Fabiana Moraes

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Essa gente que trabalha enquanto o coach dorme

As mais de 20 milhões de pessoas que labutam no período noturno no Brasil têm mais a nos ensinar do que o coach que não as enxerga.


Tive uma breve conversa com algumas das pessoas que trabalham enquanto o coach, tantas vezes dono de uma obtusidade exuberante, dorme. Ilustração: Intercept Brasil.

Ninguém tem mais certeza do que o coach. Ninguém é mais assertivo, rápido, resolvedor. Um manancial de soluções muito eficientes que nós, os não-coaches, povo que não é feito de poeira estelar, nunca vai saber propor.

Ninguém requenta melhor do que o coach. Ele retrofita práticas, conclusões e frases espetacularmente antigas como se fossem novidades recém-paridas por seu cérebro supostamente brilhante. Ele cita Cicrano que cita Beltrano que cita Fulano que neste momento dá um google procurando as aspas surradas e tranquilizadoras de alguém.

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Mas ninguém, ninguém, trabalha mais do que o coach. Ele, do alto de sua barba bem-feita e das tatuagens saídas de alguma linha de produção fordista, afirma que, se tu tá aí pendurada no Serasa, foi pura falta de esforço, de dobrar o tempo, de produzir mais, de ser mais eficiente.

Afinal, ninguém é melhor do que o coach, esse cara que produz enquanto os outros dormem. 

Ninguém, a não ser mais de 20 milhões de mulheres e homens que trabalham no período noturno no Brasil, gente espalhada em locais como postos de gasolina, aeroportos, indústrias, farmácias, supermercados, setor de transportes, entregas, restaurantes, bares, etc. 

São, de acordo com a bióloga Frida Fischer (coautora de pesquisas como “A saúde do trabalhador na sociedade 24 horas“), pessoas bem mais expostas a doenças como depressão, problemas cardíacos e digestivos, estresse e fadiga crônica, entre outros. Problemas de relacionamento também são mais comuns entre profissionais cujas jornadas de trabalho se dão entre 22h e 5h da manhã.

Abaixo, uma breve conversa com algumas dessas pessoas, essa gente que trabalha enquanto o coach, tantas vezes dono de uma obtusidade exuberante, dorme.

1. Josefa Maria da Silva, 42 anos, babá. Lila, codinome pelo qual é geralmente tratada, mora no bairro da Mirueira, na cidade de Paulista, em Pernambuco, e trabalha na Jaqueira, bairro nobre de Recife. São cerca de 20 quilômetros entre um local e outro, nada tão dramático em termos de distância. 

Porém (ah, porém), a coisa não é tão simples. Uma googlada no Maps, e as opções de ônibus aparecem: a média de uma hora de viagem informada é apenas virtual. Lila gasta o dobro do tempo – às vezes mais – para chegar às 7h da manhã na casa na qual trabalha há 8 anos, cuidando de três crianças.

As opções de ônibus da casa para o trabalho de Josefa Maria da Silva, uma das milhões de brasileiras ignoradas pela filosofia dos coaches.
As opções de ônibus da casa para o trabalho de Josefa Maria da Silva, uma das milhões de brasileiras ignoradas pela filosofia dos coaches.

Para isso, trabalha enquanto o coach faz a barba: salta da cama às 4h. Às 5h, ela já está no ponto de ônibus. Embarca na linha 1943 Mirueira/TI Pelópidas. Depois, segue na Linha 1906, que liga o terminal Pelópidas ao Terminal Integrado da Macaxeira, no bairro de Dois Irmãos, Recife. Lá, embarca em mais um ônibus, a linha 520, rota Macaxeira-Parnamirim. 

Sai do emprego apenas às 18h – e é nesse retorno para casa, depois de uma jornada longa de trabalho, que o bicho mais pega: Recife é, há tempos, uma das cidades mais congestionadas do país. Lila só consegue chegar em casa entre 20h30 e 21h. Assim, gasta cerca de 5 horas, todos os dias, no deficitário transporte público da cidade e sua região metropolitana. 

Lila bem que poderia transformar esse tempo e essa dificuldade em uma chance para aprender mais e se superar, diria o coach enquanto prepara seu shake com creatina. Mas não é possível ler nada quando se vai e volta em pé, espremida entre dezenas de pessoas. 

Mas que tal ouvir uma música ou conferir nas redes os conselhos do pessoal que afirma “o dia de 24 horas para todo mundo“? Depois de ser assaltada três vezes nos coletivos, Lila prefere manter o telefone escondido. 

“É um tempo perdido, que não posso recuperar. Seria um ótimo momento para estudar. Mas não dá”. A babá, que trabalha e se espreme em seis ônibus por dia enquanto os coaches dormem, tem carteira assinada, ganha R$ 1,5 mil líquidos ao mês e folga às terças-feiras ou, a cada 15 dias, um fim de semana.

2. Fernando Cirino de Souza, 49 anos, motorista. Vive na zona rural de Paudalho, a 47 quilômetros de Recife. Trabalha de segunda a sexta para uma granja que vende e distribui ovos para cidades no interior de Pernambuco, além da Paraíba e do Rio Grande do Norte. 

Tem carteira assinada e acorda às 2h da madrugada quando faz viagens interestaduais (em média, duas vezes por semana). Às 3h, chega na empresa, onde deixa a motocicleta. Cerca de três ou quatro horas depois, já está em Guarabira, Paraíba, a pouco menos de 225 quilômetros da capital pernambucana. 

Descarrega toda a carga com a ajuda de mais uma pessoa e, só então, toma o café da manhã. O sono bate na volta, na estrada, após o almoço às 11h. “Quando começo a bocejar, já sei que tenho que ficar mais alerta. É minha segurança, a de quem está comigo, a de quem está na estrada”. 

Quando as viagens são feitas para o agreste de Pernambuco, consegue levantar um pouco mais tarde, às 3h. Segue com a carga para cidades e povoados como Garanhuns, Águas Belas, Caetés, Brejão, Angelim, Palmerina, Bom Conselho. Pernoita na estrada e só volta para casa, onde vive com a mulher, Marília, no outro dia à noite. 

Em um mês, consegue cerca de R$ 2 mil líquidos. Fernando cruza, de madrugada, as tantas vezes muito inseguras rodovias no país. Enquanto isso, o coach e suas tatuagens de linha de produção fordista, insere no Canvas mais uma frase motivacional sobre a imagem de um homem usando terno.

3. Geovane Araújo, 50 anos, técnico em segurança do trabalho e ex-vigilante. Antes de conseguir uma maior estabilidade trabalhista – assim como Fernando e Lila, ele também tem carteira assinada –, Geovane trabalhou diariamente como vigilante em uma escola. 

Saía do quase extremo norte do litoral pernambucano, na cidade de Itapissuma, para a zona sul da capital, em Boa Viagem. Quarenta e cinco quilômetros. O detalhe é que precisava estar às 7h no local. Pegava o primeiro ônibus disponível – para isso, chegava no ponto às 3h50 da madrugada. 

Seguia para o terminal de Igarassu, onde embarcava em outro ônibus até Recife. De Recife, ia na Linha 050 (PE-15/Boa Viagem). É a mesma pisada de Lila: três ônibus para ir, três ônibus para voltar, jornadas de 5, às vezes 6 horas no total de viagens. 

“Levantava da cama às 3h20 para tomar um banho, um café preto e seguia. O café da manhã era no serviço. Levava o almoço ou comia algo perto do trabalho mesmo”, me contou. 

Geovane ganhava por hora trabalhada. Assim, apesar de dedicar quase a totalidade do seu dia ao trabalho, só recebia pelos horários de 7h às 9h e das 14h às 17h, quando estava no portão da escola. O total por mês: R$ 470. Sim, quatrocentos e setenta reais. 

O ano era 2018, e Geovane só chegava em casa, após sair de Boa Viagem, por volta das 21h – enfrentava quilômetros de engarrafamentos, esse inferno cotidiano naturalizado, essa máquina de moer gente pobre. 


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4. Tamires Vieira da Rocha, 36 anos, auxiliar de leitos em um hospital privado. Trabalha “virando a noite”, das 19h às 7h da manhã (12 horas) “folgando” 36 horas. As aspas se explicam: quando está em casa e virtualmente descansando, Tamires exerce aquele cargo que, apesar de sustentar o país de pé, não recebe qualquer tipo de remuneração: o de dona de casa

Varre, lava roupa, faz almoço, faz jantar. Para isso, acorda às 7h da matina – nos dias de “folga”, quando não está saindo do hospital. Mora na Bomba do Hemetério, zona norte recifense. No dia de trabalho fora de casa, sai por volta das 17h30, seguindo um contrafluxo de carros e ônibus que voltam cheios do centro e outras áreas para a periferia. 

No trabalho, cuida da higienização de quartos, forra camas, faz admissão de pacientes, entrega e recolhe enxovais, abre chamados de manutenção, admite pacientes. Tem que lidar com algo extremamente delicado: as angústias de familiares de pessoas hospitalizadas. 

“É o maior desafio, lidar com acompanhantes extremamente estressados, pacientes debilitados… quando as coisas não saem do jeito que querem, nos culpam, gritam, se desesperam”, desabafou. 

Tamires recebe em média R$ 1,8 mil líquidos, contando com o adicional noturno e a taxa de insalubridade. É com esse dinheiro que ela paga as eventuais idas ao cinema com o filho de 14 anos de idade, um dos escapes para manter a cabeça mais tranquila e conseguir estar efetivamente perto da família. 

“A gente cansa da rotina de trabalho não só fisicamente, mas mentalmente”, me disse. A auxiliar de leitos faz parte de alguns dos grupos mais pesquisados entre as análises que focam o trabalho noturno – as e os profissionais de saúde. 

As mulheres são justamente aquelas com o sono mais fragmentado, uma vez que precisam dar conta de atividades domésticas. Os cuidados com os filhos surgem como outro desafio – cuidar de si, nesse caso, é frequentemente a última preocupação. 

***

Josefa, Fernando, Geovane e Tamires, que integram o atual e histórico número de mais de 100 milhões de pessoas ocupadas no Brasil, têm muito a nos ensinar – e fazem isso cotidianamente por meio de seus dribles e sobrevivências, não de lives

Espremem-se em transportes públicos precários, se expõem a sistemas de segurança pública e privada igualmente insatisfatórios, levam a vida em estradas frequentemente inseguras. Tudo isso por salários muito baixos, que provavelmente manterão suas vidas menos confortáveis por gerações. 

Essas jornadas invisibilizadas não devem ser romantizadas, nem transformadas em narrativas heróicas. Mas não podem, igualmente, serem percebidas como menos importantes. 
E o que pode garantir uma vida melhor para as trabalhadoras e trabalhadores aqui presentes – e que seus filhos não sejam os próximos a se espremerem em um ônibus durante horas, todos os dias – não virá de nenhuma frase motivacional ou solução individual mágica apresentada pelo coach, para quem cansaço e sofrimento são exemplos de fraqueza, nunca de exaustão e exploração.

***

A partir deste mês, vou sugerir uma música em todas as minhas colunas publicadas aqui. Inauguro com “The other side of the town”, de Curtis Mayfield (em seu maravilhoso disco de estreia, de 1970). Na letra, ele fala sobre quem vive nas periferias, guetos, favelas; sobre quem mora longe; quem está distante de políticas públicas eficientes. Quando a ouvi, pensei em Lila, Geovane e as milhões de pessoas que passam parte de suas vidas em transportes lotados até alcançar seus trabalhos.

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