Tenho relações próximas com muitas pessoas bem mais jovens que eu: são estudantes, família, amigas. Gente com 17, 18 anos, gente quase chegando aos 30. Há tempos observo, entre elas, manifestações cada vez mais intensas de sofrimento causado por uma dinâmica que hoje nos marca profundamente como sociedade: no contexto das redes sociais, o rápido descarte do outro. Não é algo que ocorre somente com grupos mais jovens, mas que sem dúvida atravessa mais radicalmente gerações cujas relações pessoais já são forjadas na mescla incontornável da vida virtual/digital.
Há alguns dias, uma situação desenhou para mim o tamanho e a gravidade desse fenômeno. Era sete da manhã e meu telefone tremeu sobre a mesa da cozinha: nele, surgiu uma mensagem de uma jovem que conheço desde a infância (vou chamá-la aqui de Luana). Pedia minha atenção e dizia que estava mal. Achei que poderia ser somente um exagero de nossos comuns arroubos juvenis. Não era.
Luana, 20 anos, havia passado a noite em claro, ansiosa. Disse que o coração batia muito forte e não conseguia respirar bem. O estado emocional foi iniciado depois que ela falou com uma amiga que, há dias, havia deixado de responder às suas mensagens. Irritada com a situação, Luana enviou uma série de perguntas, cobrando uma explicação da amiga pelo sumiço. Na noite anterior, elas finalmente se falaram e Luana soube que a mãe da colega havia morrido.
Nesse contexto delicado, outra questão se sobrepunha: Luana fora bloqueada poucos dias antes, nas redes sociais, por uma outra pessoa. Sua relação amorosa com uma mulher teria levado uma colega a finalizar o contato entre ambas nas redes. O pouco preciso “teria” se explica: não houve conversa prévia entre as duas, ambas interessadas na mesma pessoa. Em vez de diálogo, veio o bloqueio.
Percebi ali como essa situação não é inédita na vida de Luana, uma universitária que vive no centro de Recife: em várias de nossas conversas, ela me falou sobre diversos encontros amorosos e amizades baseados no bloqueio-desbloqueio contínuo, uma quase metáfora encarnada e super veloz de relações de afeto de uma vida pré-redes sociais e aplicativos de relacionamento. Mas essa metáfora, veremos, não se sustenta nas interações desenhadas hoje.
Antes de seguir, um aviso: não sou do time do “antes da internet era melhor” ou “no meu tempo era assim”. Idealizar um passado com menos máculas e mesmo idílico é um recurso tentador, mas que também pode nos levar a um pensamento conservador que não nos permite lidar de frente com as questões do agora.
O meu tempo, como diz Paulinho da Viola, é hoje. E será até o dia em que eu morrer.
“Por mais que a humanidade tenha avanços no campo tecnológico, há coisas que nunca vão mudar na condição humana, e a nossa condição é a do desamparo. O ser humano é uma das espécies mais desamparadas. A gente precisa que o outro suporte a nossa existência, mas esse outro também pode ser a fonte de nosso sofrimento. Esse é nosso constante paradoxo”, diz Lassana Danfá, psicólogo clínico, doutor em psicologia e professor visitante na Universidade de Pernambuco, a UPE.
Ele me conta que se depara constantemente com pessoas angustiadas após sofrerem um bloqueio. “Elas chegam para mim e dizem ‘a amizade terminou e não sei o que houve’. Há a angústia da incerteza de entender o que está ocorrendo. Se a pessoa é bloqueada, há um motivo. Ou, se a pessoa some, a gente já atrela esse sumiço a um problema. Isso tem relação com esse desamparo gritante do ser humano, que precisa o tempo inteiro desse outro. Mas esse outro não é mais o outro da forma como sempre foi concebido . Esse outro é a internet, esse outro é o algoritmo”, explica Danfá.
‘A gente precisa que o outro suporte a nossa existência, mas esse outro também pode ser a fonte de nosso sofrimento.’
Ele cita o filósofo sul-coreano Byung-Chul Han e sua ideia de “não-coisas” nas quais nos tornamos: a partir do momento em que nos mesclamos às redes, nos desincorporamos e passamos a ser também o próprio fluxo. “Nós passamos a olhar o mundo de uma forma diferente de como ele era conhecido, como algo palpável”.
Nesse ambiente no qual não faz mais sentido separar real/virtual, as relações se reconfiguram — e é essa reconfiguração em nosso sistema operacional que causa confusão, dor, sofrimento e ressentimento no âmbito das relações pessoais/digitais. Para amenizar efeitos mais dolorosos como o bloqueio, as próprias redes oferecem recursos como o “silenciar”, no qual deixamos de interagir com determinada pessoa sem que ela necessariamente saiba. Continuamos a segui-la, ela pode fazer contato, mas ela já não estará visível, virtualmente, para nós.
Depois de um relacionamento de quase dois anos com um ex-namorado, a artesã Luciana Amorim, 45 anos, mudou de cidade e, nesse processo, passou por uma separação difícil. Continuou mantendo contato com o ex, mas, depois de um período, percebeu que mantê-lo, mesmo que virtualmente na sua vida, trazia mais sofrimento. Decidiu não bloqueá-lo, o que seria violento, mas o silenciou. “Mas recentemente o reencontrei e ele tinha percebido essa atitude. Perguntou porque decidi fazer isso, que tinha sido muito doloroso para ele. Eu compreendi, sei que não é preciso extirpar o outro, simplesmente tirá-lo da sua vida. Mas entendo que eu também precisava do afastamento para me recompor, e é preciso que se entenda essa dinâmica. Acreditar que todo sumiço ou não resposta seja, desde o início, uma forma de rejeição, de ataque, pode ser um problema”. Foi justamente essa percepção que causou a reviravolta de sentimentos em Luana, que migrou da raiva da amiga “sumida” para uma espécie de horror a si mesma quando soube dos motivos muito reais do suposto desaparecimento.
O bloqueio e o silenciamento foram estudados por Patrícia Farias Coelho, da Universidade Metodista de São Paulo, e Hermes Renato Hildebrand, da Unicamp. Ambos escreveram o artigo Ghosting e Mooning: rompimentos de relacionamentos na internet. Os termos em inglês passaram a se popularizar para especificar justamente a prática do bloqueio e sumiço das redes (o ghosting, advindo de “fantasma”) e o ato de não sumir totalmente, mas simplesmente ignorar a outra pessoa, deixando-a em uma espécie de castigo (o “mooning” vem de moon, lua em inglês).
‘Troca-se uma pessoa por outra, e por outra e outra e assim mantemos a dinâmica da velocidade. A descartabilidade fica muito evidente.’
No texto, Patrícia e Hermes falam sobre as sensações muito reais do que chamam de pessoa-usuária abandonada e excluída, que passa a viver uma cacofonia ao contrário: ela escuta somente a reverberação da própria voz, o que produz sensações sinestésicas de dor, angústia, depressão e ansiedade causadas pelo sentimento de abandono causado pelo repentino sumiço do amigo ou do parceiro. “Quanto mais o ser abandonado busca pelo outro, mais sente e reverbera a sua própria presença e/ou a presença do outro (na rememoração de seus sentimentos e pensamentos). Tudo isso na ausência das e nas redes sociais digitais de seu outrora parceiro amoroso”, escrevem.
As relações pautadas no desejo-sumiço são, evidentemente, ainda mais marcadas nos aplicativos voltados especificamente para relacionamentos sexuais e/ou amorosos, como é o caso do Tinder ou Grindr, entre outros. Foi sobre o último que o professor Ricardo Sabóia, da UFPE, que realizou uma pesquisa etnográfica sobre o uso do aplicativo. “Há uma frase muito comum no Grindr: ‘silêncio também é resposta’. Há muitas pessoas que não gostam, pois seria um tratamento rude, uma falta de responsabilidade afetiva. Mas acredito que esse termo seja problemático. Acho mais interessante pensar na ideia de uma ética mínima, mas não no sentido da moralidade, e sim de algo que envolve um mínimo cuidado com uma ou mais pessoas envolvidas na relação. É muito difícil estabelecer onde começa uma expectativa frustrada e um comportamento tóxico”, diz ele.
Para Sabóia, é um problema – seja no campo da análise, seja no campo do senso comum – tentar encaixar um comportamento pré-redes sociais e aplicativos no modus operandi da pessoa-usuária. “Quando alguém não nos responde, entendemos como se estivéssemos em uma festa e falássemos com alguém que vira o rosto para nós. Mas não é possível transpor essa relação, são metáforas que não fazem sentido porque falamos de uma tecnologia que nos oferece uma outra mediação. Você está usando um aplicativo ou as redes sociais, são recursos que constroem outras dinâmicas. Às vezes são melhores, às vezes não. Para muita gente, os aplicativos são muito eficientes: são pessoas que não gostam ou não costumam sair à noite, ou não frequentar determinados lugares, como saunas, boates, etc. Não significa que não existam problemas aí. Mas esses aplicativos reconfiguram as relações sociais, e ficamos buscando paralelos em um mundo pré-mediação que não existe mais”. Lassana Danfá complementa: “a vida na sociedade se estende nas redes, elas fazem parte da própria sociedade.”
Coaches e fragilidades
Há ainda, nesse ambiente de elevada descartabilidade do outro, uma dinâmica que se relaciona à rapidez da própria rede: eu gosto de você, interagimos caso você também se interesse por mim. Iniciamos uma relação mas, se entrarmos em conflito, eu sumo ou bloqueio e saio em busca de uma nova relação “perfeita” – o que, é claro, nunca vai acontecer.
‘O anti-intelectualismo é enorme na internet, e isso pode ser visto na cultura do coach.’
“O bloqueio dá uma sensação de onipotência, de que não precisamos mais correr atrás dos outros para me relacionar. Várias questões surgem aí: para pessoas mais inibidas, ou mesmo pessoas com autoestima baixa, as redes podem ser um lugar mais confortável para as relações afetivas. Mas é nesse ambiente que estas pessoas também são mais descartáveis. Troca-se uma pessoa por outra, e por outra e outra e assim mantemos a dinâmica da velocidade. A descartabilidade fica muito evidente”, analisa Danfá.
Mas essa velocidade não sustenta apenas essas buscas por relações: ela também marca a ânsia para resolver a própria dor que as interações interrompidas podem causar. Assim, nesse ambiente super delicado, uma outra forma de problema se interpõe, que é a busca, nas próprias redes, por soluções mágicas para superar o sentimento de rejeição e solidão, como percebe Lassana Danfá. “O anti-intelectualismo é enorme na internet, e isso pode ser visto na cultura do coach. A gente faz um trabalho no âmbito da clínica para acolher, para acompanhar. Trabalho com psicanálise, levando em consideração o caso, as especificidades. Isso leva mais tempo, é um tratamento. Mas as pessoas querem resolver estas questões de maneira rápida, através de muita superficialidade. Não há valorização do debate acadêmico e científico. Nas redes tem coach dizendo “você não precisa de psicólogo, me siga e eu te mostro o que fazer”. Não há leitura, pesquisa, supervisão séria, preparo. E na contramão disso, há o avanço da tecnologia, que nos traz novas formas de sofrimento”.
Alguns serviços de atendimento psicológico e psicanalítico gratuitos vêm sendo oferecidos nas ruas e praças do Brasil. É uma boa notícia principalmente quando racializamos a questão, uma vez que o acesso de pessoas negras a tratamentos de saúde mental são mais difíceis. No Recife, o Coletivo Pontes da Psicanálise atende, sem pré-agendamento, todos os sábados na Praça do Derby, das 10h às 12h (salvo feriados). ou casos extraordinários, e não precisa marcar. Os psicanalistas atendem na forma de rodízio. Neste texto do UOL, estão listados mais de 20 outros serviços espalhados pelo Brasil, alguns deles baseados em universidades. Caso você conheça outros exemplos e quiser divulgá-los, basta escrever para o email [email protected] (serão inseridos aqui, posteriormente).
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