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Entrevista: ‘As escolas com a segurança armada viram alvo’, diz pesquisadora

Uma das autoras do documento sobre violência nas escolas entregue ao governo Lula, pesquisadora Catarina Santos defende que espaços de repressão pioram a violência e que o extremismo deve ser combatido com liberdade e acolhimento.

A pesquisadora Catarina A. Santos, da UnB.

Lula ainda nem tinha tomado posse quando um grupo de pesquisadores entregou à equipe de transição do governo o relatório “O extremismo de direita entre adolescentes e jovens no Brasil: ataques às escolas e alternativas para a ação governamental”. Poucas pessoas imaginavam a sequência de ataques que aconteceria poucos meses depois em escolas e creches no Brasil, mas aquele documento já fazia um diagnóstico preciso do problema e mostrava o que precisaria ser feito para combatê-lo. “Ataques violentos às escolas estão relacionado com um contexto social imerso na escalada do ultraconservadorismo e extremismo de direita”, diz o texto.

O relatório também aponta que crianças e adolescentes são cooptados por grupos extremistas por meio de interações virtuais em aplicativos de mensagem, jogos, fóruns de discussão e redes sociais. Combater o extremismo de direita, portanto, é a forma mais eficaz de evitar novos ataques. Revogar o projeto tecnocrático do novo ensino médio e banir a militarização das escolas também seria importante – mas o documento, ao menos no primeiro momento, foi ignorado.

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Para falar sobre a necessidade de um modelo de ensino que acolha e trabalhe as frustrações de crianças e adolescentes e os proteja de serem cooptados por grupos extremistas de direita, entrevistei Catarina de Almeida Santos, uma das pesquisadoras que elaborou o relatório entregue ao governo de transição. Ela é doutora em Educação pela Universidade de São Paulo, uma das coordenadoras da Rede Nacional de Pesquisa sobre Militarização da Educação e integrante da Rede da Campanha Nacional Pelo Direito à Educação. Para Santos, os ataques são alimentados por xenofobia, racismo e misoginia. Por isso, reverter essa situação passa uma educação que desnaturalize as discriminações do diverso. 

Santos falou também dos aspectos ultraliberais do novo ensino médio e do que chama de  “encarceramento do sujeito” promovido pelas escolas militarizadas; explicou por que seguranças armados e detectores de metais podem agravar o problema e avaliou mal a condução do problema por parte do Ministério da Educação.

Confira na íntegra: 

Intercept – Você defende a revogação imediata no novo ensino médio e o banimento das escolas militarizadas. De que maneira esses dois modelos de educação se relacionam com a onda de ataques às escolas?

Catarina Santos – A gente precisa entender qual é o contexto em que os ataques acontecem. Isso tem a ver com os extremismos de direita, formados por grupos de supremacistas brancos e alimentados por questões como xenofobia, racismo, misoginia, enfim, pela discriminação do que é diverso. 

A educação contra a barbárie não será feita por um currículo voltado para métrica. A reforma do ensino médio tirou dos processos formativos as áreas fundantes de estudo, de debate e de desconstrução dessa barbárie. Tirou filosofia, história, sociologia, arte. Essa pasteurização do processo de formação vai fazer com que a escola não debata ou não estude os temas que combatem o extremismo. 

A escola é parte da solução do problema, porque ela é frequentada e construída pelos sujeitos da sociedade. Portanto, se as violências estão na sociedade, elas vão estar na escola também. Reverter essa situação passa uma educação que desnaturalize as discriminações. Inclusive na escola privada, mas sobretudo na escola pública, as múltiplas diferenças estão presentes. Se desde muito cedo nós aprendemos a respeitar, a conviver e a entender que as diferenças nos constituem, isso é fundamental para o desmonte dos extremismos. 

O mesmo vale para as escolas militarizadas? 

Elas têm algumas nuances. Enquanto a desconstrução dos extremismos tem a ver com o diálogo, com relações horizontais de debate e respeito ao diverso, as escolas militarizadas não seguem os princípios do estado, e sim a ideologia e os interesses dos militares. São pautadas na hierarquia, na obediência às regras vindas de cima e no cerceamento do diálogo e do diverso – elas uniformizam os comportamentos. Lá não se discute regras, se obedece. 

‘A reforma do ensino médio tirou dos processos formativos as áreas fundantes de estudo, de debate e de desconstrução dessa barbárie’.

Além disso, nas escolas militarizadas só fica quem se adequa ao projeto e aos interesses das corporações. É outra forma de funcionamento que não tem os mesmos princípios educativos essenciais estabelecidos na constituição e ratificados na Lei Diretrizes e Bases para construir e respeitar a diversidade. Elas têm até regimento diferente das demais. escolas da rede. Militarizar as escolas públicas, portanto, é a destruição do conceito de escola pública. 

Qualquer currículo ou qualquer proposta escolar que limite a formação do sujeito vai contribuir direta ou indiretamente para o extremismo. A militarização das escolas é um encarceramento do sujeito. E o extremismo é combatido com o inverso, com práticas mais livres, com sujeito se reconhecendo e sendo acolhido.

O Novo Ensino Médio veio como uma resposta aos anseios de uma educação mais tecnocrática, voltada ao mercado, que estimule o ‘empreendedorismo’ e outros valores neoliberais. Alguns pesquisadores têm relacionado esse tipo de ensino à ascensão de um pensamento de extrema direita. Você também compartilha essa visão? 

Eu diria que a base do novo ensino médio vai de neoliberal para ultraneoliberal. Tudo aquilo que ele diz querer alcançar faz parte dos engodos do neoliberalismo. Essa coisa do empreendedorismo de si mesmo, que cada um faz seu percurso, que eles são individuais, essa ideia da meritocracia, é engodo do liberalismo pela teoria e pela prática. É você vender uma ideia que não se concretizará, porque o que se ensina nesse currículo não traz capacidade de formação sequer para a lógica do empreendedorismo, se isso fosse possível. 

Nós vivemos em sociedade, nossa convivência depende de convivermos. O artigo 205 da Constituição é genial. Ele diz que a educação tem a finalidade de desenvolver plenamente o sujeito. Isso significa garantir as potencialidades e as individualidade de cada um, mas não sobrepondo os desejos individuais aos interesses coletivos, e sim o contrário. A vivência em sociedade significa respeitar os diversos e conviver coletivamente.

O novo ensino médio está na base dos que entendem que a escola é uma empresa. Essa não é uma lógica capaz de se contrapor a tudo que estamos vivenciando, que é fruto exatamente dessa lógica neoliberal. É fruto dessa perspectiva mercadológica de cada um cuidar de si. 

Se o novo ensino médio não é bom, voltar ao antigo seria uma solução ou o que precisamos é de algo completamente novo? 

O velho ensino médio é melhor do que o novo, isso nem se discute. O ensino médio anterior estava fazendo muitos estudantes avançarem para entrar nas universidades públicas, coisa que esse novo definitivamente não vai fazer.

Isso não significa que a gente esteja querendo voltar para o velho. A gente precisa discutir um ensino médio que seja melhor do que o anterior, não pior. Quando houve as ocupações pelos estudantes nas escolas de ponta a ponta desse país, eles diziam que a gente precisava reformar o ensino médio, mas debatendo com os estudantes e os professores. Não era para ser uma reforma feita nos gabinetes. Ninguém queria tirar disciplinas de história, geografia e sociologia. O debate era sobre como trabalhar todos esses conhecimentos de uma forma ressignificada e que ampliasse a formação. 

Também é preciso garantir infraestrutura e condições. Não adianta só fazer um lindo currículo em escolas onde não é possível implementá-lo. Nem esse novo ensino médio consegue ser implementado. O debate é estrutural. 

Secundaristas fecham a Avenida 9 de Julho em São Paulo, em 2015.
Secundaristas fecham a Avenida 9 de Julho em São Paulo, em 2015.

Nos últimos anos, a educação e os professores estiveram sob ataque, com o fomento da ideia de que professores não podiam se manifestar sobre política, ou que a educação tinha um suposto viés de esquerda. Você acha que isso se relaciona de alguma forma com essa atual onda de ataques?

Essa lógica de que o professor não é um sujeito político não existe. Nós precisamos ter posições contrárias à opressão, porque estamos fazendo processo de formação humana para uma sociedade que caiba a todas as pessoas.

O ataque às escolas traz muito da misoginia por parte dos grupos extremistas, porque elas são espaços feitos sobretudo por mulheres. Então, todos esses discursos de ódio, de não poder debater ou essa invenção da ideologia de gênero, é o caldo em que o extremismo cresce no mundo. 

O ataque às escolas é consequência de tudo isso que nós vivemos. Me entristece que as pessoas estão sempre querendo atuar na consequência, no sentido de encarcerar mais ainda as escolas, de torná-las espaço de repressão.

Colocar seguranças armados, aumentar o policiamento ao redor das escolas e revistar estudantes iria agravar o problema?

Se o fomento de tudo é o extremismo, a gente precisa desenvolver as ações que o combatam. A escola cerceada, vigiada, não produz menos extremismo, produz mais violência. Se você colocar detector de metal em uma escola, o adolescente pode não levar nada, mas isso não tira dele a vontade de levar alguma coisa e de agir na primeira oportunidade que tiver. Ele pode pular o muro, pode ir para o ônibus da escola ou pegar um estudante no caminho, pode atacar no shopping.

‘Espaços de repressão tendem a produzir mais repressão e violência. O lugar mais vigiado que nós temos são as prisões’.

Os adolescentes que promovem esses ataques querem confronto. A glorificação desses grupos extremistas é matar a maior quantidade de gente, confrontar com a polícia e morrer no confronto. As escolas com a segurança armada viram alvo. 

Além disso, espaços de repressão tendem a produzir mais repressão e violência. O lugar mais vigiado que nós temos são as prisões. E elas são espaços de produção de mais violência, exatamente porque não são estruturadas para ressocializar, mas para animalizar. 

Que tipo de adolescente é o alvo de cooptação?

São adolescentes que têm uma compreensão de não pertencimento na sociedade e acabam encontrando apoio nesses grupos extremistas. A partir disso, são incentivados a atacar as escolas, onde geralmente tiveram experiências de frustrações. Mas são frustrações a partir de uma lógica invertida – a do macho que não pode ser contrariado ou a do individualismo, de que seu desejo precisa ser atendido.

Não estou dizendo que a gente não deva olhar para esses elementos dentro da escola e ignorar esses sentimentos. Mas a sociedade e a escola precisam trabalhar essa questão de que a frustração faz parte. Todo mundo tem e precisamos saber lidar com elas. Em casa, isso também precisa ser construído. 

Os grupos extremistas não acolhem os estudantes para resolver a questão das frustrações, mas para usá-la, incentivando os ataques. A escola precisa acolher em outro sentido. Seu papel é construir uma lógica a partir do princípio de convivência social. E aí depende da gente ter infraestrutura e profissionais que pensem projetos de integração que trabalhem esses elementos.  

VIOLÊNCIA-ESCOLA-SP
Policiais em frente à escola no bairro da Mooca, em São Paulo, em dia de supostas ameaças de ataques.

Fala-se muito no bullying como um motivador dos ataques às escolas. Isso faz sentido?

O que é o bullying senão a prática da violência a partir de um padrão estabelecido? Ele é elemento de uma sociedade padronizada. Quem está fora desse padrão vai sofrer a violência sistemática. 

A preocupação com a chamada deepweb ainda é justificável ou essa cooptação agora já é feita na superfície da internet? 

Hoje, esses grupos estão escancarados nas redes abertas. Os perfis estão funcionando no Twitter, TikTok, Facebook, Instagram, em diversas espaços em que crianças e adolescentes estão o tempo inteiro.

Sempre que há um ataque às escolas, se fala em proibir jogos violentos. Considerando que jogos online como Roblox, Fortnite, Minecraft são um dos métodos utilizados para a cooptação, proibi-los seria eficaz?

É uma compreensão completamente equivocada que os jogos em si seriam a grande questão. O que falta é o controle dessas plataformas para que grupos extremistas não entrem nas comunidades de jogos para cooptar estudantes. Está faltando um processo de regulamentação desses espaços online.

Crianças e adolescentes não vão deixar de jogar e nem esse é o grande problema. A questão é como você protege esses espaços para que eles só tenham acesso àquilo para o qual o espaço foi criado. E tem que saber quais jogos são colocados e para qual faixa etária. 

‘Quando você monetiza grupos que disseminam discurso de violência, de racismo e misoginia, você está alimentando’.

É preciso também proibir a monetização de conteúdos impróprios para as redes sociais em qualquer idade. Aquilo que fere direitos fundamentais e direitos humanos não tem que ser acessado por ninguém, não pode ser veiculado. No entanto, há uma desregulamentação completa do processo.

Além de não ser proibido, esse tipo de conteúdo termina sendo monetizado. Os canais de ódio, com vários inscritos, deveriam ser banidos. Aquilo que é para destruição humana não pode estar circulando nas redes. 

Que comportamentos dos adolescentes podem servir de alerta para professores e familiares? E o que eles podem fazer depois de identificá-los?

O que a gente tem acompanhado nos estudos é que não existe um perfil. São muitos elementos, não dá para você fazer uma lista ou dar uma receita. A questão é observar se o adolescente mudou o comportamento. O que ele está acessando, o que está lendo? Precisa ver o que ele está acompanhado nas redes, com quem está conversando. Isso é possível fazer, mas é apenas parte do processo. A gente sabe que muitas famílias não vão conseguir, porque saem para trabalhar de manhã e voltam à noite. Quem pode se esforçar, é importantíssimo acompanhar esse comportamento. 

Nas escolas vale a mesma questão. Mas daí a importância de ter professores, orientadores, coordenadores, assistentes sociais e psicólogos em quantidade suficiente. É humanamente impossível um professor ou uma professora com turma 50 alunos identificar quem mudou de comportamento. Não estou dizendo que a escola não tem que exercer esse papel. Ela foi criada para isso, mas precisa ter condições de ser escola, não um depósito de gente. 

Que tipo de punição poderia ser aplicada às lideranças dos grupos extremistas responsáveis pelo recrutamento e instrumentalização dos jovens? 

A gente precisa de identificação e punição no rigor da lei e do banimento das pessoas que fomentam e que financiam. E as redes sociais fazem parte disso. Quando você monetiza grupos que disseminam discurso de violência, de racismo e misoginia, você está alimentando. A punição tem que ir nessa cadeia produtiva como um todo.

Como você avalia a cobertura da mídia dos casos recentes? 

Felizmente, pelo menos as grandes redações estão melhorando o comportamento e aprendendo algumas coisas, embora ainda dê umas escorregadas. Essa prática que vocês têm de dar uma notícia e rememorar o que aconteceu antes, quando se trata de ataques às escolas, é uma tragédia. Estou cada vez mais convencida de que ataques às escolas deve seguir a mesma lógica de cobertura de suicídio. Não deve cobrir fazendo ao vivo e espetacularizando.

Só que a mídia hoje não são só as grandes redações. Vocês têm o papel de pressionar o poder público para monitorar as redes, denunciando aquelas que mantêm perfis de grupos extremistas. A mídia tem um papel fundamental no combate ao que está fomentando os ataques, investigando e combatendo os perfis que disseminam essas coisas nas redes. 

Como você avalia a condução do Governo Federal em relação aos ataques recentes às escolas? O relatório com análise do problema e sugestões para enfrentá-lo, que você ajudou a construir, tem sido considerado?

Por óbvio, ele não foi considerado no primeiro momento, porque se tivesse sido a gente teria evitado esse caos que está aí e tomado providências. Agora, tem uma movimentação de montar grupos, mas a gente vê menos o Ministério da Educação e mais outros ministérios olhando para o relatório, pegando as coisas que a gente indicou e pautando esse debate.

Quando a gente está falando de ataque às escolas, a educação deveria demandar para as outras áreas ajudarem, mas sem ocupar seu espaço. O que área de segurança vai fazer para ajudar? Como nós vamos atuar em conjunto, a partir das demandas educativas. Não era o Ministério da Justiça que deveria dizer o que fazer. Poderia atuar junto, mas a Educação que deveria pautar.

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