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No dia 12 de agosto, um sábado, foi encontrado em um lago próximo à rodovia MG-431, em Itaúna, região central de Minas Gerais, o corpo do padre José de Souza Carvalho, 61 anos. Pároco no município de Itaguara, Carvalho estava desaparecido havia oito dias. O bispo da diocese, dom Miguel Angelo Ribeiro, disse aguardar “maiores esclarecimentos das circunstâncias de sua morte por parte das autoridades policiais”.
Um colega de Carvalho, o padre Jorge Luiz Gray Gomes, canonista da diocese de Governador Valadares, lamentou a morte e protestou em um texto não explícito, mas revelador. “Será apenas mais um? Não terá mais uma vez a responsabilidade da diocese?”, indagou.
Em silêncio – até agora –, a Igreja Católica convive com uma onda de adoecimento mental de religiosos. A face mais dramática do problema é o número de suicídios: foram 35 casos notificados entre agosto de 2016 e agosto de 2023. Esses números foram contabilizados pelo padre e pesquisador Lício Vale, especialista em Prevenção e Pósvenção em Suícidio pela Universidade Federal de Santa Catarina e membro da Associação Brasileira de Estudos e Prevenção ao Suicídio.
Os números, no entanto, podem ser bem maiores, pois há subnotificação. Enquanto este texto estava em produção, o Intercept recebeu informações a respeito de ao menos outros quatro casos recentes de mortes de sacerdotes supostamente por suicídio – todos sem notificação.
Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2022, houve uma média de 44 suicídios por dia no ano passado no Brasil. “Analisando os números absolutos, em relação à população em todo o Brasil, o índice de padres que tiraram a vida é baixo. Agora, do ponto de vista comparativo e estatístico entre os padres no Brasil, é alto”, me disse Vale. Segundo ele, a média de idade dos padres que morrem por suicídio no país é de 31 anos.
O fenômeno tem preocupado a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, a CNBB, que discutiu o tema, fora da pauta oficial, em uma sessão privativa em abril, na sua assembleia geral em Aparecida, no interior de São Paulo. A CNBB decidiu formar duas equipes de estudo para analisar o tema.
Como essa tendência foi identificada recentemente, explicou o pesquisador Vale, a Igreja Católica não tinha ainda uma política específica para a saúde mental dos padres. A CNBB, então, passou a chamar especialistas para debater o tema com os bispos e sacerdotes em todo o Brasil e a elaborar estudos para a implementação de um programa de saúde mental. Ele explicou que a CNBB está iniciando programas “de acolhimento, de escuta e tratamento dos padres em ideação suicida para diminuir esses números”.
“É relevante reconhecer a importância e urgência de uma melhor formação inicial nos seminários e noviciados e de trabalhar mais efetivamente a dimensão humano-afetiva”, me disse Vale. “Há uma preocupação de traçar planos e estratégias para cuidar mais e melhor da saúde mental dos presbíteros no Brasil”, completou.
Casos subnotificados
Em Surubim, Pernambuco, o padre Geraldo de Oliveira, 77 anos, da paróquia São Sebastião, foi encontrado morto no dia 2 de fevereiro.
Sua morte causou comoção na cidade. Já aposentado como pároco, Oliveira era bastante atuante na área social. Devoto de Padre Cícero e criador da missa dos Romeiros na cidade, o padre conseguiu construir 98 casas para famílias carentes no agreste pernambucano. Fazia também campanhas para doação de cestas básicas, roupas e colchões.
Menos de um mês depois, em 10 de março, na área rural da cidade de Miradouro, na zona da mata mineira, foi encontrado também o corpo do padre Douglas Ferreira Leite, 35 anos, próximo a um riacho, às margens da BR-116. Leite atuava na paróquia de Santa Bárbara, no município de Fervedouro, na diocese de Caratinga. Segundo a Polícia Civil, a causa da morte foi suicídio.
Vários casos continuam sob investigação. Em Guaíra, no oeste do Paraná, o padre José Aparecido Bilha, 63 anos, pároco da igreja Nossa Senhora Aparecida, foi encontrado morto no dia 22 de novembro do ano passado. Para a polícia local, ocorreu suicídio.
Em 5 de abril deste ano, também morreu o padre da Arquidiocese de Belo Horizonte Paulo Eustáquio Cerceau Ibrahim, 54 anos – seus amigos afirmam que ele teria morrido por suicídio.
No dia 19 de junho, foi encontrado morto Mário Castro Ribeiro, 55 anos, padre da paróquia São Jerônimo, em Boa Vista, Roraima. Ribeiro sofria de depressão. Como nos casos anteriores, colegas creem que ele se suicidou. Nas redes sociais, religiosos lembraram que sacerdotes como ele “às vezes têm uma vida solitária”.
Na quarta-feira 30 de agosto, a Arquidiocese de São Paulo comunicou a morte, por suicídio, de Orlando Luciano da Silva, 54 anos, diácono – função imediatamente inferior à de sacerdote e que não exige o celibato – e assistente pastoral na paróquia Santa Cristina, no Parque Bristol, zona sul de São Paulo. Neste ano, ainda houve a morte de um seminarista de 25 anos, de Barra do Piraí, no interior fluminense.
Há diversos motivos para a subnotificação dos casos, observou o padre e teólogo Manoel Godoy, professor da Faculdade de Jesuíta de Belo Horizonte. “A congregação e a diocese querem se preservar. A família pede para não notificar. E investigações policiais muitas vezes são inconclusivas”, ele explica.
20 mortes em três anos
O número de suicídios entre padres começou a chamar a atenção em 2016, ano em que houve quatro notificações oficiais com casos de grande repercussão. Em agosto daquele ano, o padre Bonifácio Buzzi, 57 anos, detido em um presídio em Minas Gerais sob a acusação de pedofilia, morreu por suicídio em sua cela, segundo a polícia.
Em novembro de 2016, o padre Rosalino de Jesus Santos, 34 anos, também foi encontrado morto em Corumbá, no Mato Grosso do Sul. No mesmo mês, aconteceram ainda as mortes dos padres Ligivaldo da Conceição dos Santos, de 37 anos, de Salvador, na Bahia, e de Renildo de Andrade Maia, 31 anos, de Contagem, em Minas Gerais.
Apenas nos últimos três anos foram 20 mortes de padres por suicídio, contabilizou outro especialista no tema, o psicólogo Willian Cesar Castilho Pereira, assessor da CNBB, e do Conselho Episcopal Latino-Americano, o Celam. Pereira, autor do livro “Sofrimento Psíquico dos Presbíteros”, lembrou, durante palestra online com religiosos, que a Igreja Católica “lidou muito mal com o suicídio” ao considerar o ato “uma coisa demoníaca” e ao impor penas como privações de sacramentos religiosos e também das exéquias – as honras fúnebres – aos que tiram a própria vida.
Hoje, há iniciativas como o projeto “Ciranda do Coração”, criado pelo Grupo de Reflexão Psicológica da Conferência dos Religiosos do Brasil de Minas Gerais, que oferece às comunidades católicas momentos de reflexão. À convite da CNBB, Pereira participou de uma pesquisa, ao lado de médicos, psicólogos, teólogos, biblistas e doutores de bioética, para avaliar a saúde física e mental de padres em todo o país e buscar soluções para essa situação. A Igreja Católica tem promovido ainda palestras e encontros para conscientizar bispos e padres sobre o problema e procurado acolher os religiosos necessitados em suas congregações ou em clínicas e institutos.
Também está sendo implementada pela Igreja Católica, em suas diversas pastorais, uma experiência chamada pelo padre Lício Vale de “Pastoral da Escuta”. É a criação de grupos para fazer uma escuta ativa da população em geral, no sentido de acolher pessoas em ideação suicida e encaminhá-las para serviços de saúde mental, explicou Vale.
‘Nunca há só uma causa’
Cada uma das pessoas que morre por suicídio encontra um gatilho específico. A chamada gota d’água faz parte dos “fatores precipitantes”, de acordo com os estudos da suicidologia. São situações específicas, como episódios de estresse ou humilhação, uma quebra de vínculo de emprego ou matrimonial ou a perda de um ente querido. No entanto, a maioria das pessoas que passa por situações difíceis não morre por suicídio.
Quem tira a própria vida já atravessa uma condição que está como pano de fundo. Entre os “fatores predisponentes” estão as condições sociais, culturais, econômicas e genéticas, por exemplo. Algumas podem ser coletivas, mas o jeito que atinge cada pessoa é único.
Os padres vítimas de suicídio presentes nos levantamentos mostram que os casos acontecem em contextos muito diferentes. O pesquisador Lício Vale corrobora a ideia de que o suicídio é um fenômeno complexo, envolve vários fatores e nunca deve ser atribuído a uma única causa. Entre os padres, no entanto, há algumas particularidades. “Vários estudos apontam que os principais fatores de risco são o estresse, a solidão e a cobrança excessiva”, explicou.
Episódios de suicídio impactam todo o entorno: familiares, amigos e colegas de trabalho, entre outros. No caso da morte de um padre, sobretudo, há uma comunidade inteira que tende a atravessar um luto. A religiosidade pode vir a ser um fator de proteção ao indivíduo, considerando a sensação de pertencimento e acolhimento – desde que não sejam impostos novos estigmas.
As pessoas mais próximas passam a ser “sobreviventes de suicídio”. Em alguns casos, após uma perda por essa razão, se tornam mais vulneráveis à ideação suicida. Por isso, especialistas apontam para a necessidade de um acompanhamento psicológico aos sobreviventes; um trabalho de posvenção.
Vale, padre da paróquia Sagrada Família, na Vila Praia, na zona leste de São Paulo, se tornou um especialista no tema também em razão de um drama familiar. “Todo o meu trabalho e o desejo de voltar para a academia tem lá na origem a questão do suicídio do meu pai. Eu tinha 13 anos de idade e ele 43”, contou. Hoje, o padre é autor de vários livros sobre suicídio, como “E foram deixados para trás” e “Mente Suicida – respostas aos porquês silenciados”.
‘Não só sobre a sexualidade do padre, mas a sexualidade humana. A igreja nunca teve facilidade para lidar com o tema’.
“O padre é demandado o tempo inteiro. A vida sacerdotal é mais complexa do que as pessoas imaginam. Além de administrar sacramentos, fazer reuniões, cuidar da paróquia, ele tem de ser administrador, entender de contabilidade e ser psicólogo, muitas vezes, porque não há quem ouça o povo”, diz.
Segundo Vale, se mal cuidado, o estresse pode evoluir para a síndrome de burnout – distúrbio emocional com sintomas de exaustão extrema relacionado ao trabalho. Depois, vem a solidão. “Os padres, sobretudo os diocesanos, sofrem muito de solidão. Moram sozinhos na casa paroquial e têm poucos vínculos afetivos, embora a grande maioria seja amado pelo povo”, explicou.
“A terceira causa é a cobrança excessiva. Ele cobra de si a coerência com aquilo que prega e aquilo que vive. E o povo cobra que o sacerdote tenha determinada postura, que se comporte. Ele é vigiado, julgado. As comunidades católicas têm muita dificuldade de ver a humanidade do sacerdote”, completou. “Eu costumo fazer uma brincadeira: onde você vai passar o Natal de 2030? Com sua família, provavelmente. Pois o padre já tem marcada nessa data uma missa às 18 horas normalmente, e outra às 20 horas, em sua comunidade. Nós, padres, já temos compromissos agendados para daqui a sete anos”.
É preciso estar alerta, lembrou Vale, para identificar pessoas em situação de risco. “O suicídio é provocado por diversos fatores que se associam: psicológicos, familiares, culturais e sociais. A maioria das pessoas que atenta contra a própria vida tem um transtorno mental ou emocional diagnosticável. Mas a maioria, por puro preconceito, não procura um profissional de saúde mental”, afirmou. “É preciso entender e acolher essa pessoa, ouví-la, escutá-la, sem julgar, condenar, sem despejar discurso religioso na cabeça dela”.
Vale observou que o celibato, se não vivido equilibradamente, realmente gera problemas. “Seria leviano desconsiderar que o celibato não vivido de maneira adequada é um fator de risco para aumentar o sentimento de solidão”, argumentou.
O padre Manoel Godoy acredita que a Igreja Católica trata o tema da sexualidade como tabu, sem um debate profundo. “Não só sobre a sexualidade do padre, mas a sexualidade humana. A igreja nunca teve facilidade para lidar com o tema”, avaliou. “Eu costumo dizer que a Igreja há muito tempo combateu o judeu Marx por suas ideologias marxistas, socialistas, comunistas, porém, quem mais podia abalar a instituição é um outro judeu, o Freud. É este que mexe nos ‘punctum dolens’ (o ponto difícil)”, acrescentou.
Para evitar o suicídio no clero e entre a população em geral, a Igreja Católica, de acordo com o padre Vale, tem procurado fazer o seu trabalho mais específico com oração e orientação para as pessoas com ideação suicida e, por meio de suas várias pastorais, acolher e encaminhar as pessoas em situação de risco para os serviços de atendimento de saúde mental, com profissionais qualificados. “O objetivo é motivar a pessoa, seja padre ou não, jovem ou adolescente, a buscar o serviço de saúde mental e o profissional da área, para que essa dor que o atormenta possa ser olhada com cuidado. O suicida não quer matar a sua vida, ele quer matar a sua dor, sua dor mental, sua dor emocional. Se a gente for capaz de acolher essa dor e cuidar dela, a gente faz prevenção e minimiza o risco de a pessoa se matar”, alertou Vale.
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