Texto atualizado para incluir correção e posicionamento da FBR Aviation enviado após a publicação.
No começo dos anos 2000, a empresária mineira Danielle Adornato foi morar nos Estados Unidos e até pensou em voltar ao Brasil diante das dificuldades de se manter no exterior. Passou os primeiros anos, segundo ela própria, “sem ninguém para ajudar a cuidar da casa” e até mesmo “fazendo a faxina”. Só que a persistência no sonho americano deu resultado. Danielle é hoje CEO da FBR Aviation, uma empresa com sede na Flórida, criada para intermediar a venda de equipamentos aeronáuticos ao Brasil. Ela faturou mais de R$ 130 milhões no último contrato do Gabinete de Intervenção Federal do Rio de Janeiro, que seguia vigente até junho de 2023 – depois de atrasar dois anos na entrega de helicópteros às forças de segurança fluminense.
O sucesso de Adornato nos negócios se deve, de acordo com a própria, às técnicas que aprendeu em sua formação como master coaching em cursos feitos no exterior. Mas ela, que também tem formação como coach, não esconde que a trajetória de sucesso faz parte dos negócios do que ela chama de “família empresária”. Seus irmãos, Guilherme Cunha e Cristina Cunha, são sócios da Aeromot, empresa mineira fundada pelo pai, o aviador Roberto Cunha, conhecido como Betinho, ainda nos anos 1960.
A Aeromot tem tradição na venda de equipamentos ao setor público, com 14 contratos com a União desde 2014, segundo o Portal da Transparência. O primeiro deles foi assinado pela Secretaria Extraordinária de Grandes Eventos, responsável por gerir os contratos referentes à Copa do Mundo daquele ano e às Olimpíadas de 2016, e teve o maior valor: mais de R$ 104 milhões.
Em entrevista concedida à própria irmã, Cristina, no mesmo podcast sobre autoconhecimento, Danielle Adornato afirmou que foram justamente esses dois grandes eventos esportivos que o Brasil sediou que mudaram a trajetória dos negócios da família. Foi mais ou menos nessa época que, segundo ela, a FBR Aviation, com sede nos EUA, finalmente vingou.
“A empresa, nos Estados Unidos, de um faturamento X, cresceu 700%. De um ano para o outro. Como você vai conseguir financiamento para um contrato tão grande se nem inglês você fala direito?”, questionou. “O que eu pensava no início da reunião? Eu tenho o contrato. Eu já tenho o interesse deles voltado para mim. Porque eles tem o recurso para oferecer, mas o contrato na mão quem tem sou eu. Essa energia que comandava as reuniões”, afirmou Danielle.
Edital questionado e ‘benção’ de capitão reformado
Em 2012, a FBR Aviation venceu um pregão no valor de R$ 29,4 milhões para fornecer uma aeronave para a Polícia Federal. Em 2018, a empresa assinou outro contrato, com cifras muito maiores, com o Gabinete de Intervenção Federal do Rio de Janeiro, chefiado pelo ex-ministro da Defesa do governo Bolsonaro, o general Walter Braga Netto. É o único contrato da União com a FBR disponível no Portal da Transparência. A empresa foi escolhida para vender três helicópteros a serem cedidos à Polícia Civil e ao Corpo de Bombeiros do Rio de Janeiro, por meio de um pregão presencial, em 17 de dezembro de 2018. A empresa de Danielle Adornato venceu o certame, mas não sem causar a indignação da concorrência.
Logo após o resultado do pregão, no dia 19 de dezembro, a empresa Helibrás recorreu da decisão, alegando que a FBR Aviation descumpriu uma cláusula do edital que exigia que a empresa licitante apresentasse uma declaração de garantia técnica assinada pelo fabricante das aeronaves. De fato, a declaração apresentada pela empresa FBR Aviation não foi assinada pelo fabricante dos helicópteros, a multinacional Leonardo SPA, mas sim pela AgustaWestland do Brasil LTDA – uma empresa brasileira que representa a Leonardo SPA. Isso, segundo a Helibrás, representava uma burla aos requisitos do edital.
No recurso, a Helibrás menciona que o responsável pela assinatura da AgustaWestland do Brasil LTDA no documento, Roberto Carvalho Duhá, não tem relação com a Leonardo SPA. “Em que pese ser funcionário da AgustaWestland Brasil LTDA, o Senhor Duhá não possui poderes para representar a fabricante, a empresa Leonardo SPA, a real fabricante do aeronave, conforme mencionado”, diz a contestação. A Helibrás, no entanto, não mencionou o fato de que Duhá é Capitão de Mar e Guerra da Marinha, reformado em 2007. Como aposentado, ele recebe salário de R$ 31 mil do estado brasileiro.
Duhá chegou a apresentar uma procuração para negociar as aeronaves, mas ela foi assinada pela AgustaWestland Brasil LTDA – e não pela Leonardo SPA. “Ainda que a procuração apresentada fosse emitida pelo fabricante da aeronave, o que se admite apenas por mero amor ao debate, uma vez que está claro que não é o caso, os poderes outorgados ao Senhor Roberto Duhá nessa procuração não são suficientes para que ele preste declaração de garantia em nome do outorgante, muito menos em nome do Fabricante da aeronave, a empresa Leonardo SPA”, afirmou a empresa. “Além disso, a procuração apresentada confere ao Senhor Duhá uma limitação de assumir compromissos em nome da empresa, com um valor máximo de U$ 150 mil, o que, como se sabe, está muito abaixo do valor das aeronaves no presente processo de licitação, cuja garantia deveria cobrir”, diz o recurso.
A Helibrás ainda apontou que os atestados apresentados pela FBR Aviation não comprovariam a capacidade técnica para fornecer aeronaves com características semelhantes às do objeto licitado. Segundo a recorrente, a diferença entre os tipos de aeronaves – monoturbina e biturbina – é significativa, indo além da potência dos motores, o que poderia até mesmo colocar em risco a segurança pública e a defesa civil do estado do Rio de Janeiro, para quem as aeronaves foram destinadas.
A defesa da FBR Aviation foi protocolada cinco dias depois do recurso, na véspera do Natal, em 24 de dezembro. Sem explicar porque não tem o atestado da própria Leonardo SPA, a empresa de Danielle Adornato sustentou que a AgustaWestLand Brasil LTDA tem relação com a Leonardo SPA e que, por isso, Duhá estaria habilitado a atestar tecnicamente a capacidade de entrega da FBR Aviation.
Apenas três dias depois da defesa apresentada – sendo um deles o feriado de Natal –, o pregoeiro Ricardo dos Santos Sales tomou sua decisão favorável à FBR Aviation. Segundo ele, o recurso da Helibrás visava evitar uma maior presença dos helicópteros Leonardo SPA no mercado brasileiro.
“Busca realizada por este pregoeiro resultou que a Leonardo SPA se faz presente em apenas 5 estados da federação e na Polícia Federal, enquanto a Helibrás equipa as frotas de todos os estados, Polícia Federal, Polícia Rodoviária Federal, Receita Federal, Ibama, Exército, Marinha e Força Aérea. O fato serve para evidenciar que, além da contratação das três aeronaves em si, o presente certame representava para as empresas interesses de manutenção ou quebra de hegemonia no mercado interno”.
O pregoeiro desconsiderou o fato de que a declaração foi assinada pela AgustaWestland do Brasil, e não pela Leonardo SPA. Segundo ele, a empresa brasileira é cadastrada na Agência Nacional de Aviação Civil, a Anac, para a comercialização de aeronaves da Leonardo SPA. Além disso, segundo ele, a Leonardo cita a AgustaWestland como sua representante na América do Sul em seu site.
As alegações de que o capitão reformado Roberto Carvalho Duhá, que assinou a declaração favorável à FBR Aviation, não seria habilitado a dar o aval a negócios superiores a US$ 150 mil, também foram negadas. “Este pregoeiro também desconhece a relevância dos poderes investidos ao senhor Roberto Duhá no tocante ao valor, uma vez as garantias financeiras do contrato, qualquer que seja a espécie, não são devidas pela Agusta Westland do Brasil ou pela Leonardo S.P.A, mas, sim, pela FBR Aviation Inc.
Sobre a diferença no modelo das aeronaves, o pregoeiro disse que “o instrumento convocatório não cita que o bem deverá ser idêntico ao licitado, mas similiar em características, quantidades e prazos”. Também afirmou, sobre as condições técnicas, que “é possível que o requisito seja desenvolvido durante a fase de produção da aeronave. Cabe destacar que, em nenhum momento foi exigido que o ofertante possuísse uma solução completa, sem necessidade de adaptações”.
Com o aval, o contrato entre FBR Aviation e o Gabinete de Intervenção Federal foi publicado no Diário Oficial da União em 18 de janeiro de 2019 – quando a intervenção, de fato, já havia acabado. O acordo estabeleceu a compra de três aeronaves, com vigência de 14 de janeiro de 2019 a 13 de março de 2021, pelo valor de R$ 137,3 milhões.
Apesar do longo prazo para entrega, a FBR Aviation entregou o primeiro dos três helicópteros apenas em 9 de março de 2021 – a aeronave, construída pela Leonardo SPA, foi destinada à Polícia Civil do Rio de Janeiro. O atraso, justificado em parte pela pandemia do coronavírus, fez com que, ainda em janeiro de 2021, fosse publicado o primeiro termo aditivo, que alterou itens, prorrogou o prazo de vigência e de entrega do contrato, e modificou as etapas de entrega e pagamento. A vigência foi estendida até 13 de junho de 2022.
Pandemia fez com que as entregas das aeronaves sofressem ‘atrasos que fugiram por completo do controle’, diz a empresa.
O aditivo fez com que a FBR Aviation conseguisse entregar a segunda aeronave dentro do novo prazo. Em fevereiro de 2022, em uma solenidade no Forte de Copacabana, no Rio de Janeiro, com a presença do então ministro Braga Netto e do governador Cláudio Castro, a FBR Aviation entregou, por meio do Gabinete de Intervenção, a aeronave Leonardo AW119Kx à Polícia Civil. Faltava ainda, portanto, a última aeronave, que seria destinada ao Corpo de Bombeiros.
Por isso, pouco antes do novo vencimento, em 3 de junho de 2022, o segundo termo aditivo foi publicado, trazendo mais alterações nas etapas de entrega, no local de realização do recebimento provisório, na forma de pagamento e na prorrogação do prazo de vigência e entrega do contrato. A vigência foi estendida até 31 de dezembro de 2022. Mas, novamente, a FBR Aviation não deu conta de entregar a aeronave. Com o contrato encerrado e sem o helicóptero, coube ao governo Lula, em 5 de janeiro de 2023, prorrogar novamente o contrato – desta vez, para 14 de junho de 2023. O novo aditivo permitiu que, enfim, a FBR Aviation entregasse, em abril, o helicóptero Leonardo AW169 ao Corpo de Bombeiros do Rio de Janeiro.
Questionada pelo Intercept, a FBR Aviation afirmou que “é uma empresa aeronáutica com foco no fornecimento de aeronaves para o mercado civil, militar e de segurança pública, com relações comerciais junto a diversos fornecedores e fabricantes, incluindo a Leonardo Helicopters”, disse a nota assinada por Danielle Adornarto.
Sobre o atraso no prazo inicial de entrega das aeronaves, a FBR Aviation culpou a pandemia, que gerou “reflexos inéditos, imprevisíveis e que se desenvolviam dia a dia, sendo impossível prever, planejar ou mitigar os seus efeitos, tanto durante o processo licitatório bem como durante a execução do contrato”. “Por esse motivo, as entregas das aeronaves inevitavelmente sofreram atrasos que fugiram por completo do controle da empresa. De qualquer forma, as aeronaves foram entregues entre 2021 e 2022 e inexistiu um atraso de ‘quase três anos'”, disse a empresa.
A FBR alegou ainda que as alterações no contrato e no prazo de entrega seguiram o rigor das regras da gestão pública: “De qualquer forma, tais situações imprevisíveis acarretaram a necessidade de dilações nos prazos de entrega, todas fundamentadas e justificadas junto à Administração Pública e todas as aeronaves objeto contratual foram entregues e se encontram a disposição dos respectivos órgãos públicos”.
Desde que os helicópteros foram finalmente entregues, a FBR Aviation não negociou mais nenhuma aeronave com o governo federal. Com isso, o Gabinete de Intervenção, em nota, disse que “não há mais entregas previstas” – o que representa, na prática, seu fim.
Em nota enviada após a publicação da reportagem, a FBR Aviation reafirmou que o prazo de entrega do contrato com o Gabinete de Intervenção Federal do Rio de Janeiro foi afetado pela pandemia, com a indisponibilidade de insumos e problemas na logística internacional. Mas alegou que a última das prorrogações ocorreu por questões administrativas do governo, não da empresa.
A FBR Aviation também negou que o “crescimento de 700%” da companhia seja referente ao contrato com o Gabinete de Intervenção Federal do Rio de Janeiro. Segundo a empresa, o aumento do faturamento se deu “por ocasião dos contratos celebrados com a Secretaria Extraordinária de Segurança dos Grandes Eventos, sem qualquer conexão com o contrato do GIF, que foi celebrado somente seis anos depois, em 2018″. Segundo a assessoria, a FBR tem “mais de 20 contratos com o poder público”.
A empresa também afirmou que a representação legal da Leonardo SPA por meio da Agusta Westland e do capitão reformado Roberto Carvalho Duhá foi feita de acordo com os requisitos legais. “Duhá atuou tão somente como representante legal da AgustaWestLand do Brasil, não tendo qualquer outro envolvimento”, dissse a FBR Aviation.
Por fim, a empresa negou que Danielle Adornato, CEO da FBR Aviation, seja uma “coach” como mencionado na matéria – ainda que ela própria ostente o título de “mastercoach” em seu perfil no LinkedIn. Segundo a assessoria, Adornato “não atua como coach, sendo executiva com formação em Administração com Habilitação em Comércio Exterior”. Leia os posicionamentos enviados pela empresa na íntegra aqui e aqui.
Correção: 17 de outubro de 2023, 15h51
Ao contrário do que o texto afirmava, o contrato da FBR Aviation com o Gabinete da Intervenção não foi o único que a empresa firmou com a União. Há também contratos de fornecimento para a Polícia Federal e para a Força Aérea Brasileira, segundo informações enviadas pela assessoria da FBR. O texto também havia sido atualizado para incluir novo posicionamento da FBR Aviation.
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