Quatro meses atrás, nós fomos obrigados a depor à Polícia Civil de São Paulo. Nos chamaram porque a Igreja Universal do Reino de Deus pediu a abertura de um inquérito para apurar o vazamento de supostas informações sigilosas que deram origem a uma reportagem assinada por Gilberto Nascimento.
Não foi qualquer uma: revelamos as entranhas financeiras da igreja, que movimentou R$ 33 bilhões em quatro anos e meio, só em doações bancárias. Pouco antes, havíamos publicado uma entrevista com um ex-fiel que afirmou, com todas letras, ter lavado dinheiro para a Universal.
As informações financeiras da Universal reveladas pelo Intercept constavam em um relatório elaborado pelo Laboratório de Tecnologia contra Lavagem de Dinheiro, subordinado ao Centro de Apoio Operacional à Execução do Ministério Público de São Paulo. Os dados foram reunidos após a quebra de sigilo bancário da Universal, no âmbito de um inquérito policial aberto em 2014. O documento, até a publicação da nossa reportagem, era desconhecido do público.
Furiosa, a Universal foi à polícia pedir a investigação sobre o vazamento das informações. Seu objetivo era claro: descobrir quem foi a fonte da nossa reportagem – e responsabilizá-la por isso.
Ficamos sabendo dessa investigação em fevereiro, quando recebemos a intimação para depor. Ainda que estivéssemos absolutamente seguros sobre nosso papel, a primeira reação natural é o receio: somos dois jornalistas de um veículo independente contra uma das instituições mais ricas e poderosas desse país. Mas a intimidação dos jornalistas é justamente o objetivo desse tipo de investigação, e logo o medo deu lugar ao desejo de justiça e à confiança de termos feito o nosso trabalho corretamente. Publicamos documentos que continham informações de interesse público.
A nossa Constituição assegura a proteção ao sigilo da fonte, posicionamento já respaldado em decisões no Supremo Tribunal Federal. Os jornalistas não devem ser obrigados a revelar quem enviou a informação que deu origem a uma determinada reportagem. Não é apenas um direito, mas um dever que garante a devida proteção ao nosso trabalho e à toda a liberdade de imprensa.
Na certeza de estarmos na trilha certa, com apoio de nossos leitores, de diversas organizações de liberdade de imprensa e de nossos incansáveis advogados, respiramos fundo e, diante da Polícia Civil, reafirmamos esses compromissos.
Na terça-feira, dia 12, pipocou a mensagem no WhatsApp: um documento que começava com a palavra ARQUIVAMENTO. Era a manifestação do Ministério Público de São Paulo sobre a investigação – que foi aceita pela justiça. Arquivada. O pesadelo acabou, mas não foi só isso. O promotor Reinaldo Lucas de Melo afirmou – como já havíamos manifestado em nossa defesa – que não havia informações sigilosas no material revelado pelo Intercept. E reconheceu que o direito à privacidade, à intimidade e ao sigilo de dados financeiros não é absoluto: ele pode não se aplicar em casos de notório interesse público e se atende à liberdade de imprensa.
“Se a liberdade à informação for de relevante interesse social, o direito à vida privada deve ser afastado em detrimento do interesse público-social dessa liberdade de informação plenamente definida e delimitada”, escreveu o promotor. O juiz Lúcio Alberto da Silva Ferreira, da 4ª. Vara Criminal da Comarca de Ribeirão Preto, acatou o pedido totalmente por “falta de base para a denúncia” e falta de provas.
Essa não é uma vitória só nossa. É de todo mundo que embarcou nessa briga, é de todo mundo que tem sido bombardeado por ameaças e processos judiciais em tentativas de intimidação contra jornalistas e comunicadores. Sabemos bem que a Igreja Universal é adepta dessa estratégia, que já mirou o escritor João Paulo Cuenca e a jornalista Elvira Lobato.
O próprio Gilberto Nascimento, autor da reportagem em questão e coautor desse texto, além de autor do livro “O Reino”, sobre a Universal, já foi alvo de cinco queixas-crimes movidas pela igreja no início dos anos 2000 por conta de suas investigações. A revista em que ele trabalhava, a Istoé, também já foi alvo de duas ações judiciais. A igreja perdeu todas.
Mas os recursos da Universal, como mostramos na reportagem sobre os bilhões, são gigantescos. Os nossos, não. Ainda assim, temos tanta confiança nessa missão que, depois do início das investigações, continuamos fazendo o de sempre: investigando. Só neste ano, já mostramos como a Igreja Universal está doutrinando as forças policiais do Brasil e que ela driblou a lei e contratou policiais militares como seguranças.
Há mais por vir. Que bom que, desta vez, a justiça foi feita. Que venham outras vitórias, porque para nós – e os nossos advogados – tentativas de intimidação são só isso: tentativas. Mesmo que o inimigo tenha R$ 33 bilhões na conta.
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