O indiciamento de Jair Bolsonaro pela Polícia Federal no caso das fraudes nos cartões de vacinação lançou luz sobre as relações do ex-presidente com a família Reis – proeminente na política de Duque de Caxias, com longo histórico de relação com atividades ilícitas, especialmente ligada às milícias na Baixada Fluminense.
Entre os acusados criminalmente pela PF, além de Bolsonaro, de seu ex-ajudante de ordens, Mauro Cid, e de outros servidores públicos, está o deputado federal Gutemberg Reis, do MDB do Rio de Janeiro. Pouco ativo na Câmara federal e sem grande brilho em Brasília, seu nome passou quase despercebido no noticiário desta terça-feira, 19.
O relatório da investigação da PF sobre o caso, no entanto, mostra que Gutenberg tinha um papel fundamental no esquema: além de usufruir pessoalmente da fraude, usou sua influência política para obter falsificações que beneficiaram outras figuras. Entre eles, Jair Bolsonaro.
A relação de Bolsonaro com a família Reis é antiga e vem de antes de seu mandato presidencial. Em novembro de 2018, ainda como presidente eleito, mas sem tomar posse, ele foi a uma inauguração de um colégio militar em Duque de Caxias, quando o irmão de Gutemberg, Washington Reis, do MDB, era o prefeito do município. Já no cargo de presidente, recebeu integrantes da família pelo menos duas vezes no gabinete presidencial.
No momento mais crítico do governo do ex-capitão, durante a pandemia de Covid-19, o alinhamento político também ficou evidente. O Ministério Público do Rio de Janeiro chegou a abrir uma investigação, em abril de 2021, para analisar o pedido de intervenção estadual na saúde de Duque de Caxias, após Washington Reis descumprir sucessivas decisões judiciais que determinavam o respeito ao Plano Nacional de Imunização na campanha de vacinação contra o coronavírus.
Bolsonaro também escolheu Duque de Caxias para um ato público na reta final de sua campanha à reeleição, já em 2022. No dia 14 de outubro, permaneceu boa parte da cerimônia ao lado de Washington Reis e de Gutemberg Reis – este último com quem agora divide espaço na lista de indiciados pela PF.
Os dados obtidos na investigação indicam que o Gutemberg exercia poder sobre a atuação da servidora municipal Claudia Helena Acosta Rodrigues da Silva, responsável por inserir informações falsas no sistema, supostamente sob as ordens de Célia Serrano da Silva, na época secretária de Saúde de Duque de Caxias.
De acordo com a PF, Gutemberg teria sido vacinado com a 1ª dose da Pfizer em 16 de junho de 2022, mas os dados foram lançados no sistema somente no dia 18 de novembro de 2022, data da suposta aplicação da segunda dose, também da Pfizer.
Em uma das trocas de mensagens, Célia Serrano instrui Claudia Helena a inserir dados falsos de vacinação para Gutemberg Reis de Oliveira no sistema do Ministério da Saúde. Ela fornece detalhes sobre os números dos lotes de vacina a serem registrados.
Outras mensagens indicam que Claudia Helena alterou conscientemente as datas de aplicação das doses para evitar discrepâncias nos registros. Há também menções à inclusão de doses de reforço da vacina Pfizer, com Claudia Helena enviando imagens dos registros de vacinação já inseridos no sistema, com as datas modificadas para evitar inconsistências.
Célia Serrano e Cláudia Helena, além de outros servidores municipais de Duque de Caxias, foram as responsáveis pela inserção de dados falsos de vacinação para Bolsonaro, Cid e outros assessores e aliados do ex-presidente da República.
Outro beneficiado com o esquema de falsificação foi o irmão de Gutemberg, Washington Reis, que venceu três vezes a disputa para prefeito de Duque de Caxias e governou o município por nove anos e quatro meses, até renunciar.
Outro integrante da família que teve informações falsas associadas ao recebimento de vacinas foi o atual prefeito Wilson do Reis, tio de Washington e Gutemberg, eleito em 2022, quando o sobrinho renunciou ao cargo para ser candidato a vice de Castro.
A aventura eleitoral de Washington, no entanto, foi barrada pela Justiça Eleitoral. Como prêmio de consolação, ganhou a pasta dos Transportes, com um dos maiores orçamentos do governo fluminense, após a vitória de Castro. Para as eleições de Duque de Caxias, a família trabalha na candidatura de um outro parente: o jovem Netinho Reis.
Família Reis ligada à milícia na Baixada Fluminense
Em 2022, um estudo do Instituto Fogo Cruzado com o Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos, da Universidade Federal Fluminense, indicou que cerca de 48,6% do território da Baixada Fluminense, onde a família Reis exerce o poder político, é dominado por milícias. Mas, os indícios de ligação dos integrantes do clã com milicianos não são apenas uma coincidência da localidade.
Em setembro de 2022, um caso levou a família Reis aos noticiários nacionais justamente por demonstrar o tamanho do poderio das milícias na Baixada Fluminense. Foi quando um policial penal que prestava serviços no gabinete do deputado estadual Rosenverg Reis, do MDB do Rio de Janeiro, passou a ser investigado por sabatinar candidatos que buscavam apoio da milícia nas eleições municipais de 2020 na região.
Segundo denúncia do Ministério Público do Rio de Janeiro apresentada ao Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro em setembro de 2022, o suspeito afirmou no encontro com políticos e milicianos trabalhar com Rosenverg Reis.
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As informações foram a público justamente no escopo de uma operação que mirou Washington Reis, que àquela altura ainda era candidato a vice-governador. O ex-prefeito de Duque de Caxias, atual secretário de Castro, ainda é investigado por participar de um esquema milionário de desvio de dinheiro da saúde.
Na operação, policiais apreenderam um fuzil na casa do político. Segundo a investigação da PF, Washington é apontado como o responsável por garantir a atuação da organização criminosa na cidade. Ele teria possibilitado a contratação da empresa Renascer Cooperativa de Trabalho, a Renacoop, para a prestação de serviços médicos em Caxias.
A Renacoop pertence a um velho conhecido das autoridades fluminenses: o empresário Mário Peixoto. No papel, a empresa está no nome de Alessandro Duarte e Cassiano Luis da Silva. Mas segundo a Polícia Federal, eles seriam testas de ferro para Mário Peixoto.
No ano passado, uma das maiores autoridades na pesquisa sobre milícias no Rio de Janeiro, o sociólogo José Cláudio Alves, em entrevista à DW Brasil, comentou a relação de Castro com Reis: “Cláudio Castro é comprometido com estruturas milicianas na Baixada. Seu secretário de Transporte é o ex-prefeito de Duque de Caxias, Washington Reis, que tem uma das mais consolidadas estruturas milicianas da região”.
Célia Serrano e Cláudia Helena, além de outros servidores municipais de Duque de Caxias, foram as responsáveis pela inserção de dados falsos de vacinação para Bolsonaro, Cid e outros assessores e aliados do ex-presidente da República.
Washington Reis, o líder político da família, coleciona outros casos judiciais. Em 2022, ele teve uma condenação confirmada no Supremo Tribunal Federal em uma denúncia que tramitava desde 2016 por crime ambiental. Foi esta decisão do STF que o tornou inelegível por unanimidade no TRE e o impediu de compor a chapa de Cláudio Castro.
Os crimes ambientais que fundamentaram a denúncia aconteceram entre 2001 e 2006 na zona de amortecimento da Reserva Biológica do Tinguá, onde seria feito um loteamento. Segundo investigação do site O Eco, ambientalistas e moradores denunciam que a área onde os delitos teriam ocorrido está sob o controle de milícias.
Ex-funkeira denunciada pelo Intercept será candidata em Duque de Caxias
Na semana passada, o Intercept Brasil mostrou que um suposto escândalo de corrupção no Comando do Exército tem como protagonista a ex-funkeira MC Brunninha, dona de uma empresa com quase R$ 1 milhão em vendas para as Forças Armadas. Hoje, Brunninha é assessora parlamentar de Rosenverg Reis, na Alerj, e será candidata a vereadora em Duque de Caxias pelo PL.
A ex-funkeira é casada com Hyago Lopes das Dôres, assessor do deputado federal Eduardo Pazuello, do PL do Rio, general da reserva que comandou o Ministério da Saúde durante a pandemia de covid-19, no governo Bolsonaro. O esquema que esbarra nos assessores de Rosenverg Reis e Pazuello é alvo de uma investigação no Tribunal de Contas da União.
A apuração do TCU começou no ano passado, a pedido do Ministério Público, depois que o Intercept revelou que MC Brunninha tem faturado valores vultosos em vendas para o Executivo federal com sua empresa ABBA Serviços de Manutenção e Comércio em Geral.
Outro lado
O ex-presidente Jair Bolsonaro não se manifestou publicamente sobre o indiciamento. Segundo a rádio Jovem Pan, ele teria dito a um repórter que “o mundo todo sabe que ele não se vacinou porque não acredita na eficácia da vacina” e que investigação estaria “enviesada”. Seu advogado, Fábio Wajngarten, disse que o indiciamento é mais uma “ação midiática” da PF e que o inquérito tem “vazamento aos montes e aos litros”.
O deputado federal Washington Reis está em missão oficial da Câmara em Montevidéu, capital do Uruguai, onde participa com outros políticos da reunião do Parlamento do Mercosul, do qual é membro. Até o momento, ele não se manifestou sobre o caso. A sua assessoria de imprensa não foi localizada. O Intercept também procurou a Secretaria de Transportes do Rio de Janeiro, chefiada por Washington Reis, mas também não houve retorno.
A Prefeitura de Caxias, por sua vez, informou à imprensa que está com uma sindicância aberta para apurar “os fatos e responsabilidades” sobre o suposto esquema de falsificação de cartões de vacina na cidade”. O espaço está aberto para posicionamento dos citados.
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