No último fim de semana, dois grupos de neonazistas americanos desfilaram pelas ruas da cidade de Orlando, na Flórida. Uniformizados e escondendo o rosto com balaclavas, os supremacistas empunhavam bandeiras com a suástica, faziam a saudação romana e gritavam “White Power” e “Estamos em todos os lugares”.
Um dos grupos é o Blood Tribe, criado em 2020 por Christopher Pohlhaus, um ex-fuzileiro naval dos EUA que ganhou fama ao apresentar um podcast voltado para a propaganda dos ideais da supremacia branca. Recentemente ele comprou um terreno de 40.000 metros quadrados em uma zona rural para abrigar supremacistas brancos e servir como campo de treinamento militar. Um dos objetivos, segundo Pohlhaus, é a criação de um grupo paramilitar para impedir a entrada de imigrantes nos EUA. Gays, negros e judeus também são alvo da Blood Tribe. Nos protestos, um dos principais gritos de guerra do grupo é uma ameaça: “Haverá sangue! Haverá sangue!”.
As manifestações em defesa dos ideais neonazistas não são uma novidade nos EUA. Lembremos dos episódios em Charlottesville em 2017, quando neonazistas tomaram as ruas e protagonizaram cenas de violência que obrigaram o governador da Virgínia a declarar estado de emergência.
Todas essas manifestações de ódio estão garantidas pelas leis americanas. Defender a supremacia branca e pregar a eliminação de determinados grupos sociais são práticas cobertas pela Primeira Emenda da constituição, que garante uma liberdade de expressão absoluta para os cidadãos americanos. Na “terra da liberdade”, os nazistas podem desfrutar do direito de se organizarem em milícias e ir para as ruas para pregar a extinção da liberdade das minorias. É esse o paraíso libertário tão sonhado por alguns brasileiros, como o influencer Monark e o deputado federal Kim Kataguiri, do União Brasil do MBL.
Para eles, a Alemanha cometeu um erro ao criminalizar o nazismo depois do Holocausto. Para os nossos guerreirinhos da liberdade de expressão, os nazistas devem poder se organizar em partidos políticos e concorrer às eleições. Parece incrível imaginar que há quem dormeria em paz com a possibilidade de abrir as portas da democracia para quem quer acabar com ela — tudo em nome de uma tara por um conceito estúpido de liberdade de expressão irrestrita.
Para os nossos guerreirinhos da liberdade de expressão, os nazistas devem poder se organizar em partidos políticos e concorrer às eleições.
Mas não são apenas esses jovens que advogam a ideia. Toda vez que se levanta o debate sobre os limites da liberdade de expressão, as leis americanas são apontadas como referência por boa parte da direita brasileira. Dos liberais aos extremistas, todos apontam os EUA como um exemplo a ser seguido – e o Brasil a ser rejeitado. Aqui, a liberdade de expressão também é garantida pela Constituição, mas desde que não fira outros direitos como a não discriminação e a dignidade da pessoa humana.
Já é ponto pacífico no direito brasileiro que a liberdade de expressão não compreende a defesa do nazismo ou qualquer discurso de ódio. Em 2003, o STF condenou à prisão um escritor nazista que publicou uma série de obras negando o Holocausto. Conhecido como o caso Ellwanger, o julgamento consolidou o entendimento do STF quanto aos limites da liberdade de expressão.
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Mesmo proibidos por lei, os grupos neonazistas, que sempre tiveram um tamanho irrelevante, cresceram 270% durante o governo de Jair Bolsonaro. Não é à toa que o ex-presidente é uma das principais referências do movimento neonazista brasileiro. Relembremos alguns episódios. Em 2004, o então deputado Jair Bolsonaro enviou uma carta a grupos nazistas dizendo: “Vocês são a razão da existência do meu mandato.” Em 2011, grupos nazistas convocaram uma manifestação em defesa das declarações racistas e homofóbicas de Bolsonaro em São Paulo, que prestou apoio ao ato. Sete supremacistas identificados pela polícia no ato foram detidos. Em 2013, a polícia encontrou uma carta enviada por Jair Bolsonaro na casa de um nazista que foi preso. É inegável que o crescimento do neonazismo no Brasil se confunde com o crescimento do bolsonarismo. Se na clandestinidade já agem com certa desenvoltura, é fácil imaginar o estrago que fariam se a divulgação do nazismo fosse garantida pela Constituição. Não é de se estranhar que a defesa da liberdade de expressão absoluta atualmente seja uma bandeira empunhada principalmente pela extrema direita brasileira.
É inegável que o crescimento do neonazismo no Brasil se confunde com o crescimento do bolsonarismo.
Só a ignorância e uma certa dose de complexo de vira-latas podem explicar essa obsessão pelo princípio da liberdade absoluta garantido pela constituição americana. No Brasil, Christopher Pohlhaus seria preso. Nos EUA, ele pôde criar fama como influencer nazista, montar uma milícia nazi e se sentir à vontade para sair nas ruas com seu bando armado destilando ódio contra minorias. Esse é o sonho americano que faz a cabeça dos nossos reaças “libertários”.
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