Uma reunião ocorrida em 2 de agosto de 2022, às vésperas do início da campanha eleitoral, revelou uma ligação entre o ministro do Tribunal de Contas da União Jorge Oliveira, o governo de Jair Bolsonaro e figuras envolvidas em ataques às urnas eletrônicas. Indicado ao cargo pelo ex-presidente, Oliveira é filho de Jorge Francisco, que trabalhou com a família Bolsonaro por 20 anos.
O encontro, na sede da Corte de Contas, em Brasília, teve a presença do engenheiro Carlos Rocha, presidente do Instituto Voto Legal. Àquela época, o autointitulado “inventor das urnas eletrônicas” já havia sido contratado pelo PL há pelo menos dois meses, e atuava publicamente para minar a credibilidade do pleito. A informação passou despercebida do noticiário da época, mas foi localizada pelo Intercept na agenda de Jorge Oliveira, disponível no site do TCU – e se soma a outras demonstrações de simpatia do ministro bolsonarista de ataques às urnas dentro da Corte de Contas. De acordo com o próprio Rocha, a reunião no TCU tratou de questões relacionadas ao voto impresso e que as informações coletadas constam dos relatórios elaborados pelo instituto para o partido do ex-presidente.
Depois que decidiu pela inelegibilidade de Bolsonaro por oito anos “abuso de poder político” e “uso indevido dos meios de comunicação”, o TSE enviou o caso ao TCU para que a Corte de Contas analise a possibilidade do ex-presidente ressarcir os cofres públicos pelo evento de teor golpista com os embaixadores. O julgamento, ainda sem data definida, pode acarretar no prolongamento da inelegibilidade do ex-presidente. Jorge Oliveira será um dos ministros responsáveis por apreciar o assunto no Plenário.
De acordo com o registro da reunião, além do ministro e de Carlos Rocha, o encontro teve a presença do brigadeiro Maurício Pazini Brandão, que ocupava o cargo de assessor da Secretaria de Estudos Estratégicos da Presidência da República. Vale destacar que Brandão já havia trabalhado no governo Bolsonaro como assessor do então ministro Marcos Pontes, então titular de Ciência e Tecnologia. Hoje senador, o ex-astronauta admitiu ter aproximado Carlos Rocha e Bolsonaro.
A audiência no TCU também teve a participação de Luiz Antonio Marques, coordenador-geral de Estudos de Ciência, Tecnologia e Inovação do TCU, e do engenheiro Márcio Alvarenga de Abreu, sócio de Carlos Rocha em uma empresa chamada Instituto Net Zero Brasil, aberta em junho do ano passado, para prestar serviços na área de tecnologia da informação.
As alegações de Carlos Rocha, do Instituto Voto Legal e de outros indivíduos envolvidos em questionamentos à lisura das urnas eletrônicas já foram amplamente refutadas por especialistas, além de serem consideradas infundadas pelo próprio Tribunal Superior Eleitoral, o TSE. Por causa da atuação do engenheiro e de seu ataque às urnas, o PL, de Bolsonaro, foi condenado a uma multa de R$ 22 milhões pelo Supremo Tribunal Federal, em outubro do ano passado.
O Intercept entrou em contato com o gabinete de Jorge Oliveira no TCU com questionamentos sobre o teor da reunião e solicitando a íntegra da ata, caso tivesse sido produzida. Em resposta, a assessoria de imprensa da Corte afirmou apenas: “O ministro Jorge Oliveira não vai se manifestar”.
O engenheiro Carlos Rocha também foi procurado. Apesar de admitir que tratou das urnas e utilizou informações do TCU para basear o relatório de teor golpista, Rocha disse que o Instituto Voto Legal jamais atuou “publicamente para minar a credibilidade do pleito”.
Oliveira defendeu vitória do voto impresso
O encontro com figuras envolvidas nos ataques às urnas não foi a única demonstração do ministro Jorge Oliveira de que simpatizava com as alegações golpistas. Ele chegou a se manifestar, em 11 de agosto de 2021, que a tese de que é necessário o voto impresso no sistema eleitoral brasileiro “foi vencedora” na Câmara dos Deputados, pelo fato de a Proposta de Emenda à Constituição do Voto Impresso ter tido 229 votos favoráveis contra 218 contrários – omitindo o fato de que a maioria simples não era suficiente para aprovar a proposta, uma vez que eram necessários 308 votos para sua confirmação .
“Não posso tratar com desrespeito a tese que tendia a defender o voto auditável nos termos que tratava a PEC”, argumentou o ministro, em sessão do TCU que tratava sobre um documento produzido pela Corte que garantia a lisura das urnas. Ele afirmou ter “muito respeito aos 229 parlamentares da Câmara dos Deputados que votaram nesta tese”.
Na ocasião, Oliveira chegou a pedir vistas de 60 dias – o máximo permitido – de um relatório onde a área técnica do tribunal apontava que o voto eletrônico é seguro e auditável. A aprovação do documento, que poderia ter sido feita em 11 de agosto de 2021, só foi deliberada pelo Plenário do TCU em 20 de outubro de 2021.
No papel de revisor do relatório assinado pelo ministro Bruno Dantas, Jorge Oliveira discordou dos demais ministros e argumentou que considerava “prematura qualquer conclusão acerca da matéria”. Segundo ele, o TCU deveria realizar uma segunda fase da auditoria, incluindo a análise sobre outros aspectos do sistema eleitoral, antes da Corte deliberar sobre o tema. Das seis páginas do voto, Oliveira dedicou quatro a elencar possíveis fragilidades das urnas.
Em um trecho do documento, Oliveira listou , em termos técnicos, alegações de caráter golpista. Segundo ele, seriam riscos do sistema de votação brasileira os seguintes pontos: a baixa governança no desenvolvimento e manutenção dos sistemas; fragilidades do processo de auditabilidade, com impacto na segurança das urnas; a possibilidade de identificação do voto do eleitor, resultando na quebra do sigilo do voto; a divulgação de dados errados ou sigilosos; o acesso indevido às bases de dados e a violação do sistema interno do TSE de transmissão e consolidação dos dados, com “possibilidade de manipulações imperceptíveis”
Nada disso foi comprovado nas sucessíveis auditorias técnicas realizadas antes das eleições de 2022.
Parentes empregados pelo clã Bolsonaro
O alinhamento de Oliveira e Bolsonaro nunca foi escondido. No final de 2020, quando se preparava para deixar a Secretaria-Geral da Presidência da República para assumir o cargo de ministro do TCU, ele afirmou taxativamente: “Vou manter a amizade com ele. Pretendo frequentar a casa do presidente, seja ele presidente ou não”.
O então ministro prosseguiu: “As críticas são naturais, mas não vou fingir que não sou amigo do presidente. É uma relação até de família. Pelo novo cargo, não vou negar que não existe uma amizade, mas não vou me furtar de exercer meu dever funcional e para isso terei uma assessoria técnica muito qualificada. Não ocorrem decisões monocráticas para beneficiar o presidente, é impossível que isso aconteça”.
Em 2019, uma reportagem do jornal O Globo mostrou que Oliveira teve familiares empregados nos gabinetes do clã Bolsonaro. Foram três — pai, mãe e tia — em períodos distintos entre 2001 e 2015. Tia do ministro, Márcia Salgado de Oliveira apareceu nos registros da Assembleia Legislativa do Rio como funcionária de Flávio Bolsonaro de 2003 até fevereiro de 2021. Em 2014, porém, num processo que tramitou no Juizado Especial da Comarca de Mesquita, na Baixada Fluminense, Márcia apresentou uma procuração na qual informou que sua ocupação era “do lar”. Na publicação, O Globo indica que há indícios que ela seria uma “funcionária fantasma”.
Homem de confiança bolsonarista há pelo menos duas décadas, Oliveira foi indicado para o TCU em outubro de 2020. Antes, chegou até a ser cogitado para uma cadeira no Supremo Tribunal Federal. Na Corte de Contas, substituiu o atual ministro da Defesa de Lula, José Múcio Monteiro, que se aposentou compulsoriamente aos 75 anos. Caso fique no cargo até a aposentadoria, Oliveira ficará na Corte por 30 anos – ele assumiu o posto com 45.
Tropa bolsonarista no TCU
A inelegibilidade de oito anos imposta pelo TSE ao ex-presidente Bolsonaro, justamente por seus ataques às urnas, não diminuiu a defesa de que a punição do ex-capitão seja ainda maior. A expectativa dos adversários, agora, é de que o TCU também condene Bolsonaro e alongue para além de 2030, a proibição dele disputar novas eleições. Mas isso esbarra exatamente em Jorge Oliveira – e em outros dois aliados bolsonaristas no TCU: os ministros Jonathan de Jesus e Augusto Nardes.
Ao condenar o ex-presidente em 30 de junho, o TSE remeteu a decisão ao TCU para apurar eventual dano aos cofres públicos na realização da reunião com embaixadores, na qual ele questionou a integridade das urnas eletrônicas. Quem ditará o ritmo da tramitação do caso TCU é o ministro Jhonatan de Jesus. Ex-deputado pelo Republicanos de Roraima e filho do senador Mecias de Jesus, ele chegou ao TCU pelas mãos do presidente da Câmara, Arthur Lira, do PP de Alagoas, que era aliado de Bolsonaro enquanto ele estava na Presidência da República.
Em seu discurso de posse no TCU, Jhonatan de Jesus prometeu não usar seu cargo para perseguições políticas – o que foi entendido como um recado de que não atuará para prejudicar Bolsonaro, seu antigo aliado. “Ninguém sob a minha orientação será condenado baseado em interesses de grupos ou de pessoas que queiram transformar o Tribunal de Contas da União numa arena de perseguição política dos seus adversários”, disse o ministro.
Outro ponto de apoio bolsonarista em um provável julgamento no TCU é Augusto Nardes, o ministro que enviou um áudio com teor golpista em um grupo de WhatsApp , em novembro do ano passado. Na mensagem, fez a sugestão de que as Forças Armadas estavam prontas para um golpe de estado. Um dia após compartilhar esse áudio, Nardes entrou com pedido de licença médica no tribunal – retornou ao cargo em janeiro deste ano.
Na gravação, Nardes afirmava ainda ter conversado com o então presidente Bolsonaro, que estaria preparado para o que aconteceria no país em breve. No grupo para qual o áudio foi enviado havia empresários do agronegócio.
Você sabia que...
O Intercept é quase inteiramente movido por seus leitores?
E quase todo esse financiamento vem de doadores mensais?
Isso nos torna completamente diferentes de todas as outras redações que você conhece. O apoio de pessoas como você nos dá a independência de que precisamos para investigar qualquer pessoa, em qualquer lugar, sem medo e sem rabo preso.
E o resultado? Centenas de investigações importantes que mudam a sociedade e as leis e impedem que abusadores poderosos continuem impunes. Impacto que chama!
O Intercept é pequeno, mas poderoso. No entanto, o número de apoiadores mensais caiu 15% este ano e isso está ameaçando nossa capacidade de fazer o trabalho importante que você espera – como o que você acabou de ler.
Precisamos de 1.000 novos doadores mensais até o final do mês para manter nossa operação sustentável.
Podemos contar com você por R$ 20 por mês?