Os agentes Eduardo Arthur Izycki e Rodrigo Colli, da Agência Brasileira de Inteligência, presos na última sexta-feira, 20, pela Polícia Federal, atuaram para outros órgãos públicos antes de serem demitidos dos cargos que ocupavam na Abin. Entre as atividades empresariais exercidas pela dupla, está uma consultoria para a empresa de inteligência Harpia Tech. Um dos serviços, de acordo com fontes ouvidas pelo Intercept, incluiu a prestação de serviços ao Comando de Comunicações e Guerra Eletrônica do Exército Brasileiro.
O expediente utilizado por Eduardo Arthur Izycki e Rodrigo Colli para atender outros órgãos públicos envolveu um terceiro servidor da Abin chamado Filipe Soares, que deixou a agência em 2019 e hoje é proprietário da Harpia Tech. O empresário admitiu que os agentes que estão presos foram contratados por ele como consultores, por meio de suas empresas individuais.
Questionado sobre a prestação de serviços da dupla ao Exército, Filipe Soares deu duas versões. Inicialmente admitiu que contratou Rodrigo e Eduardo para a Harpia Tech, sem negar a participação no contrato com os militares. “Já contratei consultorias de ambos, mas não são empregados da Harpia. Os dois têm suas respectivas empresas. Eduardo estava praticamente de mudança para a Europa para cursar um doutorado. Rodrigo tem atuado como consultor no mercado, tem uma capacidade técnica enorme e, sim, me ajudou com algumas coisas. Sobre as contratações esporádicas, sempre o fizemos via as empresas deles”, reconheceu.
Em um novo contato com o Intercept, o dono da Harpia negou a informação de que os agentes trabalharam para o Exército. Afirmou também que os contatos deles com os clientes da Harpia foram raríssimos: “O Eduardo e o Rodrigo não estiveram envolvidos nesse contrato – ao menos não enquanto consultores da Harpia. Se estiveram lá por outros motivos, não sei informar”.
Comando de Comunicações e Guerra Eletrônica foi o setor responsável pela contratação da Harpia Tech.
O contrato entre o Exército e a Harpia Tech foi celebrado em novembro do ano passado, ainda no governo de Jair Bolsonaro, com uma vigência de um ano e valor total de R$ 1,3 milhão. A empresa também mantém outros acordos com órgãos públicos, como a Secretaria de Operações Integradas do Ministério da Justiça, o Ministério da Fazenda, o Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios, o Supremo Tribunal Federal, a Câmara dos Deputados e o Tribunal Regional Eleitoral de Minas Gerais.
A reportagem entrou em contato com o Exército Brasileiro em busca de esclarecimentos. Em nota, o Centro de Comunicação Social do Exército alegou que não poderia responder a perguntas sobre o assunto porque o contrato estaria, na avaliação do órgão, resguardado por sigilo.
O Exército ainda citou dois artigos da Lei de Acesso à Informação que embasariam a decisão de não comentar o assunto. O primeiro deles afirma que a liberação de informações poderia “prejudicar ou causar risco a planos ou operações estratégicos das Forças Armadas”; o segundo, que poderia “comprometer atividades de inteligência, bem como de investigação ou fiscalização em andamento, relacionadas com a prevenção ou repressão de infrações”. O Intercept não conseguiu localizar os advogados dos dois agentes presos.
Agentes da Abin presos teriam chantageado colegas
A operação Última Milha, da PF, teve como principal alvo a investigação da espionagem ilegal de celulares de autoridades. De acordo com a corporação, servidores da Abin estavam utilizando um software israelense chamado First Mile para monitorar ministros do Supremo Tribunal Federal e outras pessoas vistas como adversárias do ex-presidente Jair Bolsonaro, tudo sem a devida autorização judicial.
O ex-jornalista do Intercept, Glenn Greenwald, que atuou nas reportagens da Vaza Jato, e seu ex-marido, o deputado federal David Miranda do PDT, morto em maio deste ano, estão entre as pessoas que foram espionadas ilegalmente pela Abin na gestão Bolsonaro.
Além das prisões de Eduardo Arthur Izycki e Rodrigo Colli, a PF realizou 25 mandados de busca e apreensão e afastou cinco diretores da agência de inteligência, incluindo o terceiro na hierarquia, o secretário de Planejamento e Gestão, Paulo Maurício Fortunato Pinto.
Izycki e Colli foram demitidos ainda na sexta-feira, 20. A justificativa oficial foi “participar de gerência ou administração de sociedade privada, personificada ou não personificada, exercer o comércio, exceto na qualidade de acionista, cotista ou comanditário, e improbidade administrativa”.
A dupla estava sob investigação interna na Abin devido a alegações de chantagem contra colegas, em um esforço para evitar a perda de seus cargos no órgão. A situação envolveu, segundo o Metrópoles, um processo administrativo que os dois enfrentavam na agência. A investigação interna era relacionada a uma tentativa de contrato da empresa Icciber Segurança Cibernética, registrada no nome do pai de Izycki, com o Exército, em 2018.
Esse movimento configura um possível conflito de interesse, dada a função de Izycki na contrainteligência da Abin. De acordo com o site, a empresa foi mal-sucedida em prestar serviços na área de soluções de exploração cibernética e web intelligence. A Icciber Segurança Cibernética foi extinta em 2019 e, de fato, não chegou a fechar contrato com o Exército Brasileiro.
Mas isso não impediu que, quatro anos depois, enfim, Izycki prestasse serviços por meio da Harpia. A reportagem tentou entrar em contato com o pai do oficial da Abin preso, mas não obteve resposta.
Harpia não é igual ao Pegasus, mas oferece perigos
A Harpia Tech tem como principal produto uma plataforma de coleta, análise e estruturação de dados de internet, redes sociais e canais públicos de Telegram. A empresa alega que a ferramenta funciona na lógica de Open Source Intelligence, acessando apenas dados que são disponíveis em fontes abertas. Mesmo assim, entidades da sociedade civil denunciaram a contratação da plataforma pelo Ministério da Justiça, em 2021, em um edital que, segundo o UOL, foi criado pelo governo Bolsonaro para viabilizar a compra de um software conhecido pelo seu potencial invasor: o Pegasus.
Desenvolvido pela empresa israelense NSO Group, o Pegasus já foi utilizado por dezenas de governos em diferentes países para invadir celulares de opositores, jornalistas e defensores de direitos humanos. A empresa, no entanto, deixou as negociações com o governo por conta de supostas irregularidades. A desistência da empresa de Israel não fez com que entidades da sociedade civil deixassem de questionar a Harpia Tech, empresa que venceu o edital.
Em agosto de 2021, as organizações Conectas Direitos Humanos, Instituto Igarapé, Instituto Sou Da Paz e Transparência Internacional entraram com uma ação para suspender a compra e o uso da ferramenta pelo governo brasileiro. As entidades apontaram que “havia irregularidades graves na licitação, entre elas a própria ilegalidade da contratação de um sistema capaz de monitorar e perfilar cidadãos sem qualquer justificativa prévia, a ausência de mecanismos de controle e fiscalização e a própria modalidade de licitação adotada, absolutamente inadequada para o tipo de serviço pretendido”.
De acordo com as ONGs, apesar de ser uma tecnologia distinta da Pegasus – software que permite a invasão de dispositivos celulares e computadores –, a plataforma comercializada pela Harpia Tech também é “problemática”. Um dos pontos questionados era a contratação do sistema pela Secretaria de Operações Integradas, que funcionava, segundo as entidades, como um “braço de inteligência do Ministério da Justiça” do governo Bolsonaro. A Seopi, sigla pela qual é conhecida a secretaria, foi a responsável pelo dossiê que fichou servidores antifascistas, além de encabeçar programas de vigilância e monitoramento como o Projeto Excel e o Córtex.
O pedido das ONGs de suspender o contrato para a aquisição de uma solução de inteligência da Harpia foi aceito pela justiça. Em junho do ano passado, no entanto, o Tribunal de Contas da União autorizou a compra, após quase um ano de embargo. Na ocasião, o ministro Bruno Dantas, relator do caso no TCU, derrubou a cautelar de 2021 mediante algumas medidas, entre elas fazer constar no contrato as funcionalidades de segurança e a capacidade de auditar o próprio sistema.
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