Em agosto de 2022, 13 pontos de apoio da prefeitura de São Paulo às pessoas em situação de vulnerabilidade social deixaram de prestar atendimento. Afundado em dívidas e denúncias de corrupção, o Instituto Santa Lúcia, organização social contratada pela prefeitura para gerenciá-los, rompeu unilateralmente os convênios e saiu da vida pública. Seus funcionários de campo foram demitidos sumariamente. Os contratos foram emergencialmente repassados pela prefeitura de Ricardo Nunes a outra ONG.
A organização possuía contratos com o município havia mais de uma década, mas a parceria acabou. No vácuo, entrou em cena uma outra organização chamada Instituto Pilar. A nova ONG assumiu os contratos, recontratou os funcionários demitidos e passou a receber os mais de R$ 10 milhões de reais anuais destinados à prestação do serviço.
Faria sentido, não fosse um detalhe: a diretoria do Instituto Pilar é composta por ex-membros da diretoria do Instituto Santa Lúcia. E, mesmo sem fazer parte do organograma, é Genário Nascimento da Cruz, compadre do prefeito de São Paulo, Ricardo Nunes, do MDB, a peça central da movimentação entre os dois institutos. É quase a mesma organização, mas com outro CNPJ. E isso é um problema porque o Instituto Santa Lúcia é processado pela própria prefeitura de São Paulo por improbidade administrativa.
Um procedimento administrativo da prefeitura, instaurado em 2013 para analisar os contratos firmados com o Instituto Santa Lúcia, constatou que Cruz teria, entre 2006 e 2013, contratado sua própria empresa de aluguel de veículos para a prestação do serviço de mobilidade necessário ao trabalho da organização social – pago pela prefeitura. A Locação de Veículos GNC, nomeada com um acrônimo do nome de Cruz, havia sido contratada quase em regime de exclusividade pelo Instituto Santa Lúcia. No período analisado, apenas em 2012 outras empresas também prestaram o serviço.
No período, o Instituto Santa Lúcia repassou R$ 8,2 milhões à empresa de seu presidente, o que posteriormente se enquadrou como improbidade administrativa e enriquecimento ilícito. Quando a prefeitura solicitou ao instituto os comprovantes de pagamento à GNC e a placa dos veículos utilizados, “dada a relevância dos valores pagos a título de ‘aluguel de veículos’”, a organização não apresentou nada. A auditoria realizada também constatou que várias notas fiscais emitidas pela empresa de locação de automóveis foram lançadas em duplicidade.
A investigação serviu de base para uma ação civil pública por improbidade administrativa. A ação pediu em urgência o bloqueio de bens dos envolvidos até o valor de R$ 108 milhões dado à causa – R$ 27 milhões correspondentes ao valor desviado, corrigido monetariamente, e R$ 81 milhões como uma multa de três vezes o desvio, pena prevista no ordenamento jurídico sobre improbidade administrativa. O pedido foi aceito por Liliane Keyko Hioki, juíza do Tribunal de Justiça de São Paulo, em outubro de 2018. Ainda cabe recurso.
É da Secretaria Municipal de Desenvolvimento e Assistência Social a obrigação de fiscalizar a prestação dos serviços contratados de organizações sociais pela municipalidade. Por meio de prestações de contas mensais e anuais, as organizações devem comprovar a destinação dos valores recebidos da prefeitura, que paga desde o aluguel de veículos e compra de equipamentos necessários ao trabalho até as verbas trabalhistas dos funcionários da organização que atuam nos serviços conveniados.
Mas, durante toda sua presidência, Cruz teve um apoio especial na repartição. Renata Aparecida Ferreira, então servidora da prefeitura, era esposa dele. À época, eles tinham união estável e um filho. Um exemplo de parceria entre os dois foi anexado à investigação pelo Departamento de Procedimentos Disciplinares da Prefeitura de São Paulo.
Em abril de 2008, o Instituto Santa Lúcia pleiteou um aumento na frota de veículos alugados. O pedido foi analisado e encaminhado para aprovação pela própria Renata Ferreira, servidora da Secretaria Municipal de Desenvolvimento e Assistência Social. Ela escreveu três páginas para justificar a “conveniência do atendimento do pedido”.
Segundo o Departamento de Procedimentos Disciplinares, até ser alocada em outra função, Ferreira “manteve sob sua responsabilidade a avaliação dos pedidos de aditamento apresentados pela entidade”. Para o promotor do Ministério Público de São Paulo, Silvio Antonio Marques, a organização se beneficiava disso. Ferreira está sendo processada pelo município ao lado de Cruz, sua empresa de locação de veículos e o Instituto Santa Lúcia.
Mas o processo, que corre desde 2018, ainda está em fase inicial. Nem Cruz, nem Ferreira foram notificados porque seus endereços não foram encontrados. Mas nós conseguimos contato e enviamos perguntas aos dois. Cruz não nos respondeu, mas falamos ao telefone com Ferreira.
Ela nega ter participado de qualquer embuste enquanto funcionária da prefeitura e alega que, à época, sequer sabia que seu companheiro possuía uma empresa de locação de veículos. Ferreira disse não saber que um processo corria contra ela e revelou estar com medo de ser associada de alguma forma à Cruz. Eles estão separados desde 2013, e Cruz teria ameaçado de morte Ferreira. Segundo ela, um processo foi aberto e ele foi condenado com base na Lei Maria da Penha. Tivemos acesso à ata da reunião em que uma medida protetiva foi instaurada para assegurar a segurança de Ferreira, determinando que Cruz não pode se aproximar a menos de 300 metros da ex-esposa, ou falar com ela através de qualquer meio. Hoje eles moram no mesmo prédio.
Quem tem um amigo, tem tudo
Genário Cruz cerca o poder há bastante tempo. Em 2010, se candidatou a deputado estadual pelo PV em São Paulo. Não conseguiu ser eleito. Em 2012, ainda no mesmo partido, a tentativa foi para a vereança da capital – novamente sem sucesso.
Nessa mesma época, Ricardo Nunes era vereador em São Paulo pelo PMDB. Nunes mantinha uma relação amistosa com Cruz, era seu amigo de Facebook e estava ciente das ações realizadas pelo Instituto Santa Lúcia. Em uma publicação de 2014 no Facebook, em que Cruz aparece sorrindo ao lado dos funcionários do Santa Lúcia, Nunes deixou um comentário: “time de gente boa!”.
À época do comentário, Cruz já havia sido investigado, não era mais presidente oficial do instituto e sua antiga esposa já possuía uma medida de restrição contra ele. Mas a proximidade entre Nunes e Cruz não foi abalada. Pelo contrário, os laços se estreitaram: Nunes foi, logo em seguida, padrinho do novo casamento de Cruz – com uma mulher que, hoje, integra o Instituto Pilar, segundo pessoas ligadas à família ouvidas pelo Intercept.
Pessoas ouvidas pela reportagem também apontam que o prefeito de São Paulo visita a casa de Cruz – no mesmo endereço que o poder judiciário não possui e, por isso, não consegue intimar o denunciado a depor na ação civil pública por improbidade administrativa em curso desde 2018.
Enviamos perguntas ao prefeito Ricardo Nunes sobre sua relação com Cruz e o Instituto Santa Lúcia, mas não houve resposta.
Mesma organização, outro CNPJ
O aumento nos repasses ao Instituto Pilar acontece de maneira sistemática desde 2019, quando a organização havia recebido menos de R$ 5 milhões durante todo o ano pelos serviços prestados. Em 2020 o valor dos repasses beirou R$ 7 milhões, e desde 2021, quando Ricardo Nunes assumiu a prefeitura da capital, o valor anual está acima de R$ 10 milhões.
Em abril de 2023, seis meses após assumir de maneira interina os contratos abandonados pelo Instituto Santa Lúcia, o Instituto Pilar foi efetivado como o prestador de serviços, dessa vez por meio de chamamento público e edital. Isso fez com que a verba recebida pela organização deslanchasse ainda mais.
Em 2022, o Instituto Pilar havia recebido R$ 13,5 milhões da Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social, já contando os valores repassados por assumir os contratos que antes eram de outra organização. Apenas nos primeiros sete meses de 2023, o valor recebido já era de R$ 18,5 milhões – um aumento de 37%, que vai subir ainda mais.
Questionamos a Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social sobre o processo de contratação do Instituto Pilar. O órgão afirma que em todo o processo foram respeitadas as diretrizes e os trâmites legais. A resposta ainda diz que “o corpo diretivo de ambas as instituições, composto pelo presidente e por três membros do conselho fiscal, é integrado por pessoas diferentes”. Não é inteiramente verdade.
No momento da contratação do Instituto Pilar, de fato, nenhum membro do corpo diretivo da organização pertencia ao Instituto Santa Lúcia. A relação entre as duas organizações, porém, é bem próxima, e ancorada em uma única pessoa: Cruz.
Maria Magda dos Reis é presidente do Instituto Pilar desde 2018. No mesmo período, porém, ela foi membro do Instituto Santa Lúcia. Seu MEI, aberto em 2021, foi registrado com seu e-mail funcional do antigo instituto: [email protected]. Enviamos perguntas ao e-mail indicado por ela, mas não obtivemos retorno.
Enquanto Reis presidia o Instituto Pilar, o Instituto Santa Lúcia era presidido por Antônio Araújo dos Santos – que se manteve no cargo até 2022. A proximidade entre os dois é grande: além de terem trabalhado no mesmo lugar, Reis e Santos são vizinhos. Os dois também constam na prestação de contas da campanha eleitoral de Genário Cruz em 2012, quando se candidatou à vereança da capital. Reis doou R$ 1,5 mil ao chefe, enquanto Santos recebeu R$ 622 a título de “despesas com pessoal”.
Itamar Moreira do Carmo é outro elo entre os institutos. Em seu currículo Lattes, Carmo indica ter sido coordenador, supervisor e, por fim, diretor do Instituto Santa Lúcia, atuando na organização entre 2006 e 2020 – trabalhando ao lado de Cruz, Reis e Santos. O currículo também indica que ele é “gestor” do Instituto Pilar desde 2018. Em documentos do Instituto Pilar obtidos pelo Intercept, ele assina como procurador da organização.
Assim como seu antigo chefe, Carmo também integra uma empresa de locação de veículos. Desde 2020, seu Lattes indica, ele é “gerente administrativo” da Sambaíba Rent a Car – empresa fundada em 2009 por Cruz e depois repassada a Gildenon Nascimento Damasceno, seu sobrinho, hoje responsável pela empresa.
Como Reis e Santos, o nome de Carmo também consta na prestação de contas da campanha de Cruz em 2012. Então funcionário do Instituto Santa Lúcia, ele teria doado R$ 3 mil à campanha do chefe.
Copia, mas não faz igual
A Polícia Civil de São Paulo atualmente investiga o Instituto Pilar e a destinação da verba recebida pela organização da Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social. Relatório de auditoria da Controladoria Geral do Município apontou que, em 2019, o instituto repassou R$ 731 mil a uma empresa de locação de veículos – a Henrrycar, que pertence a pertence a Carlos Henrique Santos Amaral. Até o momento, não existem provas de que o serviço pago pelo Instituto Pilar foi prestado.
O Instituto Pilar não apenas está sendo investigado pelo mesmo motivo que o Instituto Santa Lúcia responde judicialmente – mas a própria Henrrycar também é um elo entre as organizações.
A empresa foi fundada após o Instituto Pilar firmar contrato com a prefeitura de São Paulo e tinha na instituição seu único cliente. Coincidentemente, no entanto, a sede da empresa de locação de veículos, na Vila Mariana, tem o mesmo endereço que a KBP Assessoria Empresarial – empresa cujo único sócio é Kleber Braga Pereira, hoje presidente do Instituto Santa Lúcia.
A KBP é nomeada com um acrônimo, assim como Cruz chamou sua locadora de veículos processada pela prefeitura de São Paulo. Mas antes, era a Auto Car Locadora de Veículos, uma locadora que prestava serviços ao Instituto Santa Lúcia e recebeu da organização em 2019, segundo o mesmo relatório da Controladoria Geral do Município que norteia a investigação da Polícia Civil contra o Instituto Pilar, mais de R$ 2 milhões em pagamento.
‘Deve ter alguém favorecendo’
Funcionários do Instituto Santa Lúcia que prestavam serviços para a prefeitura não sabiam que a organização revogaria seus contratos. Foi quando férias que estavam marcadas para agosto de 2022 foram canceladas que eles perceberam que algo estava prestes a acontecer. Entre os cerca de 300 funcionários lotados nas funções essenciais ao cumprimento dos convênios firmados com a prefeitura havia orientadores; profissionais em campo para atendimento primário às pessoas atendidas; técnicos do serviço, que também iam às ruas; e gerentes, que supervisionavam os 13 pontos de acolhimento sob responsabilidade da organização.
Mas eles não precisaram buscar um novo emprego. Antes mesmo de serem mandados embora, os dispensados foram avisados que quem quisesse ir para o Instituto Pilar seria recontratado.
Ex-funcionária diz não entender como os contratos foram renovados por tanto tempo com tantas irregularidades administrativas e trabalhistas.
O anúncio não chegou por alguém da nova organização a assumir os contratos, mas por pessoas do próprio Instituto Santa Lúcia. Parte massiva dos trabalhadores aceitou a proposta de migrar de empresa, e o exame demissional foi um vislumbre da proximidade entre as organizações: ao entrar na sala, os funcionários eram perguntados pelo médico se estavam ali para fazer o exame demissional ou o demissional mais o admissional. Os exames, de empregadores diferentes, foram feitos no mesmo dia, na mesma clínica, pelo mesmo médico.
Apesar de receber da Secretaria Municipal de Desenvolvimento e Assistência Social dinheiro para o pagamento dos funcionários e de todas as verbas trabalhistas, como FGTS e, em caso de demissão, rescisão, o Instituto Santa Lúcia tinha um histórico de mau pagamento e falta de apoio aos seus colaboradores.
O Intercept teve acesso ao extrato do FGTS de seis ex-funcionários, datados entre 2016 e 2022. Em todos os casos, um grande número de depósitos era feito em atraso e, em alguns, parte dos depósitos sequer foi feita. O problema, segundo uma ex-funcionária, se estendia também ao pagamento dos salários, que atrasava e foi reduzido em 2019 pela organização. A ação levou o Instituto Santa Lúcia a um acordo com o Ministério Público para reparar o dano coletivo e evitar uma ação judicial.
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A conduta trabalhista do Instituto Santa Lúcia culminou em desamparo no momento de desemprego da massa de trabalhadores da organização. Os funcionários demitidos foram levados a uma sala na sede da organização, que contava com escolta de uma equipe de segurança privada, e lá, sem celulares, contam como receberam sua proposta de rescisão: descumprindo a CLT, a organização não pagaria nada dos valores decorrentes do FGTS, como a multa de 40% em caso de demissão sem justa causa, e quitaria a verba restante em 12, 24 ou 36 parcelas mensais.
Duas ex-funcionárias ouvidas pelo Intercept receberiam os valores em 24 parcelas. Uma delas afirmou que, na reunião, em que se sentiu intimidada, foi dito que a multa do FGTS seria paga quando as parcelas mensais terminassem e que quem não assinasse o acordo que instituía o pagamento parcelado não receberia a chave para liberação do FGTS, emitida pelo empregador. Sem acesso a qualquer orientação, as duas aceitaram o acordo. Ambas recusaram a proposta de contratação pelo Instituto Pilar.
Uma das ex-funcionárias disse não entender como os contratos foram renovados por tanto tempo com o Instituto Santa Lúcia, mesmo com irregularidades trabalhistas e administrativas. Ela afirmou ainda ter ouvido de uma funcionária pública da Secretaria Municipal de Desenvolvimento e Assistência Social que “quem negociou para sair o Instituto Santa Lúcia e entrar o Instituto Pilar foi o Genário [Cruz]”. Ela considera que “deve ter alguém favorecendo o Instituto Santa Lúcia dentro da secretaria”, ou o atual prefeito Ricardo Nunes, que, em suas palavras, “facilitou muito”.
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