Em 2020, o ex-ministro e braço direito da família Bolsonaro, Gustavo Bebianno, denunciou o plano de Carlos Bolsonaro em criar uma Abin paralela dentro do governo. O quebra-cabeça proposto por ele naquele ano já foi montado pela Operação Vigilância da Polícia Federal. Absolutamente tudo o que foi denunciado naquele ano está sendo desvendado nos mínimos detalhes. Os investigadores não têm dúvidas de que o aparato de inteligência do Estado foi utilizado para monitorar ilegalmente os passos de cidadãos brasileiros que representavam uma pedra no sapato do projeto político do ex-presidente.
Muitos daqueles que eram atacados à luz do dia pelo bolsonarismo tiveram suas vidas bisbilhotadas no escurinho da Abin: jornalistas, advogados, ministros do STF, adversários e desafetos políticos — entre eles, o então presidente da Câmara, Rodrigo Maia, e a ex-bolsonarista Joice Hasselmann — e até a promotora que investigava o caso Marielle Franco e outros casos envolvendo as milícias. A Abin foi transformada numa agência de investigação particular do bolsonarismo. E esta afirmação não está mais no campo da especulação como nos tempos de Bebianno. Trata-se de um fato fartamente comprovado pela polícia.
A organização criminosa infiltrada na Abin usou ilegalmente um software israelense que monitora a geolocalização de celulares de qualquer pessoa em tempo real. O objetivo era claro: obter ganhos políticos para a família Bolsonaro e seus aliados. Trata-se de um dos maiores ataques à democracia brasileira, senão o maior, cometidos pelo governo Bolsonaro. Dá para se ter uma noção do tamanho da tragédia que seria uma reeleição de Bolsonaro para a democracia. Não é difícil imaginar o estrago que essa quadrilha de espionagem faria contra opositores do bolsonarismo após a consolidação de uma autocracia fascistoide.
Os principais integrantes da Abin paralela já são conhecidos. A investigação aponta que o vereador Carlos Bolsonaro recebia informações sobre inquéritos em andamento e dossiês do seu interesse. Segundo relatório da PF, o deputado bolsonarista Alexandre Ramagem, então chefe da Abin, usou a estrutura da agência para “interferir em diversas investigações da Polícia Federal, como por exemplo, para tentar fazer prova a favor de Renan Bolsonaro, filho do então presidente Jair Bolsonaro”.
Todas as dúvidas levantadas pelas denúncias de Bebianno foram agora sanadas pelas investigações. Falta definir os níveis de responsabilidade de cada um na cadeia de comando do esquema criminoso. Sabe-se que Ramagem era quem organizava a arapongagem e Carlos Bolsonaro era um dos beneficiários. Ambos já foram alvo de mandados de busca e apreensão em seus endereços. O general Augusto Heleno, que chefiava o GSI, estava hierarquicamente acima de Ramagem e será ouvido pela Polícia Federal na semana que vem.
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O que falta também é o governo Lula fazer uma limpeza geral na Abin. É inacreditável que isso não tenha sido feito desde o primeiro ano do governo. Muitos integrantes dessa quadrilha de espionagem continuaram trabalhando no governo Lula até poucos dias atrás. Não há qualquer justificativa possível para que a agência de inteligência do governo seguisse infestada por arapongas bolsonaristas após um ano de mandato de Lula. É estarrecedor imaginar que agentes contaminados pela ideologia de extrema direita e contaminados pelo golpismo tenham passado mais de um ano trabalhando tranquilamente dentro da inteligência do governo petista.
O diretor-geral da Abin nomeado por Lula, Luiz Fernando Corrêa, manteve em cargos-chaves boa parte dos servidores ligados ao esquema de arapongagem bolsonarista mesmo sabendo das suspeitas reveladas durante as investigações. Corrêa foi nomeado em março de 2023, quando já se tinha informações sobre a investigação da PF há pelo menos dois meses, e não tomou providências. Os integrantes da quadrilha só foram afastados dos cargos por decisão do STF.
Não é difícil imaginar o estrago que essa quadrilha de espionagem faria contra opositores do bolsonarismo após a consolidação de uma autocracia fascistoide.
Nesta semana, Lula demitiu seis diretores da Abin, além do diretor-adjunto. Parece muito, mas é pouco. Côrrea, o diretor-geral que fez vista grossa e permitiu que os suspeitos permanecessem no governo, continua firme no cargo. Nem mesmo a notícia de que ele se encontrou com Ramagem fora da agenda oficial em junho do ano passado fez com que Lula o demitisse. Ou seja, além de manter os arapongas bolsonaristas, o chefão da Abin do governo Lula teve um encontro secreto com o ex-chefão da Abin do Bolsonaro que comandava a arapongagem. Pior que isso: funcionários da Abin denunciaram na CGU que uma funcionária foi pressionada por Côrrea após colaborar com a investigação sobre espionagem ilegal realizada durante o governo Bolsonaro. Segundo fontes da PF ouvidas pela jornalista Bela Megale, há provas dessa pressão.
É uma afronta à democracia a permanência desse cidadão no comando de uma agência de inteligência após esses graves eventos. Parece que nada foi aprendido com o episódio de 8 de janeiro, quando bolsonaristas invadiram e destruíram os prédios dos Três Poderes sob os olhares lenientes de um GSI chefiado por Gonçalves Dias, que permitiu que a turma do General Heleno continuasse trabalhando no órgão.
Essa tara que o governo Lula tem por dormir com inimigo é incompreensível. Entendo que Lula tenha um perfil conciliador, apaziguador, que busca mudanças que não causem grandes solavancos. Isso é importante até certo ponto. Mas estamos diante de uma rede de delinquentes ideologicamente fanatizados que já se mostraram capazes de tudo, até de conspirar contra o governo.
Conspiradores com tendências fascistas devem ser extirpados sem exceção do governo. Aliados que se mostram lenientes e passam pano para eles, também. Caso contrário, o governo Lula pode se tornar a próxima vítima.
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