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Menos de 4% das meninas de 10 a 14 anos grávidas por estupro têm acesso ao aborto legal

Levantamento inédito mostra que, entre 2015 e 2020, mais de 9 mil meninas estupradas engravidaram no Brasil, mas só 362 conseguiram o direito ao aborto.

Foto de banner em protesto sobre aborto com as palavras "criança não é mãe e estuprador não é pai" pintadas.

Mais de 132 mil meninas de 10 a 14 anos foram estupradas no Brasil entre 2015 e 2020. Foto: Giorgia Prates/Brasil de Fato

Este texto foi publicado originalmente na newsletter do Intercept. Assine. É de graça, todos os sábados, na sua caixa de e-mails.

Um levantamento inédito do Intercept revela a situação desesperadora das meninas de 10 a 14 anos vítimas de estupro: entre 2015 e 2020, só 3,9% tiveram acesso ao aborto legal. 

Ao todo, foram 362 procedimentos em crianças e adolescentes frente a mais de 132 mil estupros nessa faixa etária. A estimativa é de que aproximadamente 9,2 mil deles tenham resultado em gravidez – os números são explicados ao final.

Vivemos uma guerra ao aborto legal, e ela impacta principalmente crianças e adolescentes, 70% das vítimas de estupro. O STF se prepara para julgar a descriminalização total do aborto até a 12ª semana de gestação. Mas, no momento, o procedimento é permitido pela lei em casos de estupro ou risco de vida da mãe – no caso de meninas até 13 anos, os dois critérios são preenchidos – e o STF se prepara para votar Mas, não raro, como aconteceu nos casos das meninas de Santa Catarina e do Piauí, os hospitais se recusam a fazer o abortamento alegando risco à vida da gestante. Mas a realidade é a seguinte: o aborto legal é extremamente seguro. 

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Nos Estados Unidos, parir é 65,9 vezes mais perigoso para uma mulher do que abortar – e isso porque a maioria das adultas têm corpos maduros para levar uma gestação a termo, ao contrário de crianças. Mesmo a remoção de um dente pode gerar o dobro de complicações que um aborto. E gestar no Brasil é ainda mais arriscado. Em 2021, tivemos 107 mortes maternas a cada 100 mil nascimentos. A taxa foi de 32,9 entre as mães estadunidenses.

Se é por falta de informação ou por razões morais que o procedimento é negado por médicos a crianças estupradas, só podemos especular. Mas é obrigação do serviço realizar o aborto, bastando o consentimento. Se houver impedimentos técnicos, o estabelecimento deve encaminhar a paciente a um serviço capaz de fazer o abortamento. 

Ao fim, os médicos usam uma cartada para defletir a responsabilidade pela recusa que não podem dar: exigem uma autorização do Judiciário, o que não é exigido pela lei. Os familiares dessas meninas podem denunciar a má conduta dos médicos no Conselho Regional de Medicina, pela internet. Para encontrar o formulário, basta jogar no Google os termos “CRM”, “denúncia” e a sigla de seu estado.

Contudo, a lentidão dos processos desanima, em especial por prolongar a gravidez, cujo avanço vira trunfo daqueles que querem forçar a menina a parir. E, mesmo quando são instauradas sindicâncias em casos como o estupro de pacientes por profissionais de saúde, os conselhos costumam ser omissos, mais preocupados em lustrar a imagem de seus membros do que em corrigir condutas inapropriadas.

Aproveito a saideira para jogar os holofotes sobre mais um agente: o governo federal. Após quatro anos nas trevas, é hora de o Executivo proteger nossas crianças. Não dos monstros fantasiosos de Damares Alves, mas da violência muito real das instituições. 

Diante da cobertura patética do aborto legal – que não é de hoje – pergunto: e aí? O que o Ministério da Saúde de Nísia Trindade e o Ministério das Mulheres de Aparecida Gonçalves vão fazer?

Em nota, a pasta de Trindade afirmou que “proteger meninas e mulheres” e “assegurar o atendimento humanizado”, especialmente em casos de violência sexual, é prioridade desta gestão. Por isso, o ministério está revisando portarias e normas relacionadas ao aborto e notas técnicas e manuais voltados aos profissionais de saúde, além de “implementar protocolos de atendimento que evitem a estigmatização nos casos de abortamento”.

Já o Ministério das Mulheres disse estar em diálogo com a Saúde para garantir o atendimento a essas vítimas e trabalhando para retomar o programa Mulher Viver sem Violência, que tem essa garantia como um ponto-chave. Isso “envolve a capacitação permanente de profissionais e a criação de novos serviços especializados, como a construção das 40 novas unidades da Casa da Mulher Brasileira”, além de assegurar às vítimas “o acesso a informações sobre direitos e serviços e a atenção em saúde”.

Seguiremos atentos.

Por fim, explico o levantamento:

1) Identificamos o número de estupros na faixa de 10 a 14 anos entre 2015 e 2020 no Sistema de Informação de Agravos de Notificação do Ministério da Saúde – de acordo com a pasta, este é o último ano com dados consolidados.

2) Calculamos 7% do total desses estupros, porque, segundo o Ipea, essa é a porcentagem de violações que terminam em gravidez.

3) Pedimos via Lei de Acesso à Informação ao Ministério da Saúde o número anual de abortos por idade e filtramos os feitos por razões médicas e legais em meninas de 10 a 14 anos entre 2015 e 2020.

4) Comparamos a estimativa de vítimas de estupro grávidas nessa idade com o número dos abortos e chegamos a 3,9%.

Atualização: 14 de setembro, 13h25
Este texto foi atualizado com a informação de que o Supremo Tribunal Federal deve votar em breve a descriminalização do aborto.

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