Dois importantes eventos foram marcados para esta semana: os depoimentos do ex-presidente Bolsonaro e de seus parceiros de golpe na Polícia Federal e a manifestação organizada por eles para afrontar as últimas decisões do judiciário. Mas só se falou em outra coisa no noticiário brasileiro. A fala de Lula comparando o genocídio isralense em Gaza com o Holocausto que matou milhões de judeus dominou as capas e as manchetes foi uma.
A comparação foi tratada como ofensa gravíssima e Lula foi duramente atacado por integrantes do governo de extrema direita israelense e por jornalistões do mainstream brasileiro. A extrema direita israelense e a brasileira iniciaram uma gritaria desmedida. Lula foi considerado “persona non grata” pelo governo de Israel e a os extremistas de direita protocolaram um pedido de impeachment contra ele. A imprensa nacional ajudou a criar e a fomentar um ambiente propício para essa histeria.
O fato é que Lula não negou, não relativizou e não minimizou o Holocausto. Ele recorreu a uma hipérbole retórica para chamar atenção à gravidade do massacre em Gaza. A comparação não chega a ser nova e já foi feita por Hanna Arendt e até por Albert Einstein, filho de judeus alemães.
O projeto de extermínio do povo palestino está em estágio avançado. Neste momento, a Faixa de Gaza se encontra completamente destruída, enquanto 2 milhões de palestinos encontram-se encurralados em Rafah — cidade que o governo de Israel ameaça bombardear e invadir. Como bem apontou Andrew Fishman na última newsletter do Intercept Brasil, “os palestinos mal têm o que comer e beber. A fome está piorando. (…) Estamos em um ponto de inflexão importante e essa pressão pode ajudar a pôr fim à operação genocida”. É nesse contexto em que se dá a fala de Lula.
O Holocausto e o massacre na Faixa de Gaza não são iguais, claro, mas há muitos aspectos em que são comparáveis, sim. A desumanização de um povo está na essência dos dois acontecimentos. O que deflagrou o Holocausto senão a completa desumanização do povo judeu pelo governo de extrema direita alemão? Ora, a completa desumanização do palestino é exatamente o que justifica o massacre perpetrado pelo governo de extrema direita isralense. Essa é a base comparativa da fala de Lula. Tratar a comparação como um desrepeito às vítimas do Holocausto é, na verdade, um desrespeito às vítimas do massacre contra o povo palestino. É minimizar a gravidade da situação atual em Gaza.
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Os palestinos são tratados publicamente como uma sub-raça pelo governo de Israel. Lembremos algumas recentes declarações de seus integrantes. “Estou pessoalmente orgulhosa das ruínas de Gaza, e que todos os bebês [palestinos], mesmo daqui a 80 anos, contarão aos seus netos o que os judeus fizeram”, afirmou May Golan, ministra da Igualdade Social de Israel. Ela já havia dito anteriormente: “Não me importo com Gaza. Eu literalmente não me importo. Por mim, eles podem ir embora nadando pelo mar.” O ministro das Relações Exteriores, Israel Katz, defendeu um projeto de construção de uma ilha artificial para onde seriam mandados os palestinos sobreviventes ao massacre. O Ministro da Segurança Nacional, Itamar Ben Gvir, afirmou com todas as letras que o direito dos israelenses de viver está acima do direito à liberdade dos palestinos.
Quando o critério de comparação é a atrocidade contra a humanidade, o atual governo de Netanyahu é perfeitamente comparável ao governo de Hitler.
Para ele, “não existe povo palestino. É um povo inventado”. Ou seja, desumaniza-se um povo para justificar o seu extermínio. A comparação de Lula pode até ser considerada um erro do ponto de vista político/estratégico — eu não acho — mas do ponto de vista técnico, está correta. Quando o critério de comparação é a atrocidade contra a humanidade, o atual governo de Netanyahu é perfeitamente comparável ao governo de Hitler. Só esperneia contra isso quem pretente minimizar a gravidade do massacre palestino.
A reação desproporcional da imprensa corporativa brasileira e das extremas direitas do Brasil e de Israel não encontraram eco no resto do mundo. O presidente de Israel foi às redes sociais e fez um apelo aos líderes mundiais para que condenem a fala de Lula. Resultado: nenhum líder mundial se pronunciou.
No encontro que reuniu chanceleres do G20 no Rio de Janeiro, um ou outro líder discordou da comparação quando foram perguntados por jornalistas brasileiros. Não houve condenação, nem críticas duras, apenas expuseram a discordância. Absolutamente nenhum líder, além do facínora israelense, peitou Lula. Apesar da gritaria no Brasil e em Israel, a fala de Lula quase foi tratada com irrelevância no cenário internacional — o que mostra que o governo israelense está isolado e hoje conta apenas com o apoio cada vez mais envergonhado dos EUA.
Aliás, enquanto jornalistas e bolsonaristas chamavam Lula de “anão diplomático”, acusando-o de transformar o país em “pária internacional”, o chefe da diplomacia americana exaltou o papel geopolítico do presidente ao sair de uma reunião com ele: “Sou muito grato a Lula pelo seu tempo. Ótima reunião. Os EUA e o Brasil estão fazendo coisas muito importantes juntos. Estamos trabalhando juntos bilateralmente, regionalmente, mundialmente. É uma parceria muito importante e somos gratos pela amizade”. Eis o tamanho da “grave crise internacional” em que o Brasil teria se metido.
Essa “crise diplomática” foi fabricada pela articulação internacional entre as extremas direita do Brasil e de Israel e impulsionada pela grande imprensa brasileira. Não é de hoje que os extremistas dos dois países jogam juntas e fazem movimentos entrosados. O governo de Israel não deu um pio quando o então presidente Jair Bolsonaro disse que o Holocausto poderia ser perdoado. Também não houve qualquer reação quando o senador Flávio Bolsonaro comparou as prisões de 8 de janeiro com o Holocausto.
O deputado Nikolas Ferreira, um dos mais vorazes críticos do episódio, já defendeu publicamente a possibilidade do negacionismo do Holocausto, assim como a existência de partidos nazistas. Por muito menos, Lula foi açoitado no noticiário brasileiro, atacado pelo governo israelense e alvo de um pedido de impeachment.
O incômodo parece ser apenas contra Lula, justamente por ele ser um dos críticos mais severos do massacre em Gaza entre os líderes globais. O episódio todo é uma falácia meticulosamente criada pelas extremas direitas de ambos os países e fomentada por uma imprensa subserviente que, como sabemos, atua como um bloco monolítico em defesa do governo de Israel quando o assunto é o massacre em Gaza. Lembrem-se que já tivemos até jornalista de uma grande emissora defendendo abertamente o extermínio do povo palestino. Entre os jornalistões brasileiros, a indignação perante à fala de Lula é inversamente proporcional à indignação aos crimes humanitários liderados por Israel. O governo assassino de Israel foi naturalizado pelo noticiário brasileiro.
Entre os jornalistões brasileiros, a indignação perante à fala de Lula é inversamente proporcional à indignação aos crimes humanitários liderados por Israel.
A reação do governo israelense foi desenhada nos moldes da extrema direita internacional: ataques agressivos, diversionismo, mentiras grosseiras e muita hipocrisia. Lembrou os piores momentos do governo Bolsonaro. O ministro das Relações Exteriores, Israel Katz — o mesmo que quis construir uma ilha artificial para prender os palestinos que sobrarem do massacre — submeteu o embaixador brasileiro em Israel a uma sessão de humilhação pública sem precedentes na diplomacia internacional.
Ele também gravou um vídeo com uma brasileira que sobreviveu aos recentes ataques do Hamas em que ela mente grosseiramente ao dizer que Lula não deu atenção às famílias brasileiras vítimas dos ataques contra Israel. Perfis oficiais do governo israelense mentiram também ao dizer que Lula negou o Holocausto, o que jamais aconteceu. Esses graves episódios se tornam ainda piores quando nos damos conta de que eles aconteceram no mesmo dia em que um comboio da ONU que iria para Gaza foi bombardeado por Israel.
Quando o governo ucraniano comparou Putin a Hitler, os que se indignam hoje ficaram calados. Aliás, a comparação do russo com o alemão foi bastante naturalizada no debate público nos últimos anos. A ofensa ao povo judeu é medida de acordo com a posição geopolítica de quem o faz. Não há qualquer pudor em se instrumentalizar a tragédia do Holocausto para fins políticos. Essa é a régua moral dos assassinos que comandam o governo de Israel, dos hipócritas do bolsonarismo e dos vassalos da imprensa nacional.
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