A greve na última terça-feira, 3, organizada pelos trabalhadores paulistas do metrô, da CPTM e da Sabesp em protestos contra as privatizações escancarou não apenas o péssimo funcionamento das linhas privatizadas, como também o entrosamento entre a direita, os grandes empresários e a grande imprensa na disputa de narrativas.
Assim que a greve foi decretada, o governador Tarcísio de Freitas, do Republicanos, e os principais veículos de imprensa atuaram em conjunto para descredibilizá-la. O discurso já é conhecido de outros carnavais: “A greve é política!”, “a greve é ideológica”, “estão prejudicando os trabalhadores”, “estão pensando nas eleições”. Essas bizarrices analíticas que pretendem despolitizar uma ferramenta política já foram naturalizadas no noticiário.
No mundo encantado dos nossos liberais de quermesse, há o consenso de que os serviços públicos devem ser privatizados porque o Estado é incapaz de prover serviços eficientes. Trata-se do principal dogma do neoliberalismo. As vozes que se levantam contra as privatizações têm pouco espaço na imprensa e há quase uma unanimidade entre os jornalistões de que a privatização é, invariavelmente, a melhor solução. O estado é pintado como um inimigo da eficiência dos serviços, da qualidade dos equipamentos e do bom uso do dinheiro público. Já os trabalhadores sindicalizados que se mobilizam contra as privatizações são pintados como oportunistas que prejudicam a população para atingir interesses partidários e eleitoreiros. Esse é o jogo que sempre é jogado em tempos de greve.
Os grevistas paulistas não estão apenas lutando pelos seus interesses trabalhistas, já que as privatizações ameaçam o emprego e os direitos dos trabalhadores, mas também pela defesa do transporte público e dos serviços de água e saneamento básico. A falácia de que a privatização significa necessariamente uma melhora na prestação de serviços não se sustenta na realidade. A experiência recente nos mostra que as privatizações de serviços essenciais podem gerar desemprego, precarização do trabalho, piora no funcionamento dos serviços e encarecimento das tarifas. A luta contra o instinto privatista de Tarcísio de Freitas é, portanto, legítima. Mas o senso comum estabelecido pela direita com apoio da imprensa deslegitima os críticos das privatizações e sufoca o debate.
Os trabalhadores sindicalizados que se mobilizam contra as privatizações são pintados como oportunistas que prejudicam a população para atingir interesses partidários e eleitoreiros.
A Rede Globo mostrou mais uma vez ser a linha de frente na defesa das privatizações e na inviabilização desse debate. Os jornais televisivos da empresa se empenharam em fortalecer a narrativa de Tarcísio e atuaram como lobistas informais dos interesses do empresariado que quer abocanhar mais uma lasca dos serviços públicos. Os principais colunistas da casa não decepcionaram os patrões.
Na GloboNews, Miriam Leitão disse que a greve “é um tiro no pé” porque “acaba fortalecendo a privatização”. Segundo ela, “o governador mostrou que as linhas privatizadas estão funcionando”.
Ora, a greve trouxe à tona o fato de que as linhas de trens da CPTM que já foram privatizadas apresentam muitos problemas. De janeiro a abril deste ano, duas das linhas privatizadas apresentaram uma falha a cada três dias. Ocorreram descarrilamentos, acidentes, incêndios e um trabalhador morreu eletrocutado enquanto fazia manutenção. Segundo um levantamento do UOL, as linhas privatizadas apresentaram 16 falhas de operação nesse mesmo período, contra 5 falhas nas linhas que ainda são operadas pela empresa pública. Ou seja, os problemas das linhas privatizadas impactam a vida da população mais que o triplo de vezes que as linhas que ainda são operadas pela CPTM. Miriam Leitão não fornece esse dado e fortalece a narrativa mentirosa do governador.
“Tem que olhar sem ideologia” disse ainda Leitão, como se o olhar dela fosse apenas técnico, despido de ideologias. Esse é o mal dos liberais brasileiros: creem que suas análises são puramente técnicas, enquanto as de seus opositores são “ideológicas”. A ideologia seria um monopólio de “esquerdas atrasadas”, como disse Luciano Huck. É como o paulista que jura não ter sotaque. Tudo na política passa pelo viés ideológico. Essa neutralidade técnica simplesmente não existe e acreditar nisso é, nada mais, nada menos, do que ideologia em estado bruto.
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Julia Duailibi é uma ótima jornalista que merece todo o respeito, mas também mergulhou na onda do consenso empresarial-midiático ao deslegitimar a greve e reproduzir a narrativa do governador: “Todo mundo sabia que ele [Tarcísio de Freitas] era a favor da privatização. (…) Ele é um cara privatista, e essa pauta foi aprovada pelo eleitor paulista” (…) “A questão é: essa greve é a melhor maneira de se fazer essa discussão?”.
A jornalista erra ao dizer que a pauta foi aprovada pelo eleitor. A privatização de estatais nunca foi um tema popular. Tanto que, apesar de Tarcísio ter perfil privatista, em nenhum momento da campanha deixou claro ao eleitor que iria privatizar a Sabesp e as linhas de trem e metrô. Pelo contrário, o então candidato se esquivava e dava respostas dúbias sempre que confrontado com o assunto. Ainda que tivesse feito essa promessa, isso não tornaria a reivindicação dos trabalhadores menos legítima. É absurdo pensar que a eleição representa um endosso geral e irrestrito de toda a população às promessas do eleito. Por essa lógica rasteira, deveríamos nos calar diante do golpismo de Bolsonaro durante o governo, já que durante a campanha ele deixou claro o seu perfil antidemocrático e golpista.
Outros globais que abraçaram essa tese despolitizadora foram Gerson Camarotti, Gabeira e Valdo Cruz. Simplesmente não há sequer um comentarista da casa que apoie a greve. Não há debate, apenas consenso. Uma das funções dessa greve é justamente a de furar essa blindagem e forçar o início de um debate sobre as privatizações.
A ânsia por criticar grevistas é inversamente proporcional ao empenho em fiscalizar os serviços prestados pelas empresas que ganharam as licitações para operar linhas de metrô em todo o Brasil. Depois de privatizado, o metrô do Rio de Janeiro apresenta a tarifa mais cara do país. O gasto médio mensal do trabalhador carioca com o transporte chega a R$ 276,00, o que pode representar mais de 20% do salário mínimo. É caro, mas o serviço prestado pela concessionária deve ser uma maravilha, certo? Errado. O serviço é precário, ineficiente e muito mal avaliado pelos usuários, segundo pesquisa ibope feita há pouco menos de 3 anos.
No ano passado, metroviários de Belo Horizonte fizeram uma greve contra a privatização dos trens urbanos. Os grevistas alertaram para a possibilidade de aumento das tarifas, precarização do serviço, do trabalho e a demissão de trabalhadores após a privatização. E foi exatamente o que aconteceu. A passagem ficou mais cara, as condições de trabalho pioraram, houve demissões e os serviços prestados à população não melhoraram.
Diferente do que se prega por aqui, a privatização de serviços essenciais como o metrô não é uma unanimidade no mundo. Grandes cidades como Paris, Londres, Berlim, Nova York, Madrid, Barcelona, Munique, Cidade do México, Bruxelas, Amsterdam e Istambul possuem metrôs estatizados. Talvez todas essas cidades estejam erradas. Quem deve estar certo é o jornalismo que não anda de metrô e o governador que ganhou fama pelos serviços prestados a um governo negacionista, golpista e fascistóide
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