Depois de cinco anos da última visita, finalmente os movimentos sociais conseguiram recolocar os pés no prédio em que funcionou o antigo Departamento de Ordem Política e Social da Guanabara, o Dops, durante a ditadura militar. Apesar do abandono e destruição do prédio histórico, localizado na Lapa, Rio de Janeiro, ainda é possível ver as celas, carceragens e os escaninhos que guardavam os arquivos.
As salas de interrogatório também permanecem no local com o mesmo revestimento acústico que isolava os gritos dos torturados e os depoimentos tomados pelos agentes da repressão. Também há uma montanha de antigos documentos históricos abandonados – e vários outros que foram retirados do local.
O prédio, palco de graves violações de direitos humanos não apenas no regime autoritário, mas ao longo de todo o século passado, é hoje o centro de uma disputa que se arrasta por décadas. De um lado, organizações de direitos humanos querem transformar o edifício em um espaço de memória voltado para a valorização da democracia, como foi feito com o antigo Dops em São Paulo. De outro, a Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro quer fazer do local o seu próprio centro cultural.
Com a conjuntura política dos últimos anos, tomada pela extrema direita, os movimentos sociais que encabeçavam a briga pelo museu de direitos humanos viram a luta perder fôlego. Agora, a mobilização voltou a ganhar força. “É necessário avançar na recuperação do que sobrou de tantos anos abandono de destruição interna desse edifício, para que ele tenha uma destinação que combine com uma democracia”, afirma Fernanda Pradal, representante da campanha Ocupa DOPS, lançada em 2013.
Estive na comitiva que visitou o prédio, liderada por Nilmário Miranda, assessor especial de Memória, Verdade e Defesa da Democracia do Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania. Também participaram oito parlamentares, entre vereadores e deputados estaduais e federais.
“A principal expectativa era retomar o debate sobre o fortalecimento dos espaços de memória, verdade e justiça no estado do Rio de Janeiro”, me disse Flávio Serafini, deputado estadual pelo PSOL fluminense, que fez a interlocução com a Polícia Civil do Rio de Janeiro para viabilizar a visita. Fomos recebidos pelo diretor do Museu da Polícia Civil e pela museóloga da instituição, que acompanharam todo o percurso pelos três andares do prédio.
Com plantas e registros fotográficos de visitas anteriores nas mãos, Felipe Nin, arquiteto e participante do movimento Ocupa Dops, liderou a comitiva, mostrando a Nilmário Miranda e aos parlamentares que acompanhavam a diligência as características do prédio e de cada espaço. O arquiteto ressaltou que o prédio ainda conserva elementos que servem de “testemunho histórico” do que ocorreu em seu interior. Mas o risco de ruir é grave. “Aí, para recuperar os elementos originais, fica praticamente impossível”.
Sobrinho de Raul Amaro Nin Ferreira, preso por agentes do Dops em 1971 e posteriormente assassinado dentro do Hospital Central do Exército, Nin participa da campanha Ocupa DOPS desde o início, em 2013. “O Dops sempre foi um lugar que esteve presente na minha memória”, afirmou.
“Meus pais participaram da luta contra a ditadura e sempre relataram este período muito a partir deste lugar do medo de serem presos e das histórias de amigos que foram presos e levados para o Dops”, diz Nin. Mas foi a partir de uma pesquisa feita sobre o caso de seu tio que a centralidade daquele prédio ficou mais clara. “Foi possível entender toda a dinâmica da violência da repressão que se organizava a partir do Dops, inclusive em articulação com os outros centros de repressão”.
A campanha Ocupa DOPS é coordenada pelo Coletivo RJ Memória, Verdade, Justiça, Reparação e Democracia, entidade que demandou a diligência ao MDHC do governo Lula. Fernanda Pradal aponta que a expectativa dos movimentos era ver o estado de conservação do prédio, já que haviam passado mais de cinco anos desde a última vez que representantes da sociedade civil entraram no local.
A imprensa não acompanhou a diligência. Como historiador ligado a esta luta há muitos anos, que já esteve no interior do prédio em outras ocasiões, fui chamado para integrar a comitiva com a tarefa de escrever este relato exclusivo para o Intercept Brasil.
Polícia Civil do Rio garante que está cuidando do prédio
A Polícia Civil diz que o imóvel está em obras. A instituição pretende estabelecer no espaço um centro cultural da Polícia Civil, “com espaços dedicados a atividades culturais, interlocução com a sociedade civil e uso compartilhado com outros órgãos do estado”, além do Museu da Polícia Civil. Durante a diligência, os representantes nos disseram que o governo federal deveria entender que o prédio não estava abandonado, e que a polícia estava cuidando do edifício. Segundo a instituição, uma nova obra começou em maio de 2022 e deve terminar em 2024.
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O diálogo sobre o projeto da polícia para o prédio foi interrompido com o anúncio de que seria liberada a entrada de um fotógrafo para fazer imagens da parte da carceragem masculina, que está interditada pelo risco de desabamento. Em diligências realizadas anteriormente, no período das Comissões da Verdade, o acesso ao local era possível, o que sugere uma deterioração nas condições de alguns espaços do interior do edifício.
Nas visitas anteriores, a comitiva havia também constatado uma grande quantidade de documentos, segundo registros da Comissão da Verdade do Rio de Janeiro e pelos arquivos Nacional e do Estado.
Hoje, esses arquivos sumiram do local. A Polícia Civil diz que eles foram armazenados “na reserva técnica das instalações provisórias do Museu”, sem dar maiores detalhes sobre o estado de conservação.
Prédio que abrigou Dops conta a história da violência de estado no Brasil
Situado no bairro da Lapa, no centro do Rio de Janeiro, na esquina entre a Rua da Relação e a Rua dos Inválidos, o prédio que hoje interessa aos movimentos sociais remonta ao início do século 20 – e sua trajetória se confunde com a própria história da violência de estado no Brasil.
Construído entre os anos de 1908 e 1922, o palacete possui três pavimentos, cada um com cerca de dois mil metros quadrados, além de um pátio interno. Foi projetado no estilo eclético francês, e tem como características marcantes o arco monumental de sua entrada principal – hoje interditada por tapumes – e os vitrais coloridos de suas janelas. É grande e imponente.
Na Primeira República, abrigou agências policiais voltadas para o controle de práticas como a “vadiagem” e a “capoeiragem”, termos que serviam, na prática, para criminalizar a população negra e suas manifestações culturais no pós-abolição. A partir dos anos 1930, o aumento da preocupação do Estado com o comunismo levou à criação de um novo órgão, a Delegacia Especial de Segurança Política e Social, embrião dos Dops. Na ditadura do Estado Novo, instituída por Getúlio Vargas em 1937, essa delegacia desempenhou papel importante na repressão aos chamados subversivos políticos.
Primeira morte no Dops do Rio aconteceu logo após o golpe de 1964
Poucas semanas após o golpe de 1964, foi registrada a primeira morte no interior do prédio, que já funcionava como sede do Dops. Em 17 de abril de 1964, José de Souza, um ferroviário negro, militante do sindicato da categoria, foi encontrado morto no pátio interno. A versão oficial foi a de que o sindicalista teria se suicidado, mas em 1996, a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos reconheceu a responsabilidade do Estado no caso.
Presente na diligência, o engenheiro Newton Leão Duarte esteve preso no local por cinco meses, em 1970. Embora não tenha vivenciado sevícias no local, Newton relata que sua irmã, Maria Helena Pereira, foi barbaramente torturada no edifício da Rua da Relação. “Ela estava grávida. Eles chutavam a barriga dela falando que era para matar o comunista. Ela abortou e nunca mais conseguiu ter filhos”.
Dilceia Quintela foi outra ex-presa política que participou da visita. Ela esteve detida no prédio em 1975, já no período conhecido como a abertura lenta, gradual e segura. “Neste período, eles já não torturavam mais neste prédio. Mas retiravam as pessoas daqui e levavam para a Barão de Mesquista para a tortura”, ela relata.
Quintela ressalta que o prédio era parte fundamental da estrutura repressiva da ditadura. “Aqui era a parte legal da prisão, porque quando você vinha para cá, a sua família sabia que você tinha sido preso”. Na sexta-feira, foi a primeira vez que ela retornou ao local, após 48 anos. “Vêm à mente as lembranças tristes, né?”, contou a ex-presa política ao final da visita.
Foto tirada em diligência realizada em 2015 pela Comissão da Verdade do Rio de Janeiro. No último dia 10, esses documentos não estavam mais no local.
Dops no Rio: arquitetura do abandono
Com a desativação do Dops no primeiro mandato de Leonel Brizola como governador do Rio de Janeiro, nos anos 1980, o destino do suntuoso edifício começou a ser disputado. Em maio de 1987, o prédio foi tombado com a principal justificativa de ser um “lugar de memória dos que ali foram torturados pela defesa de suas ideias políticas”.
Apesar disso, ao longo da década de 1990 o prédio seguiu abrigando repartições da Polícia Civil. Em 2001, o local foi formalmente cedido ao Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro, o Aperj, que chegou a realizar atividades ali. Mas a mudança de governo de Benedita da Silva para Rosinha Garotinho em 2003 interrompeu o processo, e o espaço voltou para as mãos da Polícia Civil.
Naquele período, o estado de conservação já estava bastante degradado. Em 2001, o jornalista Mário Magalhães já descrevia um “cenário de terra-arrasada”, com a presença de baratas, ratos, pombos e cupins, além de vitrais quebrados e paredes esburacadas. A situação piorou em 2009, quando a Petrobrás iniciou a construção de um complexo de prédios ao lado do local. As obras impactaram o edifício da Rua da Relação e a Defesa Civil determinou sua interdição. Desde então, o espaço está sem uso.
‘A gente quer, a partir da disputa do passado, garantir uma democracia sólida. Para isso, os lugares de memória são fundamentais’.
A criação da Comissão Nacional da Verdade em 2012 e da Comissão Estadual da Verdade do Rio de Janeiro, a CEV-Rio, em 2013 abriram espaço para um novo esforço na luta pela transformação do prédio em um museu. Mas não houve consenso entre polícia e movimentos. Em 2016, um projeto inicial para a implantação de um espaço de memória no local foi finalizado. Mas o Brasil já vivia uma conjuntura de crise política e avanço da extrema-direita, que inviabilizou qualquer avanço.
A proposta dos movimentos, agora, é retomar aquele projeto: a construção do Centro de Referência dos Direitos Humanos. “Por ser um prédio grande, em uma área central, a ideia é que ele pudesse ter diversas atuações ali dentro. Desde um espaço expositivo, cultural, voltado à memória da ditadura, voltado à memória da luta pela democracia, até a possibilidade de abrigar instituições relacionadas à luta por direitos humanos que hoje não tem espaço para funcionar em outros locais”, diz Nin.
“O que queremos é um espaço de cultura e educação, a partir dos direitos humanos, que são direitos fundamentais e irrevogáveis de todas as pessoas”, reforça Fernanda Pradal. Ela ressalta, ainda, que o Rio de Janeiro está “bastante atrasado no processo mundial, regional e nacional de criação de memoriais e museus sobre memórias traumáticas, direitos humanos e democracia”. Em São Paulo, por exemplo, o antigo prédio do Dops virou o Memorial da Resistência.
Presente na diligência, o Superintendente Regional do Iphan, Paulo Vidal, apontou que o Instituto está interessado em se debruçar sobre essas memórias sensíveis. Ele ressaltou, ainda, que tramita no órgão um processo de tombamento do prédio da Rua da Relação, o que os representantes da sociedade civil veem como algo positivo.
Também no que depender de Nilmário Miranda, a pauta parece que encontrará apoio no MDHC. “A gente quer, a partir da disputa do passado, garantir uma democracia sólida. E para isso, os lugares de memória são fundamentais”, apontou o assessor. Ele ressalta, no entanto, que não interessa ao governo federal estabelecer qualquer tipo de conflito com a polícia. “Não há nenhuma demonstração de rancor, de ódio. O nosso foco é fortalecer a democracia. É o princípio da não-repetição, do Nunca Mais. Não permitir que se esqueça, para que nunca mais aconteça”.
Atualização – 22 de novembro de 2023, 11h36
O texto foi atualizado para inclusão de uma legenda na foto da diligência realizada em 2015.
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