A alegada ameaça do TikTok à segurança nacional dos EUA inflou uma histeria proporcional à do balão espião chinês, mas os registros oficiais contam uma história diferente. A inteligência dos EUA não produziu nenhuma evidência de que a popular rede social já tenha funcionado de forma coordenada com Pequim.
Esse fato não impediu que muitos no Congresso americano e até o próprio presidente Joe Biden defendessem uma lei que pode forçar a venda do aplicativo pela sua atual empresa controladora, enquanto o alvoroço em torno do TikTok enche as páginas de notícias com conjecturas e insinuações vazias.
A bem da verdade, em entrevistas e depoimentos ao Congresso, os chefes do FBI, da CIA e a diretora de Inteligência Nacional dos EUA tiveram o cuidado de qualificar a ameaça representada pelo TikTok como puramente hipotética. Com acesso a grande parte da inteligência mais sigilosa do governo, eles têm conhecimento do assunto.
A acusação principal é que a ByteDance, empresa chinesa controladora do TikTok, poderia ser obrigada pelo governo de Pequim a usar o aplicativo em operações destinadas a manipular a opinião pública, coletar dados em massa sobre os americanos e até mesmo espionar usuários específicos. O TikTok afirma que nunca compartilhou dados de usuários dos EUA com o governo chinês e que não faria isso se fosse requisitado. Em 14 de março, o CEO do TikTok, Shou Chew, disse que a ByteDance “não é de propriedade do PCC”, referindo-se ao Partido Comunista Chinês.
Embora as principais autoridades de segurança nacional pareçam concordar com as alegações de controle chinês do TikTok, não chegam a dizer que a China já atuou de fato de maneira coordenada com a empresa.
Um exemplo disso ocorreu numa entrevista que o diretor da CIA, William Burns, deu em 2022 à CNN, na qual disse que era “preocupante ver o que o governo chinês poderia fazer para manipular o TikTok”. Não o que o governo chinês fez, mas o que poderia fazer.
O que a China poderia fazer tem se mostrado um tema recorrente nas declarações das principais autoridades de segurança nacional.
O diretor do FBI, Christopher Wray, disse em 2022 durante uma palestra na Universidade de Michigan que a “empresa controladora do TikTok é controlada pelo governo chinês, e isso dá a eles o potencial de utilizar o aplicativo de formas que, acho, deveriam nos preocupar”.
Wray foi além e mencionou a capacidade do TikTok de controlar seu algoritmo de recomendação, o que, segundo ele, “permite que eles manipulem conteúdo e, se quiserem, usem-no em operações de influência”.
Na mesma palestra, Wray se referiu três vezes à “capacidade” do governo chinês de espionar usuários do TikTok. Mas, outra vez, não chegou a afirmar que espionam.
“Eles também têm a capacidade de, por meio dele [o TikTok], coletar dados sobre os usuários, que podem ser usados em operações tradicionais de espionagem, por exemplo”, disse Wray.
“Eles também têm a capacidade de acessar, têm acesso básico aos dispositivos de software. Então estamos falando de milhões de dispositivos, e isso dá a eles a capacidade de participar de diferentes tipos de ciberatividades maliciosas”.
O que a China poderia fazer tem se mostrado um tema recorrente nas declarações das principais autoridades de segurança nacional.
Wray se refere à capacidade potencial, de acordo com a inteligência dos EUA, de controlar telefones e computadores conectados ao TikTok por meio de aplicativos e do site.
Em depoimento ao Comitê de Segurança Interna da Câmara dos EUA, em novembro de 2022, Wray foi ainda mais cauteloso, ressaltando que o governo chinês poderia usar o TikTok em operações de influência estrangeira, mas apenas “se eles quiserem”.
Questionado pela deputada republicana Diana Harshbarger, do Tennessee, se o governo chinês havia usado o TikTok para coletar informações sobre os americanos para outros fins que não anúncios e conteúdo direcionados, Wray só pôde reconhecer que era uma “possibilidade”.
“Eu diria que, pelo menos da perspectiva do FBI, de fato temos preocupações com a segurança nacional relacionadas ao TikTok”, disse. “Elas incluem a possibilidade de o governo chinês poder usá-lo para controlar a coleta de dados de milhões de usuários ou controlar o algoritmo de recomendação, o que poderia ser usado em operações de influência estrangeira, se eles quiserem”.
Wray sugeriu durante a mesma audiência que a falta de evidências não é falta de vontade. Ao ser indagado por Harshbarger sobre o que está sendo feito para investigar o envolvimento do governo chinês com o TikTok, Wray respondeu que veria se “algum trabalho investigativo específico (…) poderia ser incorporado ao relatório confidencial a que me referi”.
Questionado pelo Intercept americano se tem alguma evidência de que o TikTok operou de forma coordenada com o governo chinês, o FBI mencionou declarações anteriores de Wray — muitas delas citadas neste texto. “Não temos nada a acrescentar aos comentários do diretor”, disse um porta-voz.
O orçamento do FBI solicitado ao Congresso para o ano fiscal de 2025, que esboça seus gastos prioritários no próximo ano, foi revelado recentemente sem mencionar o TikTok em suas 94 páginas. Na verdade, o documento não faz qualquer menção à China.
Pelo menos desde 2020, o Comitê de Investimentos Estrangeiros nos Estados Unidos, que reúne chefes de diversos órgãos do governo, tem investigado as implicações da aquisição do TikTok pela ByteDance.
A investigação seguiu uma ordem executiva do ex-presidente Donald Trump que buscava forçar o TikTok a se desvincular de sua empresa controladora. Quando essa investigação não conseguiu forçar uma venda, um Congresso frustrado decidiu agir e a Câmara aprovou a legislação que pode forçar a ByteDance a vender o TikTok.
Em depoimento ao Comitê de Inteligência da Câmara em 13 de março, a diretora de Inteligência Nacional, Avril Haines, a mais alta autoridade de inteligência do governo dos EUA, foi questionada sobre a possibilidade de a China usar o TikTok para influenciar as eleições presidenciais de 2024. Haines disse apenas que isso não poderia ser descartado.
“Não podemos excluir a possibilidade de o PCC usá-lo”, declarou.
O tom relativamente comedido adotado pelas principais autoridades de inteligência contrasta radicalmente com o alarmismo que emana do Congresso. Em 2022, o deputado republicano Mike Gallagher, do Wisconsin, qualificou o TikTok de “fentanil digital”, chegando a assinar um artigo no Washington Post com o senador republicano Marco Rubio, da Flórida, pedindo a proibição do TikTok.
Depois disso, Gallagher e Rubio apresentaram um projeto de lei com esse objetivo e, até a conclusão deste texto, 39 estados proibiram o uso do TikTok em dispositivos do governo.
Nada disso quer dizer que a China não tenha usado o TikTok para influenciar a opinião pública e até mesmo tentar interferir nas eleições americanas, como foi revelado.
O problema com o TikTok não está relacionado à sua propriedade. É um problema do capitalismo de vigilância e acontece com todas as empresas de mídia social.
“Segundo relatos, contas do TikTok administradas por um braço de propaganda [da República Popular da China] miraram candidatos de ambos os partidos políticos em 2022 durante o período eleitoral de meio de mandato nos EUA”, afirmou a análise anual de ameaças da Comunidade de Inteligência, divulgada em 11 de março. Mas o documento não fornece nenhuma evidência de que o TikTok operou de forma coordenada com o governo chinês. Na verdade, governos — incluindo o dos Estados Unidos — são conhecidos por usar redes sociais para influenciar a opinião pública no exterior.
“O problema com o TikTok não está relacionado à sua propriedade. É um problema do capitalismo de vigilância e acontece com todas as empresas de mídia social”, disse ao Intercept o especialista em segurança computacional Bruce Schneier.
“Em 2016, a Rússia fez isso com o Facebook e não precisou ser proprietária do Facebook, apenas comprou anúncios como todo mundo”.
Recentemente, a agência de notícias Reuters informou que Trump, quando era presidente, assinou uma ordem sigilosa que autorizava a CIA a usar as redes sociais para influenciar e manipular a opinião pública interna chinesa e pontos de vista sobre a China. Outros programas secretos americanos de ciberinfluência são conhecidos, em relação à Rússia, Irã, grupos terroristas e outros atores estrangeiros.
Ou seja, todo mundo faz isso.
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