Ao longo de uma semana, um consórcio entre Bolsonaristas, “jornalistas investigativos” e o bilionário Elon Musk chacoalhou a cena pública brasileira.
Tudo começou quando os tais “jornalistas” publicaram registros banais da diretoria jurídica da plataforma X, ex-Twitter, cujo sentido manipularam para sugerir que o Brasil vive uma ditadura judicial, comandada pelo Ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Alexandre de Moraes. Depois, o dono da plataforma, Musk, resolveu desafiar pessoalmente Moraes, chamando-o de “censor” e dizendo que ele deveria “renunciar ou sofrer um impeachment”.
Moraes resolveu não deixar barato e colocou Musk entre os investigados no inquérito das milícias digitais, que dirige no STF. E bolsonaristas aproveitaram o circo, promovendo audiências públicas e campanhas digitais contra Moraes.
A própria centralidade que se atribuiu a Moraes na divulgação dos tais Twitter files é falaciosa.
Os métodos da turma não são inéditos. Contam mentiras, mobilizam instituições, atraem cobertura da mídia e, a partir de tudo isso, naturalizam suas teses, por mais absurdas que sejam. Um dos tais “jornalistas” disse ter documentos provando que Moraes havia ameaçado um advogado do X. Depois, disse ter se equivocado.
Musk disse que Moraes tinha controle sobre Lula, pois havia sido responsável pela soltura do presidente. Mais uma mentira; Moraes deu voto contra Lula no julgamento de um habeas corpus no STF.
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A própria centralidade que se atribuiu a Moraes na divulgação dos tais Twitter files é falaciosa. Os arquivos traziam uma variedade de casos em que a plataforma X, ex-Twitter foi demandada a excluir postagens, suspender perfis, ou fornecer dados de usuários.
Num deles, o pedido veio do legislativo federal, na CPI das fake news; no outro, do Ministério Público de São Paulo; em alguns outros, de agentes privados que se sentiram caluniados ou injuriados por publicações de terceiros.
Outros tantos casos dizem respeito a decisões da Justiça Eleitoral. Moraes presidiu o TSE em 2022, mas as decisões foram validadas pelo plenário do Tribunal e atingiram tanto perfis engajados na campanha de Bolsonaro, como na de Lula.
O consórcio conseguiu o que queria. As deliberações sobre o PL 2630, que visa regular plataformas, foram suspensas.
Em 17 de setembro de 2022, a Folha noticiou que o Tribunal ordenou a remoção de postagens que atribuíam a Bolsonaro um homicídio ocorrido em briga política no Mato Grosso. Entre as contas afetadas estavam a da presidente do PT, Gleisi Hoffmann.
Em 24 de outubro do mesmo ano, o mesmo jornal noticiou que o Tribunal mandou remover posts alegando que Bolsonaro reduziria o salário-mínimo. Entre as contas afetadas estavam as de André Janones, do Avante de Minas Gerais, da deputada federal e presidente do PT, Gleisi Hoffmann, da CUT, do PT, do senador Humberto Costa, do PT pernambucano, das deputadas federais Jandira Feghali, do PCdoB fluminense, e Erika Kokay, do PT do DF, e dos perfis no Twitter @ThiagoResiste e @tesoureiros.
Nada disso importa; ao final das investidas, o consórcio conseguiu o que queria. As deliberações sobre o PL 2630, que visa regular plataformas, foram suspensas na Câmara dos Deputados.
E vozes importantes fora do Bolsonarismo passaram a repercutir a tese da “ditadura judicial,” a exemplo do jornal Folha de São Paulo que, em editorial, pediu um basta à “censura promovida por Moraes”.
Tudo isso é ótimo para os membros do consórcio. Extremistas ficam mais longe da responsabilização se qualquer decisão judicial sobre seus abusos de expressão ficar reduzida à “ditadura do Xandão”; Musk pode continuar transformando o ex-Twitter numa mina de discursos de ódio e desinformação; e os “jornalistas investigativos” já passam o pires buscando apoio para a sua “luta pela liberdade de expressão”. Se arrecadarem 10% do que Bolsonaro arrecadou em semelhante campanha, já podem contar com R$ 1,7 milhão.
Para todos os demais, é preciso insistir em ao menos cinco pontos básicos.
Primeiro, o Brasil não tem nada parecido com a primeira emenda da Constituição dos EUA, e a “liberdade de expressão” encontra limites na proteção de outros bens jurídicos individuais, como a honra, ou coletivos, como a segurança e o equilíbrio eleitoral.
Segundo, o judiciário tem total direito de determinar o bloqueio a perfis e postagens. Isso pode se dar legalmente em três casos:
I) quando perfis ou postagens forem meio para o cometimento continuado de ilícitos – desde eleitorais e contra o estado democrático de direito, até casos seríssimos como pedofilia, exploração sexual de crianças e adolescentes e incitação de violência em escolas;
II) como alternativa a prisão preventiva, que se justifica para a “garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal”; e
III) entre os poderes gerais de cautela, atribuídos a juízes pela lei processual.
Embora seja possível pensar em exemplos de postagens ou contas de bolsonaristas que foram banidas e que não se encaixam nessas hipóteses, é muito fácil pensar em postagens ou contas que se encaixam.
Terceiro, é verdade que Moraes precisa “pousar o avião” que pilota em inquéritos como o das milícias digitais. Isso significa relatar os tais inquéritos, individualizando responsabilidades e, se for o caso, inclusive remetendo autos para instâncias inferiores.
Quarto, nesse estágio, é preciso que outros atores assumam maiores responsabilidades pelo combate às fake news e a proteção da democracia. Incluem-se nisso desde a Procuradoria Geral de República que, ausente no governo Bolsonaro, teve seu espaço ocupado por Moraes, até outros Ministros do STF – que devem se tornar instrutores das ações penais decorrentes dos inquéritos – e o Congresso Nacional.
a Constituição brasileira prevê que entes privados também têm obrigação de respeitar direitos humanos – a chamada eficácia horizontal de direitos fundamentais.
Quinto, e falando em Congresso, seria muito melhor que o país adotasse uma legislação que permitisse o controle agregado de conteúdos ilícitos, o que o PL 2.630 buscava fazer, atribuindo às plataformas um “dever de cuidado” em relação às postagens que veiculam, de forma semelhante ao que já faz a União Europeia.
Isso jamais significaria sujeitar indivíduos, grupos ou empresas a qualquer “censura”. De um lado, porque a Constituição brasileira prevê que entes privados também têm obrigação de respeitar direitos humanos – a chamada eficácia horizontal de direitos fundamentais.
De outro, porque casos extremos ainda poderiam ser levados ao Judiciário, que refinaria os parâmetros para o entendimento da “liberdade de expressão”.
A falta de legislação inverte os termos da equação. O judiciário precisa ser mobilizado no varejo e fica mais exposto, já que muitas vezes tem que reiterar decisões já tomadas, mas que são desrespeitadas.
Em suma, deve-se cobrar de Moraes – como se poderia fazer em relação a qualquer juiz – que explicite os ilícitos cometidos por alvos de exclusão de postagens ou bloqueios de perfil, explique as por quais razões entende serem necessárias essas medidas e conclua a relatoria dos inquéritos que conduz.
Mas não se pode ignorar noções básicas do direito brasileiro, abraçar uma compreensão absolutista da “liberdade de expressão” que nunca fez parte da nossa cultura político-jurídica e negar a necessidade de superarmos a nossa precariedade legislativa num tema que se tornou tão caro para a democracia e a sociabilidade em geral – o poder das plataformas que, grande como se tornou, requer igual medida de responsabilidade.
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