Fabiana Moraes

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'Sai daqui, pet': desumanização se fortalece nas redes sociais com linguagem moderninha 

Hate propagado nas redes por grupos progressistas contra seus próprios membros deixaria até os mais bolsonaristas ruborizados.

Emojis de carinhas bravas ao redor de um emoji assustado.

Nas redes sociais, o outro ganha papel de monstro – e deve sumir. Ilustração: Intercept Brasil

Como transformamos o outro em coisa, principalmente nas redes? Em um bicho a ser chutado, em pobre coitado, menor, débil, em incômodo a ser violado ou eliminado? Em uma síntese, em não humano? 

É simples: o reduzimos a uma ideia, um objeto, um animal acéfalo, um pedaço de gente. O reduzimos a um pau, a uma boceta, a um pavor nosso que é projetado em alguém. Nessa operação, somos o normal, o correto, o que deve ser poupado. Ao outro, cabe o papel de monstro. E o monstro sempre precisa sumir.

As minhas duas últimas colunas escritas neste Intercept – uma sobre o impacto cultural e social da Barbie e outra sobre a misoginia de parte de homens cisgêneros gays – geraram debates importantes que circularam nas redes e foram amplificados por diversos sites e perfis nas redes. Pontos de vista diferentes, tensionamentos, reflexões. Operações fundamentais em qualquer debate que valha, motores de quem se propõe a pensar primeiro e a reagir depois.

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Mas o barulho gerado também evidenciou o vagalhão de desumanização que corre solto nas redes sociais, esse local que tem forjado cidadanias fragilíssimas, calcadas quase completamente no eu para o eu e na simplificação de tudo. Um fenômeno próprio do que a revista norte-americana Time chamou, lá atrás, de geração Me Me Me. Em milhares de comentários presentes em ambos os textos (no Instagram e no ex-Twitter), o grau de violência deixaria grupos bolsonaristas ruborizados. Muita transfobia (inclusive vinda de mulheres e homens gays), muita misoginia, muito racismo velado, muita homofobia. Muito horror ao outro, enfim.

Ficou explícito o quanto, a despeito da popularização da interseccionalidade, questões fundamentais como raça, classe, gênero e origem geográfica, por exemplo, ainda passam muito longe do debate nas redes e são esquecidas em nome desse “eu”, o que é uma tragédia em se tratando de Brasil. Mas não é só isso: também em um ambiente virtual no qual tanto se fala sobre cuidado de si e de saúde mental, percebe-se que não há limites para a destruição simbólica das presenças que estão ao redor, principalmente quando elas expressam pensamentos divergentes.

Para mim, foi o show daquilo que o escritor Alex de Castro tratou no livro “Outrofobia“, esse horror àquilo que vem da outra ou do outro e que eu considero menor, débil, pobre coitado. O que considero monstro, enfim. 

Foi, também, um show de arrogância e do não reconhecimento daquilo que nos faz gente. Alguns exemplos: “O motorista só errou porque aceitou a corrida”, disse alguém se referindo ao caso da moça deixada desacordada na rua por um condutor de aplicativo e que, minutos depois, foi levada por outro homem e estuprada

“Ainda bem que não tenho uma BCTA”, escreveu um homem que usa a bandeira do arco-íris nos seus perfis nas redes sociais, referindo-se a bocetas

“O cara coloca batom, diz que se sente mulher, e eu tenho que respeitar isso?”, falou uma moça. 

“Gay pet de mulher, que ridículo!”, gritou online um rapaz para outro homem gay que concordou sobre a misoginia entre seu grupo. 

“Pet” (animal de estimação), aliás, é o xingamento da vez. Mas a roupagem moderninha e o uso do inglês não se diferem dos anacrônicos “vaca” ou “viado”, ditos usualmente para se referir negativamente a alguém.

Nessa espécie de fratricídio digital, lembrei daquele não distante março de 2020, ali no começo da pandemia, quando estávamos mundialmente apavoradas e com a fotografia de nossa finitude bem impressa à nossa frente. Quando vimos os diferentes graus de sofrimento pelos quais nós, como sociedade, passamos, com gente tendo que se expor a um vírus desconhecido para conseguir arrancar uns trocados para viver, por exemplo. No meio daquela tragédia, volta e meia pensávamos que aquele horror iria ao menos nos melhorar como sociedade. Iria. Deveria.

Fiquei pensando também nas tantas mulheres pobres, pretas e cisgêneras que trabalharam décadas sem receber dinheiro algum, exploradas, enganadas. Uma delas serviu a três gerações de uma mesma família e só foi resgatada aos 84 anos de idade. Lembrei de todas quando li o “ainda bem que não tenho uma BCTA”. 

Pensei também em um colega, um homem transgênero, que andava com sua namorada em uma rua no centro de Recife à noite quando foram abordados por um assaltante. Ao perceber que estava levando o celular de um cara trans, o ladrão resolveu esmurrá-lo, pois se sentiu “enganado”. Sua transexualidade, sua boceta, assim, adicionavam uma nova camada de vulnerabilidade para sua existência. Saber que uma parcela expressiva da população, incluindo aquela que se entende progressista, acha que uma pessoa atravessa essa violência apenas para “performar” um gênero é aterrador. A desumanização está embutida aí.

As poucas frases/xingamentos que eu trouxe acima não foram dirigidas somente a mim ou às tantas pessoas envolvidas nas discussões levantadas: antes, são falas públicas que expressam essa cidadania fragilíssima e autocentrada que nos molda e afunda enquanto sociedade

Nessa forja, o mundo precisa responder não ao que ele produz para a maioria da população – desigualdades extremas calcadas em raça, gênero, territórios, etc. – mas ao desejo dos algoritmos. Tudo nas redes é simplificado e superrápido, exatamente o oposto das questões que nos cercam neste exato momento. 

É de queimar o coco ver diversas mulheres que se apresentam como feministas, por exemplo, descendo o sarrafo (“burra!”) em outras mulheres pelo fato de as últimas realizarem uma leitura crítica do impacto cultural de uma boneca. É revelador, aliás, que uma boneca mereça mais respeito que uma pessoa. Ou que alguém ache, em um mundo destruído ambientalmente e com recordes de imigrantes e refugiados, um mundo que apresenta ainda mais desafios para uma população pobre e explorada, que ainda precisamos de discriminações transfóbicas vindas de autodenominados TERG (sigla em em inglês para gays radicais trans-excludentes) ou TERF (feministas radicais trans-excludentes). 

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No prefácio do livro “A origem dos outros”, da necessária escritora Toni Morrison, o também escritor Ta-Nehisi Coates acerta maravilhosamente aquilo que sustenta a obra da autora: Toni entendeu, observando o racismo, como milhões de pessoas e grupos – escravocratas, empresariado, patrões, etc. – só confirmavam a própria humanidade ao cometer atos desumanos

Já a intelectual e ativista cubano-jamaicana Sylvia Wynter acerta em cheio quando localiza historicamente a concepção de “humanidade” que baseia tanto nosso imaginário quanto nossas instituições (o direito, a medicina, o jornalismo, etc.).

Ela tem raiz tanto na divisão cristão-pagão própria da Idade Média na Europa, quanto na concepção de Homem, o branco que se distinguiria de outros povos “menores”, como nativos, negros, negras, indígenas. Assim como os pagãos e as pagãs, todos os últimos seriam outros, monstros, uma “variante menos racional, menos civilizada, menos humana, do Homem.” 

Essa ideia se naturalizou radicalmente e nos baseia socialmente agora – basta lembrar que a Polícia Militar brasileira, hoje formada em grande parte por homens pobres e pretos, foi criada no século 19 para garantir a segurança da nobreza portuguesa. É a PM que mais morre e a PM que mais mata Ágatas, Eloás, Thiagos

Falando em Sylvia e em Portugal e nessa naturalização da desumanização, me vem também Muniz Sodré: em seu livro “Pensar Nagô“, ele traz uma famosa frase do poeta Fernando Pessoa ao defender o imperialismo de expansão: “A escravatura é lógica e legítima: um zulu ou landim não representa coisa alguma de útil neste mundo […] o legítimo é obrigá-lo, visto que não é gente, a servir aos fins da civilização”. 

Importante entender que raça pode dar lugar a outros marcadores usados para excluir – ser mulher cisgênera, ser homem ou mulher transgênero/a, ser pobre, ser nordestina, favelada, pessoa com deficiência, etc. 

Combinados em um só pessoa, eles tornam uma existência ainda mais dramática, uma vez que continuamos muitas vezes – como mostra boa parte dos comentários nas redes sociais – a confirmar nossa humanidade desumanizando nossos iguais. Hoje, outro exemplo, correm no Congresso Nacional pedidos de cassação de deputadas federais, boa parte delas negras ou indígenas. É muito sintomático que um lugar historicamente ocupado por homens brancos persiga mulheres enquanto ex-deputados homenagearam torturadores sem passar por qualquer constrangimento – e se tornaram presidentes.

Reagir primeiro e pensar depois, lógica que privilegia a desumanização (um outro nome para o hate), as big techs e suas redes, não só transforma a/o outra/o outro em monstro a ser eliminado. Ao optar por reagir antes de pensar, vejam só, abrimos mão daquilo que também nos faz humanos: nossa capacidade de reflexão. As empresas que funcionam à base de ódio e reações instantâneas agradecem.

O hate impede um pensamento minimamente complexo, que se proponha a olhar mais atentamente para nosso entorno. Nele, a exploração intensa da força de trabalho sob pagamentos ridículos, a falta de proteção social, a rapinagem nas escolas públicas, a falta de acesso à água, etc., se combinam ao racismo, à misoginia, à transfobia

Nos comentários nas redes, algumas pessoas, também horrorizadas com o nível de violência exposto, falaram da necessidade de mais letramento racial, por exemplo. Concordo. Mas além dele, me parece que precisamos investir no conhecimento do que é nosso próprio país, na leitura interseccional proposta por autoras como Carla Akotirene – que inclusive chama atenção para novas formas de opressão que surgem em uma modernidade baseada na exploração, na monstrificação de bilhões de pessoas. Ética, autorresponsabilização e percepção da coexistência devem estar igualmente articulados aí.

***

Lendo “Um apartamento em Urano”, do filósofo Paul B. Preciado, me deparei com um trecho maravilhoso que nos faz pensar sobre humanização e categorias de existência. O deixo registrado aqui.

Vocês realmente acreditam que são homossexuais ou heterossexuais, intersexuais ou transexuais? Essas distinções são preocupantes? Confiam nelas? Baseia-se nelas o sentido mesmo de sua identidade humana? […] A homossexualidade, a heterossexualidade, a interssexualidade e a transexualidade não existem fora de uma epistemologia colonial e capitalista […]. É o capital, e não a vida, que se reproduz. Essas categorias são o mapa imposto pelo poder, não o território da vida. Mas se a homossexualidade, a heterossexualidade, a interssexualidade e a transexualidade não existem, então quem somos nós? Como amamos? Vamos imaginá-lo.

***

Pensando no jornalismo brasileiro, escrevi, ao lado do pesquisador Jorge Ijuim, o artigo “Repensar a ‘humanidade’ – limites de um conceito na imprensa e apontamentos para superar a desumanização”. Está aqui.

A pesquisadora Mariana Valente, diretora do InternetLab, acaba de publicar o livro Misoginia na internet.

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