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Psicólogos lucram com laudos contratados por pais e padrastos suspeitos de estuprar crianças

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Em nome dos pais

Parte 2


Conteúdo sensível: relatos sobre abuso infantil.

Quando foi preso acusado de estuprar a enteada de 10 anos, em outubro de 2020, Manoel já respondia a outras três acusações semelhantes. Mas, se dependesse do parecer encomendado por ele à psicóloga Elsa de Mattos, o abusador seria inocentado ao menos das denúncias anteriores – elas não passavam de “criação de falsas memórias provocadas a partir de informações distorcidas”, dizia o documento, assinado pela psicóloga 10 dias antes da prisão. O verdadeiro problema, segundo a análise de Mattos, seria Vanessa, ex-esposa de Manoel.

Ela conta que foi a primeira a denunciá-lo por estupro de vulnerável, em 2016. Aos 12 anos, sua menina contou que o então padrasto a tocava de forma indevida desde os 8, dizendo à criança que aquilo era “coisa de pai e filha”. A adolescente também teria afirmado que o abusador havia tocado os seios de outras duas meninas da família.

Vanessa se separou, denunciou o ex por estupro de vulnerável e avisou as outras mães. Já em 2017, quando soube que a nova namorada dele tinha uma filha, tratou de alertá-la, mas a mulher não acreditou à época. Segundo o parecer de Mattos, Vanessa, “de forma deliberada, transmitiu a sua própria visão dos fatos” não apenas à filha, mas também “às demais crianças, bem como a suas respectivas mães”. Eram ações condizentes com a chamada síndrome da alienação parental, cuja existência é contestada por especialistas. O diagnóstico acabou deixando Vanessa, e não o homem acusado por ela de estupro, na mira do Judiciário.

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Essa é a segunda reportagem da série “Em nome dos pais”, que revela quais são os juízes, desembargadores, promotores, psicólogos e assistentes sociais que usam a Lei de Alienação Parental para livrar acusados de estupro de vulnerável ou de violência doméstica, muitas vezes tirando os filhos das mulheres e entregando-os a quem elas denunciaram. Todas as informações foram retiradas de processos que correm em segredo de justiça. Por causa da relevância do tema e de seu evidente interesse público, o Intercept optou por publicar essas histórias, preservando a identidade das vítimas e seus familiares.

A Lei de Alienação Parental se vale de uma teoria já desbancada que diz ser possível programar uma criança para odiar alguém e fazer acusações falsas. Nada disso é reconhecido pela Organização Mundial da Saúde. O Conselho Federal de Psicologia, o Conselho Nacional de Assistência Social e o Conselho Nacional de Saúde também questionam o uso do conceito.

Dos 11 processos que analisei, esse foi o único em que um homem denunciado por estupro foi preso. Mas isso só aconteceu após Manoel ser acusado pela quarta vez. Segundo Vanessa, a mãe da menina não acreditou que ele era um pedófilo, porque continuava solto – condenado a mais de 20 anos pelo estupro da primeira enteada, Manoel recorria em liberdade. Após três anos de relacionamento com a nova namorada, ela ouviu da própria filha que ele se aproveitou de sua ausência para se masturbar na frente da criança. Ela o denunciou à polícia no dia seguinte.

Até Manoel ser preso, segundo Vanessa, a justiça ainda a obrigava a entregar a filha mais nova, fruto do casamento com ele, para visitas com o homem condenado em primeira instância por estuprar a menina mais velha. E era contra a mãe que o Judiciário se voltava: “Eu era constantemente ameaçada de ser acusada de alienação parental. Se atrasasse a entrega da criança, por exemplo, ou se ligasse para pedir que trouxesse ela quando passava do horário”, disse ela.

Laudos encomendados

Tunísia Viana, uma das integrantes do coletivo Mães na Luta, formado por vítimas da Lei de Alienação Parental, acredita que a legislação ainda resiste no Brasil, porque “movimenta um enorme comércio para psicólogos, advogados e assistentes sociais que atuam em processos envolvendo disputas familiares”. A lei acaba rendendo bons lucros a esses profissionais. 

De acordo com a tabela de honorários da Federação Nacional dos Psicólogos, as práticas diagnósticas variam de R$ 100 a R$ 860, embora o profissional tenha liberdade para definir preços. Por telefone e sem saber que falava com uma jornalista, a psicóloga Elsa de Mattos, que emitiu o parecer para Manoel, me disse que cobra cerca de R$ 3 mil para esse tipo de serviço, oferecido a todo o Brasil. O laudo contra Vanessa foi feito com a análise de documentos e depoimentos dos processos de violência doméstica e de estupro de vulnerável. Mattos tinha como objetivo “identificar a possibilidade de que a adolescente […] tenha apresentado um relato de abuso com base em falsas memórias”. A resposta da psicóloga foi que tinha, sim. 

Em seu parecer, ela disse que o “rompimento violento da relação” entre Vanessa e Manoel fez com que a adolescente criasse uma justificativa para se solidarizar com o sofrimento da mãe. “Uma denúncia de abuso sexual – uma falsa denúncia – poderia estar representando uma forma de punir o padrasto”, escreveu Mattos.

Avaliações psicossociais são indispensáveis para ações que envolvem alegação de alienação parental. São os psicólogos, junto com os assistentes sociais, que oferecem relatórios para fundamentar decisões. Muitas vezes, promotores e juízes apenas repetem o que está nesses documentos, que podem ser feitos por servidores dos tribunais, por profissionais nomeados pelos magistrados ou contratados por uma das partes. De qualquer forma, a análise tem que ser técnica – ou deveria ser. 

Por WhatsApp, a psicóloga Elsa de Mattos disse que não tem autorização para comentar o caso e nem para responder às minhas perguntas, pois “esse tipo de questão fere a ética profissional da confidencialidade do trabalho do psicólogo jurídico”. 

Documentos, vídeos, áudios e autos de ações judiciais a que tive acesso com exclusividade revelam que alguns psicólogos contrariam os preceitos éticos e as recomendações do Conselho Federal de Psicologia, o CFP. A nota técnica mais recente da entidade orienta os profissionais a utilizarem “abordagens teóricas já consolidadas e reconhecidas no campo da psicologia” nas avaliações e atendimentos em que há alegação de alienação parental. É preciso considerar, diz o CFP, “a inexistência de consenso no campo da ciência psicológica e na categoria profissional quanto ao uso dos termos Síndrome de Alienação Parental e Alienação Parental”. Em muitos pareceres a que tive acesso, contudo, os psicólogos não têm esse cuidado e usam os termos sem qualquer ressalva, levando juízes a punirem as mães sob a alegação de que elas estão praticando alienação parental.

Os profissionais também desconsideram em seus pareceres que há “um viés de gênero” nas denúncias de alienação parental, pois, como diz a nota técnica do CPF, elas “incidem no campo social e jurídico, majoritariamente, sobre mães guardiãs” e podem “ocultar formas de abuso sexual, emocional e psicológico contra crianças e adolescentes”, bem como “ser utilizadas como forma de ameaça por ex-parceiros contra mulheres”.

Desembargadora aposentada do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul e uma das primeiras magistradas a usar o termo Síndrome de Alienação Parental em suas decisões, antes mesmo de a lei existir, Maria Berenice Dias tem opinião contrária. Para ela, o que falta é qualificação dos profissionais de psicologia. “Tem psicólogas que afirmam indícios de abuso sexual e agem de uma maneira irresponsável, sem ao menos chamar os pais [acusados]”. Dias é vice-presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família e, como advogada, também atua em casos defendendo homens que acusam mulheres de alienação parental. 

Em nota enviada após o posicionamento de Dias e a publicação da primeira reportagem da série, o instituto reconheceu a gravidade das alegações de mau uso da Lei de Alienação Parental e sua “aplicação equivocada ou defeituosa”. Mas também defendeu que revogá-la “significa enfraquecer a rede de proteção infantil […] atualmente vigente, tornando-a deficiente, o que é verdadeiro retrocesso social”.

Escondido no banheiro, o menino gritava para a psicóloga escolhida pelo pai: “Eu também não quero te ouvir, eu não quero entrar, eu não quero que você me force!”. Ilustração: Terroristas del Amor

Criança em último lugar

Júlio havia completado 8 anos há menos de um mês, mas já tinha clareza do que não queria de forma alguma na vida: ver o pai novamente. “Meu pai mexia no meu bumbum e no meu pipi. […] Ele falava, se você contar pra alguém eu vou matar sua família. […] Eu não quero mais ver ele”, disse o menino em dezembro de 2020, segundo o laudo psicológico do Instituto de Medicina Social e de Criminologia de São Paulo.

Os abusos teriam começado em 2017, quando ele tinha 5 anos, e durado até 2019. A escola havia alertado que Júlio estava com comportamento sexualizado, e a sua mãe, Thaís, já havia notado que ele estava retraído, agressivo e evitava vestir roupas que mostrassem o corpo, como camisetas e bermudas – preferia calças e casacos. Ela também lembrou que, após 15 dias de férias na casa do pai, o filho disse que o bumbum estava doendo, mas a mãe associou o machucado à falta de higiene. Foi só depois de iniciar um tratamento com uma psicóloga que a criança contou o que o pai fazia. 

Em outubro de 2019, a profissional o encaminhou para atendimento na Sociedade Rorschach, uma instituição científica que desenvolve pesquisas e avaliações na área de saúde mental. O laudo reforçou a “hipótese de abuso” que ela já havia identificado. O menino se sentia ameaçado “pela figura paterna/masculina” e acreditava que ela destrói. Por isso, tem “ansiedade e fantasias de mortes”. 

Nem assim a criança foi afastada do pai. O contato, mesmo por videochamada, lhe dava crise de pânico. O menino rasgava a própria roupa quando era obrigado a falar com ele e chegou a tentar suicídio duas vezes. Mas tudo isso foi irrelevante para a juíza Leila França Carvalho Mussa, da comarca de Carapicuíba, em São Paulo. Ela não só determinou a retomada gradual do contato entre pai e filho, como afirmou que a psicóloga da criança tinha um “possível comprometimento […] conforme se percebe em trecho de laudo onde a profissional toma partido na questão”. 

O contato com o pai dava crises de pânico no menino, que chegava a rasgar as próprias roupas.

A decisão dizia que a psicóloga poderia ser substituída por outro profissional escolhido pela mãe ou pelo pai. Segundo os autos do processo, a escolha da psicóloga Renata Yamasaki foi do pai, e era ele quem pagava, o que só agravou o emocional do filho. Ele falou sobre o medo das sessões com ela para ao menos três profissionais. Em uma gravação feita pela mãe em setembro de 2021, Júlio se recusa a entrar na sala da terapia, enquanto a profissional insiste para saber o motivo. Escondido no banheiro, ele gritava: “Eu não quero! Eu também não quero te ouvir, eu não quero entrar, eu não quero que você me force!” 

Com o fantasma da acusação de alienação parental rondando, Thaís era obrigada a presenciar cenas assim semanalmente. Caso não levasse o filho à psicóloga que ele tanto rejeitava, teria que pagar R$ 5 mil de multa a cada falta, determinou a juíza Mussa.

Ela só acatou os vários pedidos de Thaís para afastar a psicóloga nove dias após a mãe ter feito a gravação. Por meio da assessoria de imprensa do Tribunal de Justiça de São Paulo, perguntei se a juíza tinha ouvido o áudio que mostrava a criança gritando e chorando para não entrar na sala da psicóloga, mas fui informada que ela não iria se manifestar “fora dos autos, por vedação da Lei Orgânica da Magistratura”. 

Na gravação, ouve-se Yamasaki dizer que, se não conseguisse concluir seu trabalho, a justiça poderia ordenar que a criança fosse atendida em um lugar “muito ruim”, no qual o pai “pode solicitar as visitas”. Como ver esse homem era o maior pesadelo de Júlio, a frase foi interpretada pela mãe e pela criança como uma ameaça.

A juíza encaminhou o menino para o Projeto Acolhe, da prefeitura de Carapicuíba, após o afastamento de Yamasaki. À psicóloga do município, Júlio disse que a profissional havia dito que “o pai viria buscá-lo e eles o levariam para um lugar muito ruim”. À enfermeira do Caps, o menino disse que preferia morrer a ver o pai.

Segundo um médico registrou em um relatório de consulta em setembro de 2021, Júlio “espontaneamente falou de sua preocupação sobre a possibilidade de ser atendido por uma psicóloga escolhida pelo pai”. Na mesma ocasião, o menino introduziu uma caneta em uma folha de papel, de “forma ríspida”, para demonstrar como o pai o machucou.

Procurada por e-mail e WhatsApp, a psicóloga Renata Yamasaki confirmou o recebimento das minhas perguntas, mas não as respondeu.  

Absolvido por falta de provas

Um parecer do Ministério Público, de fevereiro de 2022, listou 10 provas, entre elas depoimentos, laudos psicológicos, relatórios médicos, áudios e fotos do ânus machucado da criança, que levam à mesma conclusão: Júlio teria sido estuprado pelo pai. No mínimo cinco profissionais diferentes atestaram que a criança foi coerente em todos os relatos, além das falas suicidas que revelavam o tamanho do trauma. Por tudo isso, cravou a promotora, “é demasiado improvável que a genitora (sem formação técnica) e uma criança de 7 anos de idade fossem capazes de enganar inúmeros profissionais especializados”. Para ela, “beira a irracionalidade” supor que os profissionais estivessem aliados à mãe a fim de “prejudicar o réu”.

Além de recomendar a condenação do abusador por estupro de vulnerável, ela solicitou medidas protetivas para que a criança não tivesse mais contato com ele. Menos de dois meses depois, a juíza Mussa obrigou Júlio a fazer videochamada com o pai para a “preservação do direito à convivência familiar”. 

Também em abril, a juíza Manoela Assef da Silva absolveu o pai no processo criminal e acabou com as medidas protetivas. Segundo ela, o relato de Júlio deve ser considerado “principalmente quanto aos sentimentos de tristeza e sofrimento”, mas “a palavra da criança não pode ser o único elemento de prova”.

Um ano antes da absolvição, em maio de 2021, a juíza Mussa reforçou a necessidade de aproximar pai e filho. Ela nomeou como mediadores um engenheiro e uma advogada que não têm especialização em saúde mental e nem outra qualificação específica para cuidar de uma criança que já havia tentado suicídio duas vezes. Em uma das sessões, o mediador insistiu para que Júlio lembrasse de “coisas legais” com o pai.

Segundo a Lei da Mediação, para atuar como mediador judicial basta ser graduado há pelo menos dois anos em qualquer área e fazer o curso de formação oferecido pelos tribunais. Essas pessoas entram em um cadastro e podem ser nomeadas pelos juízes para atuarem em determinadas causas. Na decisão em que a juíza Mussa informou os nomes dos mediadores no processo de Thaís, não há justificativa para a escolha. Ela informa apenas que eles estão “cadastrados no sistema informatizado”. 

A criança preferia morrer a ver o pai e tentou suicídio, mas a juíza decidiu reaproximar os dois.

Ao menos três novos laudos de psicólogos e psiquiatras, feitos entre junho e setembro de 2022, trazem alertas como “não há a mínima condição de ter reaproximação com seu genitor, inclusive online, sob alto risco de suicídio”. Em um dos relatórios, a psicóloga do Projeto Acolhe registrou que Júlio lhe perguntou: “Você gostaria de ver o seu pai de novo se ele fizesse com você o que o meu pai fez comigo?”. 

Em outubro, Thaís se mudou de estado e, com isso, o caso referente à guarda foi transferido para uma nova comarca. Lá, ela conseguiu uma liminar que impede a reaproximação, mas o processo segue em andamento. A criança ainda tem pesadelos, como relatou na terapia. Nos seus piores sonhos, o pai volta para abusar dele.

Procuradas por meio da assessoria de imprensa do Tribunal de Justiça de São Paulo, as juízas Leila França Carvalho Mussa e Manoela Assef da Silva responderam que os processos tramitam sob segredo de justiça e que “os magistrados são impedidos de se manifestar fora dos autos, por vedação da Lei Orgânica da Magistratura”.

Terapia até em churrascaria

Bianca foi acusada de alienação parental pela primeira vez em 2017, quando ainda estava grávida. O pai, Jonas, que ela acusa de violência doméstica e de quem havia se separado, fazia questão de estar na sala de parto e entrou na justiça do Paraná para obrigá-la a aceitar sua presença. O pedido foi recusado, mas começou ali uma disputa que já soma 11 ações judiciais. Assim como aconteceu com Thaís, um dos maiores problemas de Bianca foram as psicólogas que atuaram no processo – mas não só elas.

A criança tinha apenas 1 ano e meio e nem falava quando a mãe, a avó e as babás perceberam que ela voltava das visitas paternas com um comportamento estranho. De acordo com a ocorrência registrada em 2019, a menina se jogava no chão, ficava muito agressiva e, em algumas ocasiões, tinha o hálito alcoólico. 

Bianca decidiu esconder um gravador no carrinho de passeio da filha. A bebê passa as três horas de gravação calada, e, segundo a denúncia, ouve-se Jonas pedindo para ela olhar o “elefantinho do papai”. 

A mãe denunciou a suspeita de abuso e queria que a justiça determinasse visitas monitoradas, mas o juiz Juan Daniel Pereira Sobreiro negou. Ele avaliou que havia rancor recíproco entre os pais e que não era possível identificar claramente no áudio que o pai havia mencionado “o tal elefantinho”. Por fim, afirmou, sem nenhum laudo, que Bianca estava agindo “conforme a malfadada síndrome de alienação parental”. Um mês depois, como Bianca ainda se recusava a entregar a filha, o juiz Sobreiro aplicou multa de R$ 10 mil por cada visita paterna frustrada e ameaçou a mãe com inversão de guarda.

O magistrado nomeou a psicóloga Edith Cristiane Marchiori em maio de 2020 para fazer quatro sessões terapêuticas com as partes e emitir um parecer técnico sobre o suposto abuso sexual ou alienação parental. Como ela não faz parte do quadro de servidores do tribunal, a conta ficou para Bianca, que desembolsou cerca de R$ 2,8 mil – pagou, inclusive, as sessões para o ex-marido, que alegava não ter dinheiro.

Marchiori estava com o cadastro de perita vencido desde 2018 e sequer constava no registro de mediadores do tribunal, contrariando recomendação do Conselho Nacional de Justiça. De acordo com o site Escavador, Marchiori atua como consteladora familiar, hipnoterapeuta e comentarista de programas de TV.

Procurado por meio da assessoria de imprensa do Tribunal de Justiça do Paraná, o juiz Juan Daniel Pereira Sobreiro respondeu que é vedado ao magistrado se manifestar ou opinar sobre processo pendente de julgamento, de acordo com a Lei Orgânica da Magistratura Nacional.

Uma das sessões com Jonas aconteceu em uma churrascaria, onde os dois almoçaram juntos e tiveram conversas amistosas, segundo relatou a babá da criança, também presente. Enquanto almoçava, escreveu a psicóloga em seu relatório, ele “desabafou como sente falta da filha, que se sente incomodado com a presença constante de acompanhantes” e que “se sente vigiado”. Marchiori chegou e saiu da churrascaria no carro de Jonas.

De acordo com a psicóloga Iencarelli, o código de ética da profissão zela pela adequação do ambiente e não há como fazer uma avaliação do estado emocional do paciente nesse tipo de local. Além disso, completou, a intimidade quebra preceitos que facilitam a expressão de ansiedade, culpa ou angústia.

Em dezembro de 2021, com base no parecer de Marchiori, que defendeu a necessidade de “haver respeito ao direito da criança em ter sua mãe e seu pai presentes”, a promotora Leidi Mara Wzoreck de Santana se manifestou favoravelmente às visitas paternas sem supervisão, com pernoite e com direito de o suspeito viajar com a criança. Caso Bianca não permitisse, estaria sujeita a multas e à aplicação da lei de alienação parental.

Questionada, a promotora argumentou que “o posicionamento nos autos foi amparado em provas testemunhais e periciais apresentadas no curso do processo, que apontam para a não ocorrência do suposto abuso”. Já a psicóloga Edith Cristiane Marchiori não retornou os meus contatos. 

Desconfiada de possíveis abusos, a mãe colocou um gravador no carrinho da bebê. Segundo a denúncia, ouve-se o homem pedindo para ela olhar o “elefantinho do papai”. Ilustração: Terroristas del Amor

Quando o problema é o Ministério Público

Bianca enfrentou dificuldades com outra pessoa ao longo dos quase seis anos de disputa judicial: a promotora Tarcila Santos Teixeira, que pediu o arquivamento do primeiro inquérito policial sem que a investigação tivesse seguido passos básicos, como a interrogação de Jonas – segundo alegou a Teixeira, ele já havia se manifestado por meio dos advogados, “negando peremptoriamente” as acusações – o que ela considerou suficiente.

A promotora disse ainda que, mesmo se houvesse lesões nas partes genitais da criança “e que elas fossem causadas por uma manipulação não adequada do pai”, isso poderia “ser fruto de assaduras ou má realização da higiene”. Ela também afirmou que era necessário comprovar que “o toque do pai na região íntima da vítima” tinha como objetivo “a busca da satisfação da lascívia”.

Procurada, a promotora argumentou que todas as diligências já tinham sido feitas na fase do inquérito policial e que a “promoção de arquivamento se deu, justamente, em razão da constatação da fragilidade dos elementos indiciários [elementos para que o suspeito fosse indiciado] trazidos na fase investigatória”. Ela também reforçou que “não é o simples toque nas partes íntimas da criança” que configura delito, assim como “nem toda lesão” indica abuso. 

Quase três anos depois da primeira denúncia, a criança voltou com hematomas de uma viagem de férias na casa do pai, em São Paulo. A filha de Bianca também teria falado que ele lhe deu várias vezes para comer “cola gosmenta que faz xixi”, além de se recusar a fazer a higienização das partes íntimas. A psicóloga Iencarelli defende que os profissionais da psicologia e do sistema de justiça precisam ficar atentos para esse tipo de relato. “Esse é o vocabulário de que elas dispõem para se expressar”.

Segundo a mãe, a filha teria dito que o pai lhe deu para comer ‘cola gosmenta que faz xixi’.

A mãe registrou nova denúncia em dezembro de 2021, e o exame de lesão corporal indicou cinco pequenas marcas no corpo, principalmente nas pernas. Em fevereiro de 2022, ela pediu o desarquivamento do inquérito anterior, mas a promotora afirmou que a denúncia deveria ser feita em São Paulo, onde as agressões teriam acontecido. 

Em resposta ao Intercept, a promotora destacou que “o Juízo da Comarca de Curitiba se revelou incompetente para a investigação e processamento, já que – conforme devidamente fundamentado junto aos autos de inquérito policial –, o sistema penal brasileiro adota a teoria do resultado, determinando que o juízo competente é o do local da infração, independentemente de onde a vítima se encontra, tampouco de onde tramitam outros processos envolvendo as partes”.

Em um relatório psicológico de junho de 2022, consta que há na criança “indícios indicativos de abuso físico e emocional”. Durante as sessões de terapia, a menina disse que o pai era mau, que puxava seus cabelos, batia na sua cabeça e a chutava. 

Bianca denunciou as suspeitas de abuso pela terceira vez, e o juiz Leandro Leite Carvalho Campos concedeu uma medida protetiva. Segundo ele, havia “fortes indícios da prática de maus tratos e violência sexual contra a criança”. Campos proibiu o pai de “manter qualquer espécie de contato com a vítima, sua genitora e demais familiares da infante, seja por qualquer meio”. Apenas seis dias depois dessa decisão, a promotora Teixeira se manifestou sugerindo que a mãe estaria revitimizando a criança.

A promotora Tarcila Santos Teixeira já é conhecida por sua atuação em ações judiciais envolvendo crianças. Em 2013, ela foi destaque em uma reportagem do Fantástico, na Rede Globo, pelo trabalho em um processo que retirou sete filhos de uma mesma mãe em Triunfo, no Paraná. O parecer de Teixeira foi favorável à adoção das crianças por estrangeiros. Incomodada com a reportagem, a promotora entrou na justiça e ganhou uma indenização de R$ 30 mil pela ofensa à honra, à imagem e à reputação. O caso chegou ao Superior Tribunal de Justiça, que aumentou o valor da indenização para R$ 350 mil. 

Esse e outros processos de adoção no qual Teixeira atuou foram alvos de uma Comissão Parlamentar de Inquérito da Câmara dos Deputados que investigou o tráfico de pessoas no Brasil. Ela foi uma das depoentes e precisou se explicar sobre os pareceres. Em 2014, a CPI indiciou quatro pessoas por tráfico humano, mas a promotora não estava entre elas. 

Segundo Teixeira, “fora constatado absoluto rigor na observância das disposições legais” em todos processos de adoção em que ela atuou. “Sequer fui acusada de qualquer prática delitiva ou minimamente irregular, sendo que tudo se limitou a uma reportagem sensacionalista e falaciosa que apresentou informações inverídicas e contrárias a todo o conteúdo dos processos”, argumentou.

‘Preocupações excessivas’

Quem também se sentiu prejudicada pelo Ministério Público em um processo envolvendo alegação de alienação parental foi Carolina. Três promotores da comarca de Resende, no Rio de Janeiro, fizeram pareceres que favoreceram Jorge, o pai do seu filho, mesmo após um relatório psicológico de dezembro de 2018 indicar que seu filho omitia o “laço familiar paterno, assumindo o padrasto como seu pai legítimo”.

Esse foi o primeiro alerta de que havia algo errado – a criança tinha 10 anos. No relatório, a psicóloga apontou que ele também apresentava “afastamento da realidade para se proteger”, o que poderia “desenvolver um aspecto tímido ou rígido diante das adversidades”. 

A mãe já lutava na justiça para que os filhos – o menino então pré-adolescente e uma menina de 6 anos – não viajassem para a cidade do Rio, onde Jorge morava, nem tivessem que pernoitar com ele. Uma das suas maiores preocupações até então era o contato das crianças com o avô paterno, que havia abusado da própria filha anos atrás, como Jorge confirmou, de acordo com os autos do processo.

A promotora Laura Cristina Maia Costa Ferreira concordou que era necessário resguardar as crianças do avô, mas escreveu em seu parecer que não havia impedimento para o pai levar os filhos ao Rio. A juíza Maria Elizabeth Figueira Braz acatou. Jorge só teria que manter seu pai longe das crianças, mas, segundo ele mesmo admitiu, os filhos falaram com o avô pelo WhatsApp.

Ainda assim, o promotor Afonso Henrique Reis Lemos Pereira foi contra os pedidos da mãe para reformular as visitas. Para ele, o problema era que Carolina não havia se adaptado “à ampliação da convivência paterna”.

A promotora Ferreira escreveu que não havia “qualquer indicativo da equipe técnica de que os filhos apresentem repulsa à figura paterna”. Segundo ela, “as preocupações excessivas” da mãe poderiam caracterizar alienação parental, porque “causam obstáculo ao exercício da paternidade”. 

Prestes a completar 14 anos, em outubro de 2021, o menino já havia bloqueado as chamadas e mensagens de Jorge desde o início do ano. Então, a psicóloga que já atendia o adolescente há cerca de um ano e meio mediou uma sessão dele com o pai, mas o encontro terminou mal. 

O menino disse que Jorge não o tocaria e que deveria mostrar sua verdadeira personalidade. Aos prantos, recusou o abraço do pai. Quando o homem foi embora, o adolescente teve coragem de falar o motivo da sua dor – o pai lhe abusava desde que era criança. A violência teria começado quando ele tinha entre 7 e 10 anos anos. Nessa mesma noite, ele contou detalhes para a mãe, dizendo que o pai o forçava a tomar banho com ele, pedia para ver o pênis do filho e manipulava os próprios órgãos genitais.

Diante dos relatos, Carolina pediu à justiça que fossem tomadas providências para proteger também a filha mais nova. A resposta da juíza Maria Elizabeth Figueira Braz se resumiu a duas linhas – “nada a prover, eis que se trata de feito findo, com sentença transitada em julgado”. Dez dias depois, a magistrada decidiu suspender a visita paterna prevista para o fim de semana seguinte, mas adiantou que “não foi possível verificar a presença de elementos que comprovem as alegações”. 

Em dezembro de 2021, coube à promotora Aline Palhano Rocha Cossermelli Oliveira se manifestar sobre o pedido da mãe para suspender as visitas paternas à filha. Resumindo todo o problema a uma questão de dificuldade de convivência, a promotora opinou pelo afastamento entre Jorge e o filho, mas sugeriu manter as visitas à menina. A juíza Braz escreveu que ela demonstrava “satisfação com o novo formato familiar”, enquanto o adolescente “não deseja conviver” com o pai. Sobre os motivos que levaram o filho a rejeitar essa convivência, a magistrada não se prolongou.

O menino disse que o pai abusava dele, mas a juíza manteve as visitas da irmã ao homem.

Um relatório psicossocial de março de 2022 – recomendado pela promotora Oliveira para apurar indícios de atos de alienação parental – ouviu Carolina, Jorge, os dois filhos e a psicóloga do adolescente, que foi a primeira pessoa para quem ele contou sobre os abusos sofridos. 

O pai disse que só comentou sobre o órgão sexual com o filho para orientá-lo quanto à higiene pessoal e negou que tenham tomado banho juntos depois que o menino cresceu. Já a mãe lembrou que o filho havia falado sobre o abuso quando voltou da psicóloga, que ele chamou o pai de pedófilo e perguntou se algum exame poderia comprovar o abuso. Na entrevista com o adolescente, ele confirmou para a psicóloga judicial tudo que havia dito antes.

À equipe psicossocial do tribunal de justiça, a psicóloga do menino disse que ele já apresentava sinais de síndrome do pânico quando iniciou o atendimento com ela e vinha se afastando do pai.

A promotora Oliveira se manteve irredutível. Ela deu parecer favorável para as visitas paternas à filha, sem supervisão e com pernoites, e sugeriu multa para a mãe em caso de descumprimento. Seu relatório afirma que “não restou demonstrado que o exercício da visitação paterna seja prejudicial a seus interesses”. Por fim, Oliveira sugeriu que a mãe fosse investigada por alienação parental.

Por meio da assessoria de imprensa do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, as promotoras Laura Cristina Maia Costa Ferreira, Aline Palhano Rocha Cossermelli Oliveira e o promotor Afonso Henrique Reis Lemos Pereira informaram que não poderiam responder às minhas perguntas, porque “os processos da Vara de Família tramitam em segredo de justiça”. A juíza Maria Elizabeth Figueira Braz tampouco respondeu a nossos questionamentos, e a assessoria do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro também se limitou a dizer que não se manifestaria por o caso correr em sigilo.

O que vem garantindo o distanciamento seguro entre Jorge e a filha, hoje com 11 anos, é uma liminar de junho de 2022 do desembargador Luiz Henrique Oliveira Marques, que permite visitas paternas apenas com supervisão. Enquanto isso, Carolina é investigada por alienação parental.

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