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Lula perde a chance de peitar militares e segue recompensando a caserna

Assim como em 2009, Lula perde a chance de responsabilizar militares por seus crimes e acena diretamente para os quartéis.

Lula perde a chance de peitar militares e segue recompensando a caserna

Mesmo no auge dos governos petistas, quando Lula batia picos de popularidade, ele se eximiu de acabar com a impunidade dos militares. Foto: Pedro De Paula/Código 19/Folhapress

Se existe uma constante na política brasileira, é a de que não importa o que aconteça, os privilégios dos militares permanecem inabalados – inclusive o de não responder por seus crimes. Com o 8 de Janeiro, não poderia ser diferente.

Os privilégios dos militares não foram ameaçados nem mesmo por governos comandados por pessoas perseguidas e presas pelo regime da caserna. Caso dos ex-presidentes Fernando Henrique Cardoso e Dilma Rousseff – que chegou a ser torturada pelos generais – e do atual presidente Lula.

Essa passividade diante dos militares, por vezes, é justificada pelo medo quase irracional do suposto poder político dos quartéis. Inclusive, chegando a se falar abertamente da possibilidade absurda de um novo golpe nos termos de 1964. 

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Isso é pura propaganda. Mito! Um que se baseia na força que os militares tinham em 1964, mas ignora mais de meio século se passou e que muita coisa aconteceu desde então. Por exemplo, o fim do regime militar. 

Vamos voltar no tempo. O ano é 1978. Em uma de suas entrevistas mais conhecidas, o então futuro (e último) presidente da Ditadura Militar, João Figueiredo, afirmou categoricamente que, ao contrário das aspirações populares, o Brasil não estava preparado para se tornar uma “democracia plena”

“Como o brasileiro pode votar bem, se ele não conhece noções de higiene?”, disse o general, que ainda acrescentou que não pretendia encerrar o AI-5, nem anistiar os exilados políticos brasileiros. 

Falava em nome do regime. Óbvio. Era o porta-voz dos planos que a caserna tinha para o país. Planos que falharam. 

No final daquele mesmo ano, ainda sob a presidência de Ernesto Geisel, o AI-5 foi extinto. No ano seguinte, e sob os auspícios do próprio Figueiredo, a Lei de Anistia foi enfim promulgada. 

Ali, dava-se início a um ciclo de abertura política que culminaria na vitória expressiva da oposição e na eleição indireta de Tancredo Neves para a presidência da República. 

Figueiredo não compareceu à posse do novo presidente – comportamento que seria repetido em 2023, por Jair Bolsonaro – e saiu pela porta dos fundos do Planalto. 

Foi assim que a Ditadura Militar brasileira se encerrou: de forma patética, com os militares retornando envergonhados para a caserna.

Ao menos em tese e em Brasília. 

Meu ponto é: ao contrário do que normalmente se imagina, a abertura política do país não foi um processo inteiramente controlado pelos militares. 

Pelo contrário. O movimento, iniciado ainda durante o governo Geisel, representava uma tentativa quase desesperada dos militares de se salvarem diante da derrocada iminente e inevitável do próprio regime. 

O fato é que os militares não desejavam encerrar o regime nos anos 1980. Contudo, a situação periclitante da economia do país, com uma inflação média que ulrapassava a casa dos 220% ao ano, e a pressão pressão popular e de instituições estrangeiras fizeram com que os planos dos militares de permanecer no poder fossem gradualmente substituídos por uma longa negociação sobre como eles retornariam para os quartéis. 

A própria Lei de Anistia era um sintoma disso. Os militares sabiam que a ditadura estava no fim e temiam ser punidos pelos crimes que cometeram. Cederam à oposição para que também fossem incluídos no processo. 

Esse pacto permaneceu inabalado ao longo das décadas seguintes, negando ao Brasil o conhecimento do que se passou durante um dos períodos mais sombrios de sua história. Negando a centenas de famílias a misericórdia de descobrir o que realmente aconteceu com seus entes queridos “desaparecidos” pelo regime. 


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Corta para 2009. 

Setores ligados aos direitos humanos pressionavam o governo Lula para que fosse, enfim, instaurada uma Comissão da Verdade para investigar os crimes cometidos pela ditadura. 

No ano seguinte, o Brasil seria condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos justamente por sua passividade diante do regime militar. 

Lula batia picos de popularidade. Era o auge dos governos petistas. 

Cenário perfeito para, enfim, acabar com a impunidade dos generais. 

Certo? 

Errado.

Sob protestos de integrantes do próprio governo, Lula cedeu aos apelos dos generais e ordenou modificações no anteprojeto de lei que criaria a Comissão Nacional da Verdade, deixando claro que não se tratava de uma revisão da anistia concedida aos militares.

Criou-se, então, um precedente perigoso. As Forças Armadas enxergaram nesse recuo a certeza de que seguiriam impunes. E isso era um sinal claro de que poderiam – e deveriam – avançar sobre a sociedade a política brasileira para recuperar o seu prestígio e o protagonismo político perdido no ocaso da ditadura. 

E é justamente desse movimento de reorganização política das Forças Armadas para influenciar a política nacional que emerge o apoio institucional e político da caserna ao então deputado federal Jair Bolsonaro. 

Um apoio que se mostrou crucial para a sua eleição. Afinal, Bolsonaro era relativamente desconhecido para a maioria da população brasileira. Mas as Forças Armadas não. 

Corta agora para 2022. 

Bolsonaro é derrotado nas urnas. Seu governo, amplamente integrado por militares, incluindo-se aí os seus vices, é rejeitado pela maioria da população brasileira. Como em 1985, a despeito de tudo, os militares foram incapazes de eleger o seu indicado. 

Em parte porque, em pouco tempo, os escândalos e casos de corrupção de sua administração vieram à tona, muitos deles envolvendo os próprios militares – e estamos aqui falando de oficiais de alta patente –, como o caso das joias e o superfaturamento de compras de Viagra para as tropas. 

Para melhorar ainda mais o cenário, ficou evidente a participação de integrantes das Forças Armadas nos recentes atentados contra a democracia no país, como o bloqueio das estradas durante o segundo turno da eleição presidencial e o 8 de Janeiro

O resultado não poderia ser outro: os militares viram a sua popularidade e confiança atingindo os menores índices da série histórica, despencando até mesmo entre os antigos apoiadores de Jair Bolsonaro.

Segundo pesquisa da Genial/Quaest publicada em agosto de 2023, em poucos meses, o índice de apoiadores do ex-presidente que alegavam “confiar muito” nos militares caiu de 61% para 40%. Na população geral, a queda foi de 43% para 33%. 

Em 2022, os militares perderam mais do que a eleição. Eles perderam a confiança dos brasileiros. 

Esse parecia ser o momento ideal para finalmente enquadrá-los pelos crimes do passado, pela ditadura, pelo que ocorreu durante a intervenção federal no Rio de Janeiro, pelo 8 de Janeiro…. 

Sem anistia, certo? 

Infelizmente, essa não parece ser a intenção do governo Lula. Mais uma vez, o presidente tenta conciliar os interesses da caserna, lhe garantindo não apenas a impunidade, mas a manutenção da sua presença no Executivo, preservando seus espaços tradicionais, como o Ministério da Defesa e o Gabinete de Segurança Institucional

Fora alguns acenos políticos evidentes, como o engavetamento do projeto que acaba com a pensão dos filhos de militares e a inclusão do setor da defesa como um dos maiores destinatários do orçamento do novo PAC. 

Isso é mais do que anistia. É recompensa.

De fato, não importa o que aconteça, os privilégios dos militares permanecem inabalados. 

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