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Entregadores são cobrados, suspensos e acusados de furto pela Mottu após perder motos alugadas nas enchentes

Startup voltada a público vulnerável cobrou aluguel, cancelou contas e ameaçou registrar furto contra motoboys afetados por enchentes.

Motoboy em área alagada do Centro de Porto Alegre. Foto: Diego Pires Jonko/Thenews2/Folhapress.

Quando Bruno Borges deixou sua casa às pressas no Sarandi, bairro da zona norte de Porto Alegre, no dia 3 de maio, a água já batia na cintura. Tudo ficou para trás. Até hoje, ele ainda não retornou, já que o bairro segue alagado por conta do rompimento de um dique.

Entre os objetos que ficaram na casa está a moto que Borges usa no trabalho de entregador. O veículo é da Mottu, uma startup brasileira que aluga e vende motos para entregadores em 19 estados brasileiros. Borges, que trabalha no ramo há 14 anos, está no processo de comprar a moto. Toda semana, ele paga R$ 245 à empresa – já foram pagas 80 de 104 parcelas.

Mas quando a moto de Borges ficou submersa em sua casa alagada e ele impedido de trabalhar, as parcelas continuaram chegando, mesmo depois que ele entrou em contato com a empresa para avisar da situação. 

Depois de várias tentativas de contato em que a Mottu apenas dizia a Borges que o caso estava sob análise, seu contrato foi encerrado, o que significa que a moto será recolhida. “Por sorte conseguimos doações, porque eu tenho um bebê pequeno”, ele disse. A renda dos aplicativos era a única da família de Borges, já que a esposa dele cuida do bebê. 

Além dele, há pelo menos mais 800 casos de clientes da Mottu cujas motos deram perda total devido às enchentes em Porto Alegre e na região metropolitana da capital gaúcha, segundo o Sindicato dos Motociclistas e Ciclistas Profissionais do Rio Grande do Sul, o Sindimoto-RS. Isso equivale a aproximadamente 30% da frota da Mottu no estado, disse Felipe Carmona, advogado do Sindimoto, ao Intercept.

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Desde o início de maio, o sindicato tem tentado contato junto à empresa, mas, assim como os clientes, não têm recebido informações claras, só  promessas vazias. No dia 9 de maio, um representante da Mottu informou que a empresa não faria nenhum tipo de bloqueio, esclareceria as situações dos contratos e aplicaria descontos de mensalidades a todos os locatários. 

Em 10 de maio, a Mottu anunciou um “pacote de auxílio” para trabalhadores de Porto Alegre. Mas, segundo o sindicato, o pacote não foi igual para todos e nem foi aplicado de forma clara e objetiva. Alguns locatários tiveram descontos, outros tiveram isenção de pagamentos. 

Empresa ameaça registrar furto em mensagem.

Mas no dia 11, a maré virou e a Mottu passou a aplicar cobranças aos usuários e ameaçar a abertura de ocorrência por apropriação indébita ou furto qualificado. O Intercept teve acesso a duas conversas, por WhatsApp e pelo chat dentro do aplicativo, em que a empresa notificou locatários de furto ou apropriação indébita. Ambas foram anexadas à ação civil coletiva que o Sindimoto-RS está movendo contra a Mottu.

 “Quando tu imputa a alguém um crime, tu diz que alguém cometeu um crime e essa pessoa não cometeu, isso é calúnia, então eles caluniaram diversas pessoas de forma direta”, disse Carmona, acrescentando que entregadores foram orientados a registrar boletins de ocorrência. 

Na ação, o sindicato exige que a empresa conceda descontos nas cobranças de aluguel ou parcelas e reveja bloqueios e cancelamentos de contratos que foram aplicados aos entregadores.

Parte dos bloqueios está ligada a um erro da Mottu. Como contrapartida ao aluguel, a empresa exige que os locatários levem as motos a uma oficina da empresa a cada 5 mil quilômetros rodados para uma manutenção. Caso a manutenção não seja realizada, a moto tem seu funcionamento bloqueado à distância. 

Como a única base da Mottu em Porto Alegre fechou porque ficou alagada, muitos entregadores não conseguiram realizar a manutenção e tiveram as motos bloqueadas, sem qualquer notificação prévia. Depois que as motos são bloqueadas, elas são recolhidas pela empresa.  

No dia 7 de maio, Alan de Souza estava deixando um passageiro quando a sua moto teve um problema na roda e travou. Ele acionou, via chat, o suporte pedindo manutenção e não recebeu resposta. Até aquela data, a Mottu não havia comunicado que sua base estava fechada. Como não pode ficar sem trabalhar, Souza teve que levar a moto até uma outra oficina e pagar R$ 170 – que não serão reembolsados pela Mottu – e arriscar perder o contrato. 

Em apoio ao Sindimoto-RS, a Aliança Nacional dos Entregadores de Aplicativo, Anea, publicou uma nota em que pede que sejam implementadas medidas de comunicação adequadas, com a criação de um comitê específico para locatários afetados no Rio Grande do Sul com atendimento humano, e a implementação de um comitê de crise para solucionar os problemas decorrentes das enchentes. 

O Intercept Brasil tentou contato com a Mottu, mas até o fechamento desta reportagem não obteve retorno.

‘Terrorismo mental’

O modelo de negócios da startup, que possui uma frota de mais de 50 mil motos e que recebeu um investimento de R$ 250 milhões de reais em 2023, foca em oferecer a entregadores sem acesso a crédito ou financiamento a possibilidade de trabalhar no setor de entregas. 

Isso porque, para usar o serviço de aluguel ou para comprar uma moto, como é o caso de Borges, a empresa não faz nenhuma exigência de crédito. Também não há cobrança de IPVA e a manutenção já está embutida no aluguel ou parcela, o que acaba reduzindo o custo final para o entregador. 

Aviso enviado ao entregador.

Com isso, a Mottu atinge um público que já está em situação de vulnerabilidade financeira. “São pessoas mais pobres que buscam a Mottu como alternativa para poder trabalhar. E se você tirar essa única fonte de subsistência, tu líquida com a pessoa de vez,” disse Carmona. 

A startup criada em 2020 chegou ao quarto lugar no ranking de motos mais emplacadas do país, segundo dados da Fenabrave divulgados no jornal Valor Econômico. Foram 26,4 mil emplacamentos em 2023, mais de quatro vezes o número de 2022. A empresa também opera no México. 

Mesmo para aqueles entregadores que não tiveram suas contas canceladas ou acusados de furto, a situação criou um temor e insegurança num momento em que os trabalhadores gaúchos já possuem inúmeras outras aflições. “É quase um terrorismo mental para cima desse trabalhador”, afirmou Carmona. 

O setor de entregas foi bastante impactado pela crise climática no Rio Grande do Sul. Muitos comércios seguem fechados e as áreas de entrega foram reduzidas por conta dos alagamentos. Para trabalhadores que estão tentando retomar as atividades, falta serviço. 

O iFood fez um repasse emergencial para entregadores de no mínimo R$100 no início de maio. A Uber anunciou um pacote de R$10 milhões para beneficiar 20 mil motoristas. Mas algumas medidas têm sido ineficientes. Segundo o sindicato, a 99, que opera transporte de passageiros em moto táxi em Porto Alegre, anunciou que vai zerar a taxa cobrada dos motoristas a cada corrida. Mas, segundo Valter Ferreira, presidente do Sindimoto, sequer há corridas.

“Só pra ter ideia, em Porto Alegre nós temos 40 mil profissionais. Aí tu vai pegar um pingo d’água para jogar no oceano,” disse Ferreira ao Intercept. “Nós não temos demanda para atender a categoria em termos de trabalho para que ele [o trabalhador] possa auferir um valor que seja o mínimo possível para ele levar para casa.”

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