gleba João Bento, foi o quarto município com maior aumento na área desmatada em 2021. “O que aconteceu em Lábrea é um desastre ambiental”, lamentou Saraiva.
Esta reportagem faz parte do projeto Ladrões de Floresta, que investiga a grilagem em terras públicas da Amazônia e conta com o apoio da Rainforest Investigations Network, do Pulitzer Center. Confira a primeira e a segunda reportagem da série.
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