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Boipeba: dono da Globo quer construir condomínio de luxo em área federal comprada de empresário acusado de tomar terras

Terreno público foi vendido pelo ex-prefeito de Valença e registrado indevidamente, diz MPF. Empreendimento de José Roberto Marinho e Armínio Fraga foi autorizado pelo governo da Bahia em meio à disputa judicial.

Construção luxuosa vai ser levantada dentro de uma Área de Proteção Ambiental e próxima de uma comunidade pesqueira tradicional.

O empreendimento Fazenda Ponta dos Castelhanos, que tem como um dos sócios José Roberto Marinho, dono da Rede Globo, não tem a posse definitiva do terreno para construir em área federal na Ilha de Boipeba, no sul da Bahia. O terreno foi comprado das mãos de um empresário, ex-prefeito local, que responde a um processo na justiça baiana por tomada de terra. Mas nada disso impediu que, no dia 7 de março deste ano, o órgão de meio ambiente do estado, o Inema, atropelasse a competência da União e concedesse uma licença autorizando a instalação do projeto, além da supressão da vegetação nativa para início das obras.

A construção luxuosa vai ser levantada dentro de uma Área de Proteção Ambiental, uma APA, e próxima de uma comunidade pesqueira tradicional chamada Cova da Onça. Na região, existe ainda a comunidade quilombola Monte Alegre, também ameaçada com a construção gigantesca que está sendo projetada. Ao todo, a fazenda possui 1.651 hectares de extensão, o que corresponde a quase 20% de toda ilha.

Mapa Boipeba
Mapa mostra o tamanho do empreendimento na ilha.

No planejamento do condomínio constam duas pousadas de 25 quartos, outras 25 casas, pista de pouso, uma marina de médio porte para desembarque de lanchas e motos aquáticas, além de um campo de golfe de 370 hectares – este último ponto não foi aprovado pelo Inema por não ter sido devidamente apresentado na primeira fase de apreciação do projeto.

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A empresa à frente é a Mangaba Cultivo de Coco LTDA – que, além do herdeiro de Roberto Marinho, tem como sócio Armínio Fraga, ex-presidente do Banco Central na gestão de Fernando Henrique Cardoso, entre 1999 a 2002. Marinho possui 20% da empresa, mesma cota que Clóvis Macedo, Marcelo Stallone e a empresa Filadélfia Empreendimentos Imobiliários, de propriedade de Antonio Carlos de Freitas Valle. A companhia Fraga I, sediada nos Estados Unidos e do  ex-homem forte de FHC, detém 12%. O empresário Arthur Baer Bahia completa a formação societária, com 8%.

Tomada de terra

Em 2008, os sócios da Mangaba compraram a inscrição de ocupação da fazenda das mãos de Ramiro José Campelo de Queiroz, ex-prefeito da cidade de Valença, vizinha a Boipeba. O valor negociado foi R$ 20 milhões. Queiroz é também empresário e dono de uma cadeia de lojas de eletrodomésticos e móveis espalhados em várias cidades da Bahia, chamada Lojas Guaibim.

O Intercept teve acesso ao documento de compra e venda entre Queiroz e a Mangaba, registrada em cartório. Nele, ficou estabelecido que o final do pagamento, de R$ 10 milhões, aconteceria sob duas condicionantes: a primeira seria que Ramiro Queiroz retirasse cerca de 50 posseiros (pequenos produtores) que ocupavam os 1.651 hectares da Fazenda Ponta dos Castelhanos, garantindo que assinassem a cessão dos pequenos lotes que ocupavam.

A outra seria que a Secretaria de Patrimônio da União, a SPU, concedesse o aforamento da área – instrumento que garante o direito real de possuir uma propriedade federal, mediante o pagamento anual à União equivalente a 0,6% do valor da área. 

O regime de propriedade nas ilhas obedece a critérios muito específicos. A Constituição de 1988 manteve um princípio estabelecido em outras cartas magnas do Brasil: a de que ilhas oceânicas e costeiras são bens da União, excluídas as que pertencem a particulares ou aquelas que tenham sede em municípios. Boipeba pertence à Cairu, mas não abriga a sede da cidade. Ou seja, a União é detentora de todas as áreas naquele território, ainda que conceda a autorização de uso por meio do registro de ocupação.

A Constituição determina que áreas em ilhas, quando não têm a sede da cidade, pertencem à União – e têm um regime específico de propriedade. É o caso de Boipeba. Foto: Cleber Sandes/Folhapress

Até o ano passado, a principal documentação dos sócios da Mangaba sobre a Ponta dos Castelhanos era a inscrição de ocupação do Registro Imobiliário Patrimonial.

Ouvimos advogados especialistas em direito imobiliário, que explicaram que a inscrição de ocupação é um ato precário, temporário e revogável a qualquer momento. É uma espécie de autorização de uso da área federal. O que a Mangaba pretende com o aforamento é garantir uma concessão de terra, dando-lhe uma relação jurídica mais sólida.

Procuramos a empresa de João Roberto Marinho, Armínio Fraga e demais sócios para saber quais documentos garantem a posse da Fazenda Ponte dos Castelhanos. Em nota, a Mangaba confirmou  que adquiriu a ocupação do antigo titular em 2008, e, que além disso, “há a adequada Certidão de Autorização (CAT), documento expedido pela própria SPU”.

Embora a Mangaba tente fazer crer que o CAT seja outro documento que garanta a propriedade, essa certidão é um meio para transferir a inscrição de ocupação entre terceiros para o devido controle da União. Nesse caso, apenas ano passado – mesmo após já ter dado entrada no processo de licenciamento ambiental – a empresa conseguiu que um dos seus sócios (Marcelo Stallone) assumisse a titularidade no precário documento de ocupação, no lugar do antigo proprietário Ramiro Queiroz. 

O terreno vendido ao dono da Globo não é o único com histórico controverso questionável ligado a Ramiro Queiroz. Ele responde a um processo na justiça baiana para reintegração de posse de um terreno de 400 hectares, no município onde foi prefeito. Na ação, é acusado por uma viúva de 101 anos de se apropriar da documentação dela com “a falsa promessa” de compra. 

Queiroz também teria se negado “a entregar a documentação”, bem como impedir que a senhora vendesse o terreno para terceiros.  Também consta no processo que ele vem comprando todas as áreas vizinhas existentes no entorno das terras da viúva, e que ela, praticamente, “se encontra no meio das terras pertencentes ao réu”. 

‘O que a gente pode deduzir é que os empresários da Mangaba não pagaram não porque não têm dinheiro.’

Nós localizamos Ramiro Queiroz para falar sobre essa suspeita de tomada de terra. Ele marcou uma entrevista por telefone para o dia seguinte ao primeiro contato, mas depois não atendeu às inúmeras ligações feitas no horário combinado.

O Intercept levantou mais de 20 processos em que Ramiro Queiroz aparece citado no Tribunal de Justiça da Bahia. Ele é réu em ação por improbidade administrativa e dano ao erário público, na época em que foi prefeito de Valença.

Em 2018, Queiroz ingressou com uma ação de cobrança contra o dono da Rede Globo e os outros sócios da Mangaba. O ex-prefeito alegou ter conseguido a retirada dos posseiros da área, conforme combinado, e anexou um documento constando a assinatura de 53 deles, cedendo os direitos da terra. Os réus, no entanto, citaram a chegada de novos posseiros e a falta de finalização da escritura no terreno para não realizar o depósito final.

O juiz na Bahia reconheceu a incompetência para julgar o caso e remeteu o processo para o Rio de Janeiro, residência dos sócios da Mangaba. O processo ainda aguarda julgamento.

Em nota, a empresa reconheceu que “existem pendências pactuadas a serem cumpridas pelo antigo proprietário” e que, tão logo sejam resolvidas “e o processo solucionado pela justiça”, o valor será  “devidamente quitado”.

O advogado Leonardo Fiuza, que representa a Associação dos Advogados dos Trabalhadores Rurais da Bahia, tem outro entendimento sobre essa disputa judicial. “O que a gente pode deduzir é que os empresários da Mangaba não pagaram não porque não têm dinheiro – afinal, eles tocam negócios muito sólidos e respeitados no Brasil. Eles, na verdade, não enxergam garantias nesse terreno e por isso temem fazer o pagamento em algo ainda incerto”, analisou.

‘O que o Inema não entendeu?’

Em 2019, o Ministério Público Federal da Bahia já havia recomendado ao Inema “interromper o processo de licenciamento ambiental do empreendimento imobiliário Ponta dos Castelhanos” por estar inscrito em regime precário de ocupação – o que não foi obedecido.

Segundo o órgão, o licenciamento só poderia ser feito depois de concluída a regularização fundiária dos territórios das comunidades quilombolas e tradicionais e, a partir daí, pudesse se decidir “sobre interesse em realizar, ou não, o aforamento da área remanescente”.

Trecho da recomendação do Ministério Público Federal da Bahia.

Nesse mesmo documento, o MPF cita que, em janeiro de 2014, a escritura da fazenda Ponta dos Castelhanos foi registrada, “indevidamente”, no Cartório de Registro de Imóvel de Valença – cidade da qual Ramiro Queiroz foi prefeito, embora o terreno fique na cidade de Cairu – e sem comunicar os órgão federais que isso teria acontecido. “O aforamento do imóvel não foi concedido, e, mesmo assim, a escritura foi registrada […], no cartório de registro de Imóveis de Valença/BA, sendo registrado que ‘causa espanto que o CRI de Valença tenha aceito a transação sem comunicar a SPU’”, diz o MPF no documento.

Outra possível manobra que o documento do MPF expôs foi que, a partir de uma instrução normativa da Secretaria de Patrimônio da União, há a proibição da inscrição de ocupação de terrenos e imóveis da União sem que seja comprovado seu efetivo aproveitamento. Em imóveis rurais, como é o caso da Fazenda Ponta dos Castelhanos, isso será caracterizado quando houver exploração de culturas permanentes ou temporárias, que deverão atingir 80% da área aproveitável. O órgão concluiu que a empresa Mangaba Cultivo de Coco LTDA não “realizou o aproveitamento do imóvel” e que, apesar de possuir em seu contrato social o cultivo de coco, “essa nunca foi a verdadeira finalidade da empresa, criada para realizar o empreendimento imobiliário em questão”.

Em nota, a empresa Mangaba disse que, quando a fazenda foi adquirida, há 15 anos, a principal atividade era o cultivo de coco. E que, no processo de licenciamento, o Inema não exige “das pessoas jurídicas, que o contrato social apresentado pelo interessado determine, de forma específica, a atividade que se pretende desenvolver”.

No texto, o MPF ainda citou a Lei 9.636/98, que proíbe a ocupação de imóveis que estejam concorrendo ou tenham concorrido para comprometer a integridade de áreas de uso comum do povo, entre elas reservas indígenas e áreas ocupadas por remanescentes de quilombos.

Governo da Bahia facilitou

Mesmo nesse cenário de incerteza jurídica, com briga entre compradores e vendedores, além da falta de documentos que deem garantias explícitas para que o empreendimento seja construído em área federal, o governo da Bahia concedeu a licença para a supressão de 2,9 hectares de vegetação nativa de Mata Atlântica – área que contempla restingas, corais, manguezais e árvores frutíferas.

O Inema se justificou dizendo que o processo tramita há 11 anos e foi “licenciado com a mais perfeita lisura e transparência dos atos adotados pelo Instituto, de acordo com a lei, seguindo o código florestal, atendendo a Lei da Mata Atlântica, os marcos legais e as resoluções federais e estaduais”.

‘Esse empreendimento vai matar física e existencialmente as comunidades tradicionais e quilombolas’

Em nota publicada em seu site, o órgão ainda defendeu abertamente o empreendimento, afirmando que o “o projeto apresenta uma nova matriz de desenvolvimento do turismo na região, igualmente importante para a geração de renda e melhoria da qualidade de vida da população, mas com baixíssimo impacto ambiental”. E concluiu que o projeto adota um “conceito de desenvolvimento sustentável”.

Em entrevista coletiva feita assim que a decisão foi publicada no Diário Oficial, o governador recém-empossado tinha minimizado a liberação. “Daquele terreno todo, o que está liberado para supressão da vegetação é apenas 2%. Está dentro da lei, está dentro do padrão”, disse.

Miguel Accioly, biólogo e professor da Universidade Federal da Bahia, no entanto, enumerou uma série de impactos negativos, considerados por ele irreversíveis, como o uso da pista de pouso e o consequente barulho das aeronaves, após a obra ser finalizada. “Isso vai gerar um transtorno para as espécies que vivem naquele ambiente e não estão acostumadas com esse movimento aéreo. Outra questão é a construção da marina. Vai atrair muita embarcação e, por ser uma área de baixa profundidade, vai revolver a areia, matando a vida marinha que ali se desenvolve”.

No dia 14 de março deste ano, o MPF enviou uma carta ao governador Jerônimo Rodrigues, do PT, pedindo a revogação da licença concedida pelo Inema. No documento, é explícita a citação ao órgão ambiental do estado. “O que o Inema não entendeu? Ou não quer entender? O caso envolve área pública federal”.

Espremidos entre o condomínio e o mar

As comunidades Cova da Onça e Monte Alegre estão em áreas próximas à fazenda Ponta dos Castelhanos. E, portanto, são as que devem ser mais diretamente afetadas caso as obras sejam concluídas.

“A gente chegou à compreensão de que eles querem tirar a gente daqui. Ninguém paga milhões em um lote de terreno para ter como vizinhos nós, pretos e pretas, pescadores e catadores de frutas”, disse Raimundo Esmeraldino, mais conhecido como Raimundo Siri.

Siri tem 60 anos e nasceu e cresceu na Cova da Onça, assim como seus pais e avós. Ele contou que, pela localização geográfica da comunidade, vão ficar espremidos entre o empreendimento e o mar, sem áreas de locomoção dentro da ilha. “Eles dizem que vão manter determinados espaços para a gente se deslocar, mas quem acredita? De cara, já vamos perder acesso ao morro, onde extraímos mangabas e cajá para nosso consumo e venda. A gente tem certeza de que nossa vida vai piorar muito quando o condomínio for inaugurado”, projetou.

Comunidade vai ficar espremida entre o empreendimento e o mar, sem áreas de locomoção dentro da ilha, dizem moradores.

A Cova da Onça tem cerca de 700 habitantes. A maioria vive da pesca e do extrativismo vegetal. Já a Vila Monte Alegre é uma área remanescente de quilombos, certificada em 2006 pela Fundação Palmares. Atualmente, lá vivem cerca de 120 pessoas, que retiram sustento da pesca e da mariscagem. 

A empresa de João Roberto Marinho, a Mangaba, disse que, entre as condicionantes previstas pelo Inema, está a de que dois dos 69 lotes sejam destinados à comunidade Cova da Onça para a construção de um centro de cultura e capacitação, um campo de futebol e uma estação de tratamento de resíduos. 

A empresa justificou ainda que a comunidade terá ganhos imediatos, com “um programa de capacitação e na geração de empregos diretos para uma parte da população que, ao longo dos anos, permanece em situação vulnerável, pressionando jovens a saírem da comunidade para trabalhar em outras localidades”.

Esse mesmo argumento de que o empreendimento é um vetor de desenvolvimento sustentável tem sido veiculado na imprensa baiana. O Jornal A Tarde, segundo em circulação no estado, dedicou a manchete de domingo para defender o projeto e dizer que “informações inverídicas têm circulado sobre a Fazenda Ponte dos Castelhanos”.

“Esse empreendimento vai matar física e existencialmente as comunidades tradicionais e quilombolas, porque eles ou vão ter que sair de lá ou vão deixar de viver como sempre viveram, abrindo mão de suas tradições e costumes”, argumentou o professor Accioly.

Para tentar evitar que o empreendimento seja construído, desde que a licença do Inema foi autorizada, os moradores criaram um abaixo-assinado online, com textos em português e inglês, que já tem mais de 85 mil assinaturas. Também abriram uma conta no Instagram para expor o que tem acontecido na ilha. O perfil já tem mais de 20  mil seguidores.

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